A pequena saúde e a grande vida

Na sociedade mediática, a saúde (ou o seu discurso) ganhou uma importância fundamental. Nunca como hoje as pessoas foram tão levadas a tomar a saúde como um dos principais modelos de referência nas suas vidas. Como muito bem notava Susan Sontag em “Aids and its metaphors”, existe uma concupiscência, uma estranha relação entre a doença, a comunicação, a política e, consequentemente, os comportamentos.

Para além de ser de desconfiar qualquer sobrevalorização do corpo, a posse da saúde – ter saúde, como se diz – mercantilizou-se como outra posse qualquer, é traduzível por quantidades de numerário (com o que se gasta no médico, na farmácia, no ginásio, no dealer). Hoje ter saúde significa também um determinado tipo de consumo, como significa determinado tipo de comportamento, ostentação de signos, sendo que este implica também a aderência a uma específica rede consumista.

A propagação real ou mediática das doenças restringe os comportamentos (como no caso da sida), modifica os hábitos (como o fitness e o jogging), proporciona novos gadgets à indústria (como no caso da pneumonia atípica). A doença ou a sua sombra proliferam através de uma quantidade assombrosa de revistas da especialidade, hoje predominantemente travestidas em forma física e componentes estéticas.

Na televisão são cada vez mais comuns os programas sobre doenças – em Portugal, Júlio Isidro entrevistava pessoas que sobreviveram a cancros e ataques cardíacos. Por toda a parte somos confrontados com a necessidade da precaução, da prevenção, da medicação, do rastreio; entrando para o nosso quotidiano termos bárbaros provenientes da medicina e da manutenção, cujo aspecto mais inofensivo se tornou amplamente numa mercadoria. O que o corpo tomar é o que ele é, sobretudo em termos de valor social.

Chegámos, portanto, a um tempo em que a química retomou os seus direitos, interferindo em todas as esferas. Está praticamente ultrapassado a era romântica em que a psicologia abdicava da factura química, na esperança de uma cura dita “espiritualista”. Hoje não há tempo para isso e, sobretudo, escasseia a paciência. “Quero a minha felicidade já, nem que seja em pequenas doses e tenho direito a ela, porque ela está em toda a parte” (como no caso do Viagra, outro potente mutante de comportamentos, ansiedades, emoções, relações) – sente-se e diz-se.

A saúde é, portanto, fundamental. Mas convém compreender que se trata de uma saúde especial. Muito dirigida e muito bem orquestrada. Mas raramente ultrapassa o nível farmacológico, mecanicista, que encara o corpo como um ente fragmentado, como no caso do culturista que desenvolve uma relação particular com cada músculo. O equilíbrio é agora procurado na química, na localização dos problemas. As terapias de outro tipo encontram-se agora em franca decadência.

Na verdade, lidamos com uma pequena saúde, feita de preocupações históricas sobre a decadência do corpo e a proximidade da morte. Trata-se, finalmente, do modo como a sociedade em que vivemos tira proveito das angústias (umas existenciais, outras que ela própria cria) e as molda de forma a serem mercantilizáveis. Assim, alteram-se igualmente os comportamentos e regista-se uma disciplina dos corpos e dos seus horários, bem conveniente ao circular da mercadoria, de cujo estatuto os humanos se aproximam cada vez mais e alegremente, como se nisso suspeitassem da existência de uma qualquer forma primeva de justiça.

Nem por sombras estamos perante uma relação ecológica e equilibrada ou sequer perante uma reflexão mais longínqua sobre o papel da ruptura num contexto natural. Cuidamos, amedrontados, isso sim, da nossa pequena saúde, de um corpo que encaramos como estando na nossa posse ou que nos possui, mas sempre com uma visão mecanicista e não integrada desse mesmo corpo. Este é comprado nos media, nos ginásios, nos médicos, nas farmácias, nos dealers (de algum modo, a drogadicção ilegal é uma medicina alternativa e mais generalista, talvez mesmo a que, nalguns casos, mais se aproxima de alguma espiritualidade).

As pessoas desfilam pois pela senda da pequena saúde, em muitos casos servos da sua ditadura. Por ela reorganizam as suas vidas. São induzidas a fazer do exercício físico uma parte dos seus quotidianos. As vitaminas, outra. Os programas, os filmes, as notícias, o obsceno, como o exemplo da dor alheia, vendida ao minuto nos ecrãs, são os altares desta religião, que monitoriza o dia, as refeições, o sexo, o sono, as relações, inclusivamente consigo próprio. A pequena saúde ganha foros de modo de vida. E o que fica de fora? A vida, precisamente a vida, a grande vida.

6 Jan 2022

Das vidas da vida

Horta Seca, Lisboa, terça, 10 Novembro

 

[dropcap]A[/dropcap]travessamos tempo e lugar de nós mais ou menos cegos, nuvens pesadas a fazerem-se chão duro de palmilhar, vidro moído, areias movediças, pântanos sulfurosos; ao nível dos olhos instalou-se nevoeiro compacto de nos tirar horizonte, as bússolas ora baças ora em doida rotação; no entorno aquele vociferar contínuo de bandeiras misturado com o sussurrar de desgraças íntimas, a fome a morder calcanhares, o inesperado anunciado em relatórios dos serviços de inteligência a insistir que nada nos está nunca garantido, portanto. Quantas palavras serão precisas para dizer continuar?

Este texto não saiu do lote dos atrasados, dos em falta, dos ardentes. Veio de uma das muitas crises que a crise vai desovando, e estava longe de imaginar, quando conheci final e pessoalmente o Luís Cardoso há um ano redondo, que estaria agora nesta dança com ele. Gentil, desde o primeiro momento. «O plantador de abóboras (sonata para uma neblina)» envolve-nos a partir da primeira palavra-frase, possui ritmos de encantamento, leva-nos aos cenários mais ásperos como aos de seda, faz-nos trocar de pele com personagens fortíssimas, mulher, homens, e nelas incluo fauna e flora, burro, ganso, café, abóboras, rosas.

Sem nunca cometer o pecado do óbvio, sem tentar explicar, demonizar ou até descrever, mas assumindo a delicadeza do mistério vai fundo nas teias do colonialismo, como a aguarelar até a dor. Na linhagem ancestral dos grandes contadores, tudo se oferece com simplicidade líquida, de rio a rumorejar para humedecer os diálogos, para lavar o sangue, para desenhar destinos. Ergue-se devagar para dizer dessoutro doloroso processo de depuração que desembocou em país. Conta-nos de Timor, e assim não haverá outro livro, por só agora acontecer. Timor nasce neste livro. Nada mais que uma história, mas, digo eu, sem peso, nem conta ou medida, que fará História. Não há países sem pessoas, e acompanhámos, ao longe mas com intensidade, quantas se perderam para que Timor Lorosae o fosse. Como não há nações sem literatura, sem textos fundadores, rios e montanhas, marés e árvores, mão e pensamento, vontade e esforço, gestos de semear, de rasgar, de acariciar, de erguer, passos e visões. Tudo acontece por causa da gente vivíssima que aqui habita, que morrerá jamais graças ao laborioso discorrer do autor. É de crises feita a nossa paisagem, a íntima e a outra. Jamais deixaremos de andar sobre brasas, de atravessar tempestades, de nos perdermos na floresta, de olhar cada rosto da violência, de tratar o medo por tu. É a puta da vida. Seja ela maior do que a própria vida. Há que dizê-lo cuspindo nas trombas da vida: cresce e aparece! Assim afastaremos a morte, ainda que por brevíssimos instantes. Desabafo tonto: nenhuma lição se retira dos livros.

Ou melhor: o editor tira, sim. O modo como as figuras maiores deste romance andavam pelo meio das plantações, como habitavam as casas, as varandas, pegavam nos livros, se vestiam e despiam, mas também como tocavam na vida animal e vegetal, sugeriram-me de imediato a Ana [Jacinto Nunes] para pintar as portas e janelas do habitual na nossa colecção (a da capa, aqui na página). Devo confessar, com tanto desacerto a acontecer-me, que assisti em delícia ao resultado do seu encontro com o texto. O que parecia primeira proposta, revelou-se esboço e depois nova série e outra ainda, cada uma trazendo olhar distinto, em investigação de leitor a reler, a detectar o pormenor de um olhar, um sobrolho a carregar-se, sempre o rosto como palco. A escolha estava feita, mas a Ana continuou a ler com o corpo todo no papel. Se dúvidas tivesse acerca das potestades que se escondem nestas páginas estavam desfeitas a pincel.

Sequeiro, Lisboa, sexta, 13 Novembro

Acolho a nefasta memória deste dia com almoço que só não é como antes, porque a nova normalidade tende a expulsar-nos dessas maneiras de ser. Vivi nos bastidores de alguns textos, por estes dias. Alguma dor os habita, por tratarem da matéria de que somos feitos. Deixemos para depois. Quero trazer o registo contabilístico de conversas acerca da construção do texto, prazer, portanto.

Prosa, primeiro. O Joaquim [Paulo Nogueira] surpreendeu-me com romance que força os limites dos mecanismos narrativos, de recusar a reflexão sobre a forma, nem excluir o que lhe interessa, também no teatro, desconfio, a aproximação à vida, sabendo que será inevitavelmente outra coisa, que nunca a agarrará.

Como em trabalho de dramaturgia, vi-me a empurrá-lo para o risco, para o entusiasmo, para o fulgor. Conhecemo-nos há muito em contexto de trabalho vivificador na direcção da não-violência. Reconhecemo-nos agora pondo as mãos na violência.

Depois a poesia, que me atirou para as órbitas da infância, esse astro escaldante. O José Ricardo [Nunes] vem amadurecendo volume com afã de jardineiro, atentíssimo à dimensão dos canteiros, ao convívio das espécies, ocupado a distribuir as luxúrias, sem maltratar as daninhas. Incluiu os astronautas e foi isso que me pôs a voar. Mas a partilha de leituras no lugar fresco da generosidade, a trocar truques para excitar a cor do antúrio ou garantir que o carvalho atravessa o verão, na caça ao advérbio ou aos anti-climax, nos alinhamentos que servem o baixo contínuo, na perseguição do título justo, permitiu-me a mim ver mais. Sobre a cosmonáutica e o arrastar dos pés.

Horta Seca, Lisboa, quinta, 26 Novembro

Não se entra impunemente nos livros de José Emílio-Nelson. Deviam mesmo ser proibidos, garantindo assim as leituras que merecem. Ao «Putrefacção e fósforo», que me é dedicado ferindo o meu pudor, que quase sangrou agradado, segue-se «Coração Cru», intervalados com os desenhos libertinos da Bárbara [Fonte]. Libertinos, não tanto pela abundante e convivente genitália, mas pela absoluta liberdade no redesenho dos corpos. As obsessões tocam-nos ou deixam-nos, entram e saem. Uma delícia, se quereis saber. O voluminho contém a energia do mais potente explosivo, somando reflexão erudita, prosa poética, versos, momentos de puro teatro. Um índice pontiagudo com o qual assinalar a pele dos temas mais excruciantes da nossa vida conventual, portanto doce e castigada. Habitamos os corpos como lugares do sagrado, mas saberemos qual o lugar neles para a oração? Nenhum sabor, por acre ou pestilento, está excluído. Não conheço ponte mais virtuosa e desafiante que nos ligue ao absoluto. A partir da inevitabilidade marmórea do cadáver.

Horta Seca, Lisboa, sexta, 27 Novembro

Puxo duas semanas e sento-me. Nos ares rodopiam os bumerangues: lista de traduções a pulsar na direcção de várias línguas, com o Arno Schmidt à cabeça, uma ideia de texto que me queima, as conversas na margem de Deus, as micro-narrativas com o André [da Loba], o velho infanto-juvenil também com ele, a confirmação do documentário sobre livraria onde o antigo vem à tona respirar, o projecto de puro gozo a partir da cerveja, aquela colecção nova a celebrar a memória, e, por falar nisso, a investigação sobre os passos dados por Jean Moulin em Lisboa, as possibilidades entusiasmantes que chegam a cada almoço pausado há séculos e os primeiros traços firmes no desenho associativo das editoras independentes. Fuga para frente, mas às arrecuas.

1 Dez 2020

As alturas da vida I

“Não o tempo abstrato da cronologia, que é todo plano,
mas o tempo vital ou que cada geração chama o “nosso tempo” tem sempre uma certa altitude, sobe hoje acima de ontem, ou mantém o ritmo ou desce.” Ortega y Gasset

 

[dropcap]R[/dropcap]epresentamos o tempo como uma linha recta, traçada no quadro da sala de aula. À esquerda fica o passado. À direita, o futuro. Mesmo ao meio, à nossa frente, o tempo presente. Como é que o agora não coincide com os nossos olhos, mas está ali à nossa frente no quadro, no ponto zero? Esta representação é a vários títulos ilusória.

Temos de mergulhar para dentro da linha. A linha geométrica não tem interior, mas tem de ter extensão. O tempo estende-se. Não me mexi desde que comecei a escrever estas linhas para além dos dedos. E, contudo, o tempo passou. Não precisamos de entrar para lado nenhum. Estamos já no lado de dentro do tempo. Entramos já desde sempre no movimento do tempo que se distende.

Se mergulharmos para a linha das abcissas, deixaria de haver lado esquerdo a prolongar-se imaginariamente para a eternidade no passado. Deixaria de haver lado direito, a prolongar-se para o futuro. Haveria, quando muito frente e trás, se fosse uma linha recta ou subidas e descidas sinuosas se representarmos a recta como um rio sinuoso, como o caudal rápido e fluído da corrente de um rio, mas sem sabermos bem onde está a foz e onde está a nascente.

Mantidas as regras, o que para nós está à esquerda, estaria atrás de nós, seria a nascente. O que para nós, ao olhar para o quadro, está à direita, o futuro, estaria à nossa frente. Podemos imaginar que a nascente tem o leito do rio mais estreito e que a foz o tem mais largo. Mas podemos imaginar que estamos na parte estreita do rio sem sabermos se estamos a descer para a foz ou a subir para a nascente. Não importa aqui saber se estamos virados para a nascente ou a montante para a nascente. A jusante ou a montante estamos lá dentro, vamos ao sabor da corrente ou debatemo-nos a nadar ou a navegar. O que importa é que estamos na recta, na linha e não estamos de fora a olhar para o que está traçado no quadro ou na nossa imaginação.

Mas a imagem não é adequada se pensarmos que estamos lá metidos de uma forma comprimida. A compressão no tempo é de uma outra ordem. A linha do rio é a vida toda. Quando estamos num espaço fechado e estreito como um saco-cama ou uma carruagem apinhada de gente ou quando estamos no cimo de uma montanha a céu aberto, estamos metidos na mesma recta do quadro, embora não o percebamos.

Quando estamos a olhar para as nuvens a passar lá em cima, muito altas, no céu, podemos imaginar que elas estão paradas e que somos nós que nos estamos a deslocar. Cada secção da linha é tão extensa que abrange o universo e assim não tem nem exterior nem interior, não tem limite. A sua dimensão é temporal. Tudo transcorre no interior. Não tem exterior.

Mas de onde vem o tempo, para onde vai? O trânsito do tempo, o seu caudal, o seu fluxo, a sua correnteza, as suas marés, são precisamente as fases, as épocas com diferentes alturas. Mas há uma estrutura ainda mais complexa. Estamos a ver tudo à superfície e estamos a boiar, por assim dizer, e a nossa relação com a água não é só a relação com a superfície. A superfície pressupõe camadas mais profundas até atingir o fundo. Há alturas, por isso dizemos que um rio é fundo, muito fundo ou pouco fundo. A navegação pressupõe diversas alturas e por isso é perigosa consoante a altura dos cascos e a natureza da navegação. É no mergulho e na profundidade que vemos diversas correntes tridimensionais com diversos lençóis de água e numa relação entre superfície e fundo, imersão e emersão, afundamento e naufrágio, vinda à superfície. A vida implica a compreensão desta representação de ir ao fundo das coisas que não é apenas uma ideia da espeleologia, mas do mergulho, formas de descida até ao fundo do mar e do rio. E subidas formas de emersão à superfície. Ficar escondido do inimigo, os submarinos, os homens rã, os tesouros, o mundo das sombras. O que está escondido no fundo do mar.

26 Jun 2020

Todos diferentes, para sempre iguais

“Those thinkers who cannot believe in any gods often assert that the love of humanity would be in itself sufficient for them; and so, perhaps, it would, if they had it.”
G.K.Chesterton

 

[dropcap]A[/dropcap] vida, então. Continua suspensa, nublada, incerta como aqueles dias em que o sol surge a espaços apenas para contrastar com o cinzento. E a verdade é que de certo modo já nos resignámos a estes novos passos, o que não será necessariamente mau. Falamos de uma “nova normalidade” quase sem angústia, conseguindo prever os caminhos que a partir de agora se nos oferecem.

Mas e a vida. Mas e nós, nós a espécie humana que emerge destas trevas inesperadas – nós, o que fazemos nós, como ficaremos? É verdade que podemos retirar algum conforto das manifestações de afecto e reconhecimento do outro que surgem por todo o lado. São reais e muitas delas verdadeiramente úteis. Mas será que chegam e servem para nos inocularem com o vírus benigno do optimismo?

Permitam-me que vos lembre hoje da realidade. Agora mesmo, sob a minha janela, vejo um carro funerário parar à porta do Instituto de Medicina Legal, situado ao lado da minha casa. É um memento mori permanente, de pedra, em franca dissonância com a beleza da cidade que consigo avistar. Mas está lá. E vejo dois homens de batas azuis transparentes e máscaras sobre os trajos fúnebres, entregando uma, duas urnas. Nem na mais arreigada distopia pensei assistir a um espectáculo semelhante. Mas existe e entristece-me e lembra-me, como um golpe de sabre, o mundo em que eu vivo e como agora se pode morrer.

Morremos então de outra maneira, asséptica e distante. E como vivemos? Eis alguns exemplos do que também se está a passar: em Espanha, uma mãe solteira com dois filhos é “convidada” pelos vizinhos a mudar de casa porque trabalha num supermercado. Em França, um médico queixa-se de que o seu carro é constantemente vandalizado por isso mesmo: por ser médico. Em Itália há um enfermeiro que tem de despir a roupa de trabalho para se vestir “à civil” (palavras do próprio), para evitar insultos e confrontos físicos com quem encontra pelo caminho – vizinhos e conhecidos incluídos. Ainda em França, vários inquilinos de um prédio “convidam” – outra vez – médicos e enfermeiros a não tocarem em nada, nem mesmo campainhas. Sobre o tristíssimo episódio dos idosos apedrejados em Espanha já nem apetece falar.

Por cá, a Junta de Freguesia de Alcobaça e Vestiaria colocou cartazes que pedem aos fregueses para denunciar– o verbo é este e está lá escrito – à polícia concentrações de pessoas, em nome da segurança e da saúde pública. E é provável que haja mais iniciativas semelhantes.

Noutro registo, e porque há sempre uns que choram e outros que vendem lenços, a loja da Hermés na China facturou no dia da sua abertura e em plena quarentena cerca de dois milhões e meio de euros.

Sim, amigos: aplaudimos os que apedrejamos e vice-versa. Gostamos de policiar e sermos policiados. Há sempre alguém que espera lucrar de alguma forma com a desgraça. Eu não tenho particular gosto em ser Cassandra nem sequer possuo ou me interesso por oráculos. Mas uma coisa parece-me certa: depois destes dias e como sempre continuaremos iguais, demasiado iguais.

22 Abr 2020

Não sejas parvo, desiste

[dropcap]O[/dropcap] mundo, como se sabe, é horrível.
A vida não passa de um fenómeno de uma fragilidade patética que, para se alimentar, precisa de o fazer à conta de outra vida.

Na espécie humana, a existência decorre em multidão. Somos inevitavelmente gregários. O indivíduo é uma ficção. E esta é uma constatação asquerosa.
Lutar? Para quê? Para se desiludir no caso de vencer.
Desistir? Logo. Só vale a pena termos o que nos é dado e nunca o que conquistamos.

O amor nunca salvou ninguém. Pelo contrário, é o tema das mais terríveis tragédias, dos mais absurdos dramas ou das mais ridículas comédias.

Qualquer assomo de beleza é sempre contrariado por um pensamento que o emporcalha de vulgaridade.
Qualquer estímulo, quaisquer acções, revelar-se-ão um desperdício de energia.
Qualquer alegria será assombrada pela dúvida, pelo chiste ou por uma insuportável ressaca.

Há um buraco no meio de ti, um abismo insondável no fundo de qual nada encontrarás.
Nunca serás o que almejas ser, se almejares ser alguma coisa.
A tristeza, o desespero, a dúctil feiura, uma vida vergada pelo remorso de existir e a angústia de ser — isto sim, vale a pena!

Não sejas parvo, desiste — é que a alma… não existe.

12 Dez 2019

A vida ao longe

[dropcap]A[/dropcap] vida tem muitas variantes e no Brasil multiplicam-se mais ainda do que em Portugal. Marquinhos vivia numa chácara no meio do mato a mais de quatrocentos quilómetros a oeste de Porto Alegre, com a mulher e duas filhas. Andava mais de meia hora a cavalo para ir até outra chácara, para concertar ou negociar alguma coisa. Vivia de pequenos concertos que fazia em toda a região, para além de cuidar da criação e das hortas, junto com a mulher. Tinham patos, galinhas e inúmeros vegetais. Não criavam animais de maior porte, por ser mais difícil de manter. “Criar porcos é pra gente grande!”, dizia. O cavalo era o animal mais imponente da casa. Tinha três cachorros – antes foram cinco – que vigiavam a casa e o galinheiro, pois além dos gatos bravos também abundavam as aves de rapina. O maior problema, porém, eram as cobras venenosas, que atacavam os animais, tendo já matado dois cachorros que Marquinhos muito estimava. As filhas, uma de 13 anos e outra de 9, andavam mais de meia hora para apanhar um pequeno ônibus que as levava à escola. Quando era preciso fazer compras, Marquinhos atrelava uma pequena carroça ao cavalo e lá ia uma meia hora até ao pequeno mercado, junto a uma povoação com meia dúzia de pessoas e posto dos correios. Embora longe, a uns cinquenta quilómetros, as cidades mais perto eram Rosário do Sul e São Gabriel.

Marquinhos tinha 31 anos, sempre viveu por estas bandas e cresceu como um verdadeiro gaúcho, a cavalo, na pampa, como se diz no interior. Quando criança e jovem adolescente, chegava a ir com o pai em viagem até à Argentina e foi lá que, numa dessas viagens, conheceu Rosário, rapariga um ano mais nova, que se tornou sua mulher, regressando com ele para o interior do Rio Grande do Sul. A chácara aonde vivem é arrendada, não lhes pertence.

Marquinhos não teme ser despejado, mas se um dia tiverem de sair dali, não haverá falta de chácaras para arrendar, “o mundo é muito grande, e a pampa mais ainda”, dizia. “As pessoas não imaginam o que se consegue fazer com o céu azul por cima e um cavalo”.

Invariavelmente começava o dia, bem cedo, partilhando um chimarrão com a mulher, qualquer que fosse a estação do ano. O sabor líquido da erva quente e acre ajudava a reflexão. Por vezes, ficavam somente em silêncio olhando uma para o outro, como se tentassem descortinar quem eram, ou as diferenças em relação ao que foram, outras ficavam em sintonia com a paisagem lá fora, mas de modo geral falavam sobre a vida, sobre as filhas e o que tinham para fazer, partilhando a cuia. Marquinhos falava quase sempre como se fosse velho: “A casa não tem internet nem computador. Essas coisas modernas não nos fazem aqui falta. O que me fazia falta era um burro, para não desgastar o cavalo com a carroça.” Fez apenas a escola básica, mas gostava que as filhas pudessem ir mais longe. “Esta vida ao longe da cidade não é para gente nova.” Tinham um pequeno televisor que transmitia meia dúzia de canais e Marquinhos via que as filhas se entusiasmavam com a vida da cidade grande. “Aqui a vida não tem futuro, é tudo muito atrasado… eu gosto desta vida, e também não conheci outra, mas as meninas assistem a outras vidas pelo televisor e sentem vontade de fazer parte desse mundo.”

Nos seu dia-a-dia pouco havia para não fazer. Descansava ao domingo, sim, mas havia sempre o que fazer. Para Marquinhos viver era fazer alguma coisa. Não conseguia sequer imaginar uma vida parada, sentada a ler, a assistir televisão, a botar conversa fora. Consertava algo na casa, nas cercas, carregava algo de um lugar para outro, ia às compras, cortava lenha, plantava as sementes na terra, levava comida aos animais, ou então estava com a mulher e com as filhas. O tempo que ele considerava para ele, precioso, o seu tempo só, era quando saia a cavalo. Como dizia muitas vezes, com o céu azul por cima e um cavalo, ao longe, como gostava de dizer que era a sua vida.

24 Set 2019