Da Ira Identitária II

Há livros clarividentes que constituem um antídoto contra esta maleita mas as hordas fazem alvorecer os equívocos. Devia ser obrigatório ler “As Identidades Assassinas”, do Amin Maalouf, ou o magnífico “A Identidade Cultural não Existe”, do François Jullien. Mas não foram escritos por africanos… e hoje a inteligência e a memória são rejeitadas como elementos espúrios, em não tendo um selo étnico.

Na semana passada evoquei a irreparável ofensa que constituiu a deficiência cognitiva programada pelo colonialismo, comentarei agora a abominável “perda de realidade” e a perversão dos valores que os regimes pós-coloniais imprimem na percepção das novas gerações, praticadas em nome da “identidade”.

Há uma jovem do Malawi, cujos livros estoiraram em todo o mundo. Chama-se Upile Chisala e foi publicada na Leya/Brasil. Li-lhe o primeiro livro, “Eu destilo melanina e mel”. Que tal é? Cite-se: «Eu gosto de pensar que Deus sorri/ quando uma mulher negra é corajosa o suficiente/ para amar a si mesma.»// «Diga a ela que há deusas nos seus ossos/ E histórias de triunfo na sua pele./ E que essa negritude não é um pecado».

Sobressaem no livro três temas: a cor da pele, a necessidade de auto-estima e o difícil respeito mútuo no amor. Upile cresceu no Malawi, entre negros, fez o curso universitário nos EUA, e depois voltou a casa e agora vive na África do Sul, maioritariamente negra, e, em entrevista, diz pretender ser a voz, não de todas as mulheres, mas, “das negras”, contra a discriminação que as vexa. Fico baralhado quanto aos alvos e em que “lugar” ela localiza o racismo e a discriminação: afinal, não vive em África? Talvez Upile sofra do mesmo problema que um jovem “filósofo” moçambicano que nas suas palestras excita a plateia com as mesmas histórias e argumentos histórico-filosóficos, que conduzem invariavelmente ao despertar para a consciência do homem negro, no bairro de Harlém, em 1920 – à terceira vez que ouvi o mesmo discurso, perguntei-lhe se ele já havia dado conta de que vivia em Maputo, terra libertada, em 2019. Até hoje não despertou para a sua realidade e papagueia o seu discurso anti-esclavagista, evitando pronunciar-se contra os erros grosseiros do poder actual que conduziram a Cabo Delgado e à decapitação de crianças.

Outros poemas do livro: «Você/ e eu/ e todos os nossos vícios.»//«Meu amor,/ você não acreditaria em todos os lugares/ em que achei que encontraria você.»// «Milhares de poemas vêm dançando no meu peito/ desde a primeira vez que você me beijou.»//«Tenha cuidado com a maneira como você ama as pessoas./ Não as destrua./ Não se destrua».

Isto tem consistência como poesia? Até como auto-ajuda é medíocre. Porquê o sucesso? É simples, é uma mulher negra num mundo polarizado, não importa a vulgaridade do que diga. Coitadas das poetas de outras latitutudes e raças: têm de estudar todos os poetas da sua tradição, dois mil anos de poesia, antes de se atreverem a escrever uma linha que seja consistente.

Esta crónica vai ser lida como racista quando é o contrário disso: apela a que os africanos readquiram a sua dignidade trabalhando mais e melhor e auto-guetizando-se menos.

Uma moçambicana passou-me o manuscrito de “uma novela”. Como novela era pífia; salvei umas frases no meio da hulha, que montei, o que resultou num poema unitário de 20 páginas. Ela publicou o poema. Vejo-a depois entrevistada pela RTP África onde, com desfrute e vaidade, se ufanava de ser estudada nas universidades do Brasil.

Em que farsa me meti eu, interroguei. De outra vez, deram-me um manuscrito de trezentas páginas para ler, sem estrutura, martelado na sintaxe com que se acomodarão os alimentos no bandulho de um pangolim. Estruturei-o e reduzi-o a cento e dez páginas. Pensei, isto, claramente, ainda precisa de ir às oitenta mas não quero assustá-lo de antemão. O tipo, radiante, meteu imediatamente o livro na tipografia antes de eu conseguir enxugá-lo devidamente.

Nunca mais privou comigo ou voltou a escrever outro livro. Ou antes, contactou-me dez anos depois para que eu exercesse de novo as minhas habilidades de alfaiate, mas disse-lhe que não.

Recebi agora um daqueles livros colectivos, emanados dos Departamentos de Estudos Africanos: lá vinha um aperaltado estudo académico sobre a famigerada “obra-prima”. Ao qual se segue outro artigo “científico” sobre uma poeta que não consegue, literalmente, no domínio da língua, fazer coincidir um botão com a sua casa. Assim se produzem teses, de fora, sobre “o cânone” literário, ancoradas num paternalismo estupidificante.

(Não distorçam, existem bons escritores, ainda esta semana escrevi o prefácio para um jovem novelista, falo antes dos “efeitos da mentira” alimentados pelo duplo critério da complacência, que impedem a autonomia e o crescimento).

O predomínio da cultura oral é patente, explicando a dificuldade de grande parte dos estudantes africanos que vão estudar para fora com bolsa. Não estão habituados a uma tal exigência de ritmo de leitura e de pressão. Em casa, os trabalhos nunca visavam a excelência e nas avaliações prevalece um critério de mitigação: “Dado o contexto, não é mau…”.

“Subtilezas” enquadradas num proselitismo auto-desculpabilizador e avesso à crítica. Neste contexto, a cultura instalada – de cultivar o discurso vitimista em detrimento do esforço e da produção, quer de conhecimento, quer de modos de vinculação ao presente -, é um erro programado que politicamente beneficia a alguns.

O que gera tensões e leva a que os comportamentos se polarizem entre a baixa estima e a auto-indulgência como desporto nacional, num desvanecimento colectivo que tem como mecanismos principais a busca de bodes expiatórios e a catarse hedonista. Por isso são sociedades essencialmente consumistas, destinadas a estar em pane: orgulhosamente, querem ter “a autoria” sem trabalhar o suficiente para aprender os processos. Eis a contradição, gritam por soberania ancorados em sistemas de vida que os engaja na dependência.

Houve um inquérito de uma rádio à boca da universidade sobre se era prioritário fazer o curso universitário ou pertencer ao Partido. Adivinhe-se.

26 Mar 2021

Existe necessidade urgente de repensar a questão da identidade, diz Amin Maalouf

[dropcap]O[/dropcap] escritor e ensaísta Amin Maalouf, vencedor do Prémio Gulbenkian 2019 manifestou em entrevista à Lusa profunda “inquietação” pela actual situação mundial, onde deixou de existir “credibilidade moral”, e assinalou a urgente necessidade de “repensar” a questão da identidade.

“Não é uma questão simples. Não há uma solução milagrosa, estamos num mundo que atravessa um momento extremamente delicado, na minha perspectiva uma das coisas essenciais reside na necessidade de repensar a questão da identidade”, assinalou na sede da Fundação Gulbenkian, em Lisboa, onde na sexta-feira recebeu o Prémio Calouste Gulbenkian 2019 por um júri presidido por Jorge Sampaio e também justificado pela sua “promoção activa da fluidez cultural”.

Filho de pais libaneses – mãe nasceu no Egipto – Amin Maalouf, natural de Beirute, 70 anos, tem dupla nacionalidade libanesa e francesa e é apontado como um dos mais empenhados intelectuais na busca de um novo caminho de convivência multiétnica, multirreligiosa, multicultural.

No seu recente ensaio “O Naufrágio das Civilizações” (2019), vários anos após “As Identidades Assassinas” (1998), retoma a abordagem das diversas derivas e feridas do mundo presente. E no qual detecta uma relação de “causa-efeito” entre o naufrágio do Levante, a região do Mediterrâneo Oriental, do Médio Oriente, e o naufrágio de outras civilizações.

“Temos necessidade de mudar a atitude que consiste em resumir a identidade de uma pessoa a um aspecto, seja religioso, nacional ou outro, e é necessário ajudar as pessoas a assumir o conjunto da sua identidade, o conjunto da sua pertença. Quando algumas pessoas têm uma pátria de origem e uma pátria de acolhimento, é necessário que possam assumir plenamente a sua pertença às duas”, assinala o autor de “As Cruzadas Vistas pelos Árabes” (1983) e “Leão, o Africano” (1986).

O escritor, vencedor do Prémio Gouncourt em 1993 pelo seu livro “O Rochedo de Tanios” e que foi eleito para a Academia Francesa em 2011, sublinha o “importante trabalho a fazer para garantir uma coexistência harmoniosa”, que considera “o grande projecto” da época actual. “Mas tenho a impressão que não fizemos o suficiente por isso”, ressalvou.

A “má gestão” das questões em torno das identidades, em particular na região do Mediterrâneo Oriental, continua a manifestar-se, apesar de recordar que o século XX foi “desastroso” desse ponto de vista.

“Houve evidentemente a tragédia arménia, todas as tragédias que se sucederam, nem as contamos, toda essa região que era uma região de reencontro, de Sarajevo a Alexandria, de Bagdad a Constantinopla, toda essa região que tinha potencialidades gigantescas, que poderia ter sido um pólo de progresso para todo o mundo. Foi uma verdadeira tragédia o que aconteceu”, lamentou.

Na sua inquietação, Maalouf depara-se hoje com uma época de imensos sucessos, mas também de profundos fracassos, de uma ordem internacional em colapso, de um mundo árabe, “do meu Levante” como refere, que atravessa um dos momentos mais negros da sua história, da grande potência ocidental que perdeu a autoridade moral.

“Existem relações muito pouco saudáveis entre diversas partes do mundo, estamos num mundo que precisa de coexistência, de uma gestão serena das identidades, e não caminhamos nessa direcção”, sublinhou.

Lucidez é uma palavra muito presente no seu amplo vocabulário. “Temos necessidade de lucidez, frequentemente somos regidos seja por preconceitos seja por bons sentimentos… Penso ser necessário ver o mundo tal qual ele é, tentar compreender os mecanismos do problema, e tentar verdadeiramente resolvê-los”, sugeriu.

“O que me perturba sempre, e trata-se de uma característica da nossa época, é que falamos muito dos grandes problemas e temos a impressão de resolvê-los porque falámos deles. É verdade para o clima, é verdade para outras situações, falamos, os problemas estão presentes, agravam-se de uma década para a seguinte e não fazemos nada de decisivo para terminar com essa deriva”, acentuou.

O ensaísta, que viveu a sua infância no Líbano – “havia qualquer coisa no Líbano que era promissora, infelizmente a experiência não conseguiu manter essa promessa”, disse – depara-se com novos fenómenos que acentuam a inquietação que percorre a sua obra.

“Já ninguém possui uma verdadeira credibilidade moral. Nem pessoas, nem instituições, nem referências morais, estamos numa época em que tudo é posto em causa, tudo parece em vias de perder a sua capacidade de exercer uma autoridade moral. Vai da Casa Branca ao Vaticano, por todo o lado as instituições estão em profunda crise e cuja credibilidade foi abalada”, concluiu.

22 Jul 2019