Parte 12. Deus somos nós, desta vez não trago notícias reconfortantes

O Cinema é um formato belo e único. É simultaneamente um jogo e um transformador desse mesmo jogo. Nesta série, a autora e pensadora visual, Julie Oyang, apresenta 12 realizadores chineses, as suas obras e as suas invenções estéticas, que acabam por se revelar as invenções estéticas de antigos filósofos

 

Quando acabei de assistir à obra-prima de anime chinesa Da Hufa – que significa Grande Guardião – diferente de tudo o que alguma vez vi, fiquei sem ar e cobri-me de suores, muito, muito frios. Não consegui perceber exactamente o que é que me tinha posto naquele estado. Talvez estivesse muito cansada, facilmente manipulada e desejando sê-lo – desta vez, não por mentiras – mas pela honestidade.

Um guerreiro chamado Da Hufa vai salvar o seu príncipe de uma cidade opressiva governada por um falso deus. Da Hufa vai ter de derrotar o deus e os seus homens e, neste processo, descobre uma conspiração pelo poder.

Para os espectadores com menos de 18 anos, este anime pode ser mais do que os habituais filmes assustadores e aparentemente nostálgicos, passados em sublimes paisagens orientais. Muitas das personagens que surgem na tela têm um contorno negro e intrigante, pleno de horror e de mistério. O argumento tem um toque Zen de descontração e de humor contundente, forte e arrojado como a parte visual. Cada fala é arrepiantemente impiedosa e certeira de forma a realçar todos os cambiantes do pânico que nos fere no sítio certo e que nos faz seguir em frente. Tal e qual uma boa massagem aos pés.

O nosso protagonista, o Grande Guardião, parece um ovo vermelho gigante, um mestre de Kongfu que se expressa de forma espirituosa e poeticamente cómica, sempre que se confronta com um problema. O príncipe é um reflexo hilariante de si mesmo. O Povo dos Amendoins não é humano, mas uma criação do grande deus. Têm de comprar olhos e bocas, pô-los na cara para parecerem humanos e querem ser admirados. No entanto, a verdade é que só recebem ordens de outros e vivem uma vida de mentira, a tal ponto que querem produzir uma pedra preciosa, resultado de uma doença que terão de contrair, para a entregarem como oferenda ao deus que os criou. Aqui temos um retrato fiel dos modernos funcionários de escritório. Entretanto, o descendente de Pao Clan recebeu do grande deus a missão de exterminar o povo dos amendoins e fez deste objectivo o seu ideal, pelo qual pode arrancar o próprio coração. E como é que é o grande deus? Bem, nós sabemos como é que são os deuses, não sabemos?

Cada personagem é uma metáfora estilizada, tão aterradoramente real que não sabemos se havemos de rir ou de chorar porque a cada personagem do filme corresponde uma personagem real que caminha ao nosso lado.

Que mensagem nos está a ser transmitida? Talvez que Deus é um brincalhão, mas não teremos todos nós um pouco de deuses ardilosos e manipuladores?

Ficam muitas perguntas sem resposta ao longo do filme. Para mim, este anime pretende colocar um grande ponto de interrogação no Legalismo, a influente escola filosófica que modelou a China a par do Confucionismo e do Taoísmo.

O Legalismo é uma filosofia dominante concebida e delineada pelos senhores feudais. A ideia central do Legalismo é que a governação deve ser sempre feita com mão de ferro: recompensar com um castigo e punir com o terror.

Famosas citações legalistas para reter na memória:

🌸 Aquele que é vaidoso e se deleita com as suas capacidades será sempre enganado pelos seus inferiores. Quando apresenta argumentos e gentileza, os seus inferiores aproveitam-se dessas capacidades.

🌸 Os ministros podem ser comparados às mãos: se se erguerem podem cuidar da cabeça; se se baixarem podem cuidar dos pés.

🌸 As pessoas, nas bem ordenadas eras do passado, defendiam a lei pública e ignoravam as estratégias privadas; focavam as suas intenções e unificavam as suas acções. Tudo o que faziam tinha por objectivo servir o governante.

{Julie Oyang é uma autora de naturalidade chinesa, artista e argumentista. É ainda colunista multilingue e formadora em criatividade. As suas curtas metragens foram seleccionadas para o Festival de Vídeo de Artistas Femininas e também para a Chinese Fans United Nations Budapest Culture Week. Actualmente, é professora convidada da Saint Joseph University, em Macau. Gosta especialmente de partilhar histórias inesperadas, contadas a partir de perspectivas particularmente distintas. Divide a sua vida entre Amsterdão, na Holanda, e Copenhaga, na Dinamarca.}

JULIE OYANG  Writer | Artist | Namer of clouds
www.julieoyang.com | Instagram: _o_writes

19 Mai 2022

Big Fish & Begonia

ou Tudo o que a Felicidade Precisa é de se Perder na Água

O Cinema é um formato belo e único. É simultaneamente um jogo e um transformador desse mesmo jogo. Nesta série, a autora e pensadora visual, Julie Oyang, apresenta 12 realizadores chineses, as suas obras e as suas invenções estéticas, que acabam por se revelar as invenções estéticas de antigos filósofos.

 

O filme de anime chinês Big Fish & Begonia é um espectáculo intensamente visual. Baseado no conceito de reencarnação, desenrola-se num mundo místico habitado pelos Outros, entidades que velam pelo mundo humano ao aceitarem as Leis da Natureza.

Uma rapariga chamada Chun é submetida ao rito de passagem ao entrar no reino humano por sua conta e risco. Quando é confrontada com um acontecimento fatal, é salva por um rapaz. O jovem acaba por se afogar no mar.

Sentindo-se culpada, Chun procura o Guardião das Almas, que se assemelha a um dragão chinês agachado – uma criatura mítica que resulta do cruzamento de espécies – a quem pede que ressuscite o rapaz. Ela paga este favor com metade da sua vida. Ao interferir com o curso dos acontecimentos, Chun provocou inadvertidamente repercussões no seu próprio povo. Nesta altura, a história sofre uma reviravolta sombria e Chun apercebe-se que tem de sacrificar todos para salvar o homem que ama e que tem de abdicar da sua obrigação como guardiã da ordem natural.

A um nível muito mais profundo, Big Fish & Begonia celebra a fluidez da água: o grande mestre Tao visualizado por Zhuang Zi, o influente filósofo chinês que viveu no séc. IV A.C.

O pensamento de Zhuang Zi foi introduzido na história através do nome do protagonista masculino. “Um peixe do Oceano Norte que dá pelo nome de Kun,” com um tamanho “demasiado grande para ser medido,” como se pode ler na legenda do ecrã de abertura. Numa introdução assombrosa, Chun, a protagonista feminina, fala do futuro, agora com 117 anos de idade, e diz acreditar que a existência de cada ser humano se assemelha a um peixe gigante que nada no mar. Recorda, da sua juventude, grandes peixes a conversar enquanto caíam do céu para saudar a constância da Mudança, o conceito Taoista de ordem natural. A Mudança está constantemente em acção, causando a metamorfose fluída. Com um design que lembra faiscantes gravuras em madeira ukiyo-e, o filme faz-nos mergulhar num tempo primordial em que a água cobria a superfície da Terra e as almas dos seres vivos vagueavam em forma de peixes gigantes em busca de significado e de respostas.

A “Begónia” é uma poderosa árvore cor de rosa vivo que nasce do poder colectivo dos Outros – que não é estranha à natureza, mas sim uma parte essencial. O poder colectivo dos Outros protege misteriosamente as espécies cruzadas em espaços multi-facetados, onde se entrelaçam os mundos conhecidos e os desconhecidos.

Há duzentos anos, Zhuang Zi escreveu: “Os homens veneram o que se encontra dentro da sua esfera de conhecimento, mas não se apercebem o quão dependentes estão do que se encontram para além disso.” A sua visão do mundo era vertiginosa e serena, uma mistura holística da terra, do vento, do fogo, da madeira, do metal e da água.

Os elementos da vida ocupam cada reino, numa míriade de infinitas e sedutoras tonalidades de azul à qual está ligado o destino de cada ser vivo.

“Recompensas e castigos são a pior forma de educação,” escreveu Zhuang Zi. O domínio cintilante e espontâneo das espécies cruzadas, envolve cada objecto com o brilho da possibilidade: a possibilidade de ser feliz. Um acto altruísta conduz a outro, de forma a procurar a felicidade escondida à espera de ser encontrada.

Onde está Tao? Zhuang Zi respondeu: “Em lado nenhum, não existe… Está no mijo e na merda.” A tristeza e a felicidade são duas faces da mesma moeda. A Felicidade é parte das Leis da Natureza “demasiado grande para ser medida” e não pode ser, nem deve ser, reclamada ou possuída.

Citações famosas de Zhuang Zi para reter na memória:

🌸 A felicidade é a ausência de luta para a alcançar.
🌸 Agarramo-nos aos nossos pontos de vista, como se tudo dependesse disso. No entanto, as nossas opiniões não são permanentes; como o Outono e o Inverno, vão gradualmente passando.
🌸 Reconheço a alegria dos peixes na água através da minha própria alegria, enquanto vou caminhando ao longo do mesmo rio.
🌸 Segue o curso dos acontecimentos e deixa a tua mente ser livre. Mantém-te centrado, aceitando o que quer que faças. Isto é o mais importante de tudo.
🌸 Onde é que posso encontrar um homem que se tenha esquecido das palavras para conversar com ele?

{{ Julie Oyang é uma autora de naturalidade chinesa, artista e argumentista. É ainda colunista multilingue e formadora em criatividade. As suas curtas metragens foram selecciondas para o Festival de Vídeo de Artistas Femininas e também para a Chinese Fans United Nations Budapest Culture Week. Actualmente, é professora convidada da Saint Joseph University, em Macau. Gosta especialmente de partilhar histórias inesperadas, contadas a partir de perspectivas particularmente distintas. Divide a sua vida entre Amsterdão, na Holanda, e Copenhaga, na Dinamarca.}

 

JULIE OYANG Writer | Artist | Namer of clouds
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5 Mai 2022

Quatro filmes de ficar com água na boca

O Cinema é um formato belo e único. É simultaneamente um jogo e um transformador desse mesmo jogo. Nesta série, a autora e pensadora visual, Julie Oyang, apresenta 12 realizadores chineses, as suas obras e as suas invenções estéticas, que acabam por se revelar as invenções estéticas de antigos filósofos.

Os chineses acreditam que é importante equilibrar o yin e o yang no nosso corpo, e esse equilíbrio pode ser alcançado se ingerirmos os alimentos certos. Os alimentos yang podem ser doces, picantes e acres e têm cores quentes como vermelho e o laranja. Muitas das vezes, crescem no solo em ambiente seco. São disso exemplo a batata, a papaia, a malagueta e a carne de borrego. Ao contrário, os alimentos yin são mais amargos e salgados e geralmente têm um maior grau de humidade, costumam ser verdes ou de cores frias. Estes alimentos por norma crescem em ambiente húmido. Entre os alimentos yin podemos encontrar o pepino, o tofu, o lótus e os legumes verdes. Para além disso, a forma como se cozinha pode ser mais yin ou mais yang. Fritar e assar é considerado yang, ao passo que cozer em água ou vapor é tido como yin. Esta antiga escola de pensamento é conhecida como Taoísmo, na qual a Medicina Tradicional Chinesa é em grande parte inspirada.

Quer seja um gourmet ou um fã da cozinha chinesa, pode celebrar as artes culinárias e familiarizar-se com a filosofia chinesa através destes filmes maravilhosos. Está na hora de trocar as pipocas por alguns saborosos dumplings e noodles!

Eat Drink Man Woman (1994)

O Chef Chu, pai de três filhas, cozinha-lhes todos os domingos banquetes deliciosos. Enquanto estão à mesa, discutem as mudanças ocorridas nas suas vidas, a que assistiremos ao longo do filme. A cena de abertura é espantosa, consiste em sequências de preparação dos alimentos, filmadas em grandes planos. Por oposição à facilidade e ao talento com que o Chefe confecciona refeições deliciosas, o realizador analisa o isolamento emocional dos protagonistas, revelando a verdadeira intenção do filme.

Rice Rhapsody (2004)

O Chefe sino-americano Martin Yan interpreta Kim Chui, dono de um restaurante que enfrenta algumas dificuldades e não consegue competir com o congénere de maior sucesso, de que é proprietária Jen, a personagem principal do filme, famosa por confeccionar o melhor arroz de galinha Hainanese da zona. Entre os dois chefes começa a crescer uma grande rivalidade quando Kim Chui cria um prato semelhante, o arroz de pato Hainanese, que se torna rapidamente muito popular na cidade. O filme atinge o auge durante um concurso gastronómico onde se procura eleger o melhor prato tradicional de Singapura. Mas um outro sub-enredo atravessa o filme, centra-se na luta travada por Jen para aceitar o facto de os seus três filhos serem gay.

The Chinese Feast (1995)

As competições gastronómicas são um tema recorrente em The Chinese Feast. Quando Au, dono de um restaurante, é abordado pelo representante de uma empresa que quer transformar todos os restaurantes chineses num monopólio, faz-lhe frente e propõe-lhe um desafio; confeccionar o impressionante Banquete Imperial Manchu ou perder o restaurante. Decide então reunir uma equipa de Chefes de topo, na qual se inclui o Master Chefe Kit, que precisa de trabalhar com a mulher para ressuscitar o seu amor pela culinária. As cenas na cozinha são incrivelmente inspiradoras e só nos apetece começar a cozinhar imediatamente.

The God of Cookery (1996)

Nesta comédia cantonesa, o célebre Chefe conhecido como ‘Deus da Culinária’ é o reflexo da moderna indústria da gastronomia. Depois de ter sido expulso por fraude, e impedido de cozinhar, Chow ingressa secretamente numa escola de culinária para aprender a dominar esta arte. Depois regressa a Hong Kong pronto para se vingar dos seus rivais e voltar a ganhar o direito ao epíteto ‘Deus da Culinária’.

Citações famosas sobre comida para guardar na memória:
🌸 Para os governantes, o povo é o paraíso; para o povo, o paraíso é a comida
🌸 Governar um grande país é como cozinhar um peixe pequeno – se for muito manuseado vai estragar-se.
🌸 A forma com que cortas a carne reflecte a forma como que vives.
🌸 Em terra nascem três tipos de criaturas. Algumas têm asas e voam. Outras têm pelo e correm. Outras ainda movem os lábios e falam. Todas elas precisam de comer e de beber para sobreviver.
🌸 Falar não cozinha o arroz.

 

{{ Julie Oyang é uma autora de naturalidade chinesa, artista e argumentista. É ainda colunista multilingue e formadora em criatividade. As suas curtas metragens foram seleccionadas para o Festival de Vídeo de Artistas Femininas e também para a Chinese Fans United Nations Budapest Culture Week. Actualmente, é professora convidada da Saint Joseph University, em Macau. Gosta especialmente de partilhar histórias inesperadas, contadas a partir de perspectivas particularmente distintas. Divide a sua vida entre Amsterdão, na Holanda, e Copenhaga, na Dinamarca.}

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22 Abr 2022

Parte 8.: “As pessoas nascem boas”

O Cinema é um formato belo e único. É simultaneamente um jogo e um transformador desse mesmo jogo. Nesta série, a autora e pensadora visual, Julie Oyang, apresenta 12 realizadores chineses, as suas obras e as suas invenções estéticas, que acabam por se revelar as invenções estéticas de antigos filósofos.

O título foi retirado de um excerto da formação da moral humana de Confúcio. Confúcio nasceu no séc. VI AC, um homem que acreditava que a bondade se podia alcançar desde que os homens fossem distribuídos pela ordem hierárquica correcta.

Nascida em Pequim em 1982, a realizadora sino-americana Chloé Zhao conta que foi uma adolescente rebelde interessada no desenho de manga e na escrita de fanfiction. Quando tinha 15 anos, os pais puseram-na a estudar num colégio interno no Reino Unido. Após este período frequentou a Universidade e a escola de cinema nos EUA.

Muitos dos seus filmes retratam o Oeste Americano, que Zhao compara à Mongólia interior, um local que ela visitava nas viagens escolares. Ambos os locais estão impregnados de mitos e liberdade, dominados por extensões amplas e paisagens acidentadas. A sua primeira obra, Songs My Brothers Taught Me (2015), foi filmada na reserva Sioux de Lakota. A segunda, The Rider (2017), que conta a história de uma jovem vedeta de rodeo, estreou no Festival de Cannes, e recebeu nomeações na 33ª edição dos Independent Spirit Awards. O filme mais recente de Zhao, Nomadland (2020), que nos fala dos americanos que vivem em caravanas e que procuram trabalho sazonal, ganhou o Globo de Ouro para melhor realização.

Nomadland parece ser uma experimentação social em escala cinematográfica, uma fantasia onde a sabedoria oriental e o modelo ocidental se combinam harmoniosamente. Uma história sobre todos aqueles que têm fé e coragem para se apegarem ao bem que têm dentro de si e para defender a bondade dos outros, por mais difícil que isso seja.

Parte de uma premissa lógica, relacionada com a transformação económica causada pela recessão financeira de 2008, que fez com que muitas pessoas tenham perdido as economias, os negócios, as casas e que tenham ficado impossibilitadas, especialmente as mais idosas, de obter empréstimos para comprar uma casa mesmo que modesta. O sonho americano – que é na verdade uma máquina económica – em transformação. Estas pessoas viram-se obrigadas a ir para a estrada viver em caravanas e em camiões, deambulando em busca de trabalhos temporários e sazonais no Midwest americano. São os sobreviventes do séc. XXI. Os novos Beduínos”.

Em vez de apresentar o colapso da vida humana através de uma perspectica trágica, Zhao retrata a bondade radiosa e a esperança que guiam as pessoas pelo caminho da construção de uma vida nova. A arte torna-se vida e a vida torna-se arte, o princípio básico da filosofia estética oriental fala bem alto no coração do Oeste Americano.

A vida como fonte de beleza cristaliza-se através dos seus três filmes. O estilo de vida minimalista e austero enriquece as profundezas do ser. A virtude, por assim dizer.

Isto traz-nos inadvertidamente ecos da virtude em Aristóteles: os mais virtuosos não procuram agir.

Citações famosas de Chloé Zhao para guardar na memória
🌸 Um realizador de documentários não pode deixar de usar a poesia para contar uma história. Trago verdade à minha ficção. Estas coisas andam a par e passo.
🌸 Modifico-me constantemente. Esta característica tem aspectos negativos porque estou sempre a tentar descobrir quem sou, mas ao mesmo tempo, sou abençoada pela ausência de um pano de fundo estático.
🌸 Sou fortemente influenciada pelo cinema europeu e pelo cinema americano, mas quanto mais avanço na minha carreira, mais dou comigo a olhar para trás à procura da inspiração oriental.
🌸 Infelizmente, acho que por ter andado tanto à deriva quando era criança não criei um sentimento forte de identidade. Não me sinto em casa em lado nenhum e, por causa disso, acho que sou mais ou menos um camaleão.
🌸 Algumas das pessoas mais trabalhadoras e mais generosas que conheci em toda a minha vida não queriam votar nele. O meu desejo é compreender o outro lado, humanizar e retratar as lutas de muitas das pessoas que votaram em Trump.
🌸 A não perder:
2015 Songs My Brothers Taught Me
2017 The Rider
2020 Nomadland

 

{Julie Oyang é uma autora de naturalidade chinesa, artista e argumentista. É ainda colunista multilingue e formadora em criatividade. As suas curtas metragens foram selecciondas para o Festival de Vídeo de Artistas Femininas e também para a Chinese Fans United Nations Budapest Culture Week. Actualmente, é professora convidada da Saint Joseph University, em Macau. Gosta especialmente de partilhar histórias inesperadas, contadas a partir de perspectivas particularmente distintas. Divide a sua vida entre Amsterdão, na Holanda, e Copenhaga, na Dinamarca.}

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25 Mar 2022

Parte 7. A mulher chinesa fatal segundo Feng Xiaogang

O Cinema é um formato belo e único. É simultaneamente um jogo e um transformador desse mesmo jogo. Nesta série, a autora e pensadora visual, Julie Oyang, apresenta 12 realizadores chineses, as suas obras e as suas invenções estéticas, que acabam por se revelar as invenções estéticas de antigos filósofos.

 

Em 1969, ao cair da noite, um homem entrou sorrateiramente numa fábrica de papel no sudoeste da China. Na fábrica estavam guardados livros proibidos, dispostos em montes, à espera de serem cortados em finas tiras de papel e depois serem reciclados. O homem que se esgueirou para dentro da fábrica queria deitar a mão a um livro em particular.

O Lótus Dourado – Jin Ping Mei em chinês – é considerado o quinto romance clássico, a seguir aos Quatro Grandes Romances Clássicos. A sua representação graficamente explícita da sexualidade fez com que o livro ganhasse um nível de notoriedade na China equivalente ao de Madame Bovary no Ocidente. Desde a sua publicação no séc. XVII, o livro foi banido, vendido, comprado e circulou livremente.

Aos cinéfilos estrangeiros pode ter escapado esta referência do filme de Feng Xiaogang Não Sou Madame Bovary, em parte porque o realizador não está a invocar a personagem titular de Gustave Flaubert, mas sim a mais inesquecível heroína da literatura chinesa, Pan Jinlian, do romance Lótus Dourado. O título do filme em chinês é Não Sou Pan Jinlian. Embora tanto Madame Bovary como Pan Jinlian tenham sido acusadas ao longo dos tempos de depravação moral, a natureza das suas personalidades é diferente.

Pan é literalmente uma femme fatale, com pés pequeninos e uma luxúria insaciável, treinada para cantar e tocar o tipo de música associada a artistas de reputação duvidosa. Se quisermos, uma Madame Bovary dura e expedita.

No seu filme, Feng retrata a protagonista Li Xuelian (Lótus de Neve), interpretada por Fan Bingbing, como uma mulher que tenta quebrar O Sistema. Assim sendo, o filme, à semelhança do romance Lótus Dourado, é uma história sobre o tecido social. Feng Xiaogang aborda a natureza da burocracia e a incansável luta de uma mulher contra a sociedade chinesa. Este factor faz o filme parecer político e pesado, mas a história desenrola-se como uma comédia, uma sátira mordaz ao Estado opressivo e à incompetência e indolência dos funcionários do Governo.

Feng Xiaogang escolheu dar tratamento singular às suas imagens. As cenas campestres são visualizadas através de uma forma circular, eliminando a periferia do ecrã, o que nos dá a sensação de estarmos a olhar para uma pintura chinesa ancestral, poética e deslumbrante. Quando ela chega a Pequim, a forma circular desaparece e o enquadramento passa a ser um quadrado perfeito, representando o mundo muito mais vasto onde ela se vai inserir.

Poderemos ser criticamente poéticos ou poeticamente críticos? Bem, desde os tempos ancestrais, a elite chinesa certamente terá encontrado uma forma de expressão útil e criativa para o definir.

Citação famosa de Feng Xiaogang para guardar na memória
🌸 Só os mais impulsivos podem pensar que sou um mestre. Não sou um mestre pura e simplesmente porque o nosso tempo não produz quaisquer mestres.
🌸 A não perder:
2006 O Banquete
2016 Não Sou Madame Bovary
2017 Juventude

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18 Mar 2022

Parte 6. Ang Lee: A doçura do vinagre

O Cinema é um formato belo e único. É simultaneamente um jogo e um transformador desse mesmo jogo. Nesta série, a autora e pensadora visual, Julie Oyang, apresenta 12 realizadores chineses, as suas obras e as suas invenções estéticas, que acabam por se revelar as invenções estéticas de antigos filósofos.

 

Surgiu como um dos realizadores mais versáteis, populares e aplaudidos pela crítica. Reconhecido pela capacidade de transcender fronteiras culturais e estilísticas, Ang Lee (n. 1954) construiu uma obra diversa, que inclui filmes que falam de choques culturais e globalização Eat Drink Man Woman, 1994, The Wedding Banquet, 1993), o drama de época Sense and Sensibility, 1995, o épico de artes marciais Crouching Tiger, Hidden Dragon, (2000), o filme a partir da banda desenhada Hulk, 2003, o western Brokeback Mountain, 2005, e a aventura mágica em 3D The Life of Pi, 2012.

Lee vai beber tanto à tradição filosófica oriental, como à tradição filosófica ocidental, para abordar as suas temáticas. Neste artigo vamos focar-nos na forma como ele “negoceia” os pontos de vistas orientais no universo do cinema e como de forma criativa trata questões sensíveis em Brokeback Mountain.

O filme, realizado em 2005, é uma adaptação do romance de Annie Proulx sobre a relação intensa entre dois cowboys, que se conhecem enquanto pastoreiam gado numa montanha do Wyoming, em 1963. Tanto o filme como o romance realçam a natureza complexa da relação emocional e sexual entre eles ao longo de vinte anos, durante os quais lutam contra a desaprovação social e tentam manter viva a chama do primeiro encontro.

Contudo, o filme de Lee interliga o género western com a filosofia oriental, o que permite que os espectadores vejam a homossexualidade sobre uma nova perspectiva.

A representação tradicional do cowboy no Ocidente corresponde ao arquétipo heterossexual. Esta representação vai sem dúvida colidir com o conceito “queer” de género e sexualidade. Mas em vez de reproduzir o arquétipo ocidental ou o conceito “queer”, Brokeback Mountain transporta o western numa direcção diferente e inovadora.

Em formato cinematográfico, Lee ajuda-nos a compreender a simbiose entre o conceito primordial de amizade e o conceito de ren: o ser humano enquanto ser social e não como um objecto que consome e é consumido pela sexualidade. Quando a noção de género pré-determinado está ausente, não existe necessidade de um conceito “queer” para explicar a homossexualidade.

Para ilustrar a ancestral tolerância chinesa em relação às preferências sexuais, que não coloca um rótulo na homossexualidade, vamos examinar uma conhecida pintura chinesa, os Provadores de Vinagre.

A composição alegórica leva-nos a compreender como o Taoísmo difere das outras crenças. Os Provadores de Vinagre reproduz três homens em torno de um barril de vinagre. Cada um deles representa um dos três pilares da sabedoria chinesa – o Confucionismo, o Budismo e o Taoísmo – e o vinagre representa a “essência da vida”.

Um dos homens, Confúcio, reage como se tivesse provado algo azedo, o segundo, Buda, reage como se tivesse provado algo amargo e o último, Lao Zi, reage como se tivesse provado algo doce. O Confucionismo considera a vida azeda, necessitada de regras para corrigir a degeneração humana. O Budismo diz-nos que a vida é amarga, cheia de dor e sofrimento, causados por uma ligação excessiva aos bens e aos desejos materiais. O Taoísmo vê a doçura da vida porque a considera perfeita no seu estado natural.

Citações famosas de Ang Lee para reter na memória:

• De facto, o medo torna-nos genuínos.
• Gosto de pensar que não sou categorizável.
• Um filme é pura provocação. Não é uma mensagem, não é a afirmação de um ponto de vista.
• Cresci pacificamente, à maneira oriental. Resolvemos problemas facilmente e acreditamos na harmonia. Reduzimos os conflitos, obedecemos a ordens até ao dia em que somos nós a dá-las.
• A luta de identidade representou um papel importante na minha vida.

A NÃO PERDER: 1993 The Wedding Banquet, 1994 Eat Drink Man Woman, 1997 The Ice Storm, 2000 Crouching Tiger, Hidden Dragon, 2005 Brokeback Mountain, 2007 Lust, Caution, 2012 Life of Pi

 

Julie Oyang é uma autora de naturalidade chinesa, artista e argumentista. É ainda colunista multilingue e formadora em criatividade. As suas curtas metragens foram selecciondas para o Festival de Vídeo de Artistas Femininas e também para a Chinese Fans United Nations Budapest Culture Week. Actualmente, é professora convidada da Saint Joseph University, em Macau. Gosta especialmente de partilhar histórias inesperadas, contadas a partir de perspectivas particularmente distintas. Divide a sua vida entre Amsterdão, na Holanda, e Copenhaga, na Dinamarca.

10 Mar 2022

Parte 5. O rebelde do cinema chinês

Já há algum tempo que tinha vontade de escrever sobre o trabalho de Lu Chuan, o mais talentoso jovem realizador chinês, cujos filmes se destacam pela ousadia e pelo sucesso comercial, obtido em torno de temas históricos e sociais. Embora se descreva a si próprio como inovador e corajoso, em fase de preparação para se vir a expressar como Artista, sempre que me aproximo do tópico descubro uma aura de mistério. Assim, por fim, a contadora de histórias triunfou sobre a ensaísta e dei comigo a escrever uma Entrevista Imaginária.

Lu Chuan (n. 1971) chega a horas, de óculos, observador e animado como sempre. O realizador de longas metragens, bem como do documentário da Disney sobre a vida natural, Born in China, concordou encontrar-se comigo no “metaverso”* Avenue Café.

Lu Chuan, por favor fala-me do teu novo filme de ficção científica The 749 Bureau. 2020-2021 foi uma temporada muito difícil para os realizadores chineses. Por causa da covid-19, a facturação total das bilheteiras dos cinemas chineses foi apenas de 21 mil milhões de RMB, um decréscimo de 68 por cento em relação a 2019. Foi o ano mais difícil da minha carreira. Quatro dos seis patrocinadores de 749 projectos tiveram problemas e as verbas de apoio ainda não chegaram. Para concluir a pós-produção, pedi ao produtor que me adiantasse 30 milhões e com este pedido quase o levei à ruína. De momento, não tenho a certeza se alguma vez vou conseguir acabar o filme.
Esse é o teu maior medo, não conseguires concluir um trabalho?
Penso que todos os criadores têm de enfrentar o medo, que se apresenta nas mais variadas formas. Não ser capaz de apresentar o produto final é uma delas.
Quando vi City of Life and Death (2009) – que é descrito por alguns críticos como “um épico sobre a guerra e o Holocausto com um toque Spielbergueriano – senti que estavas a lidar com outro tipo de medo: o medo pela Humanidade, enquanto artista-observador.
City foi um tremendo sucesso de bilheteira na China, mas também conseguiu reunir em igual medida a indignação do público e da crítica. O filme conta-nos a história do Massacre de Nanjing (também designado por Violação de Nanjing, 1937-1938) a partir da perspectiva de um jovem soldado japonês.

Porque é que escolheste um tema tão controverso, anjo inseguro?
O Massacre de Nanjing permanece uma ferida aberta na nossa memória. Às vezes é necessário fazer uma abordagem radical para tratar uma ferida e fazê-la sarar. A minha abordagem é olhar para a ferida sem a julgar. Todo o processo foi um ritual.

Particularmente, quando concluíste a cena das mortes brutais no campo de batalha com a celebração ritual dos vencedores japoneses…
Acredito que foi o que aconteceu em Nanjing. Estas mortes rituais indicam o extermínio de um animal ou de um ser humano num contexto religioso, mas não sacrificial (Sacrifício), já que o propósito das mortes rituais não é presentear a divindade, mas aplicar o sacrifício (o seu sangue ou os seus membros) a uma finalidade religiosa de ordem prática. Neste caso, o propósito religioso é o Estado Nação. O Estado Nação nega o humanismo ao colocar a ênfase na nação e no país. É nestas circunstâncias criadas pelo homem, que nós humanos justificamos a nossa violência. Os assassinos tornam-se heróis dependendo do contexto. Desta forma os seres humanos são assustadores, aterradores.

Com City quiseste proferir palavras desabridas e que a tua audiência as escutasse da mesma forma. Enquanto artista, também tratas temas mais leves?
Born in China (2016) foi o melhor argumento! O mais divertido. O documentário da Disney sobre a natureza conta a história de famílias de animais, nas quais se inclui o nosso tesouro nacional, o panda. Os animais não andam armados, não beijam raparigas, não se exibem pelas ruas nem posam para os jornalistas, nem outras coisas do género. Por vezes, quase parecia uma crítica à humanidade, como o Triunfo dos Porcos, estás a ver? Mas os animais não fazem isso. É sempre prejudicial projectar as nossas emoções nos animais, quer seja para um bom ou para um mau propósito. Os bons e os maus valores humanos estão completamente relacionados com o contexto. Born in China é realmente uma belíssima fábula.

Este ano, em Setembro, Hangzhou vai ser a terceira cidade chinesa a receber os Asian Games. Vais seguir as pisadas de Zhang Yimou que se celebrizou nas artes performativas ao dirigir espectáculos grandiosos. Quais são os teus planos?
Espero levar à cerimónia um ambiente “ritualístico”, vívido e caloroso. Hangzhou é a casa do gigante tecnológico Alibaba, e é uma cidade que transmite a ideia de que “a ciência e a tecnologia melhoram as nossas vidas”, uma cidade com horizontes muito largos. Acredito em tudo que quebre fronteiras. O futuro tem de ter um final feliz e afirmativo.

🌸A não perder:
2002 The Missing Gun
2004 Kekexili: Mountain Patrol
2009 City of Life and Death
2012 The Last Supper
2015 Chronicles of the Ghostly Tribe
2016 Born in China
TBA River Town: Two Years on the Yangtze

Nota tradutor – metaverso * conceito que indica uma interacção entre a realidade virtual, a realidade aumentada e o mundo físico

{ Julie Oyang é uma autora de naturalidade chinesa, artista e argumentista. É ainda colunista multilingue e formadora em criatividade. As suas curtas metragens foram selecciondas para o Festival de Vídeo de Artistas Femininas e também para a Chinese Fans United Nations Budapest Culture Week. Actualmente, é professora convidada da Saint Joseph University, em Macau. Gosta especialmente de partilhar histórias inesperadas, contadas a partir de perspectivas particularmente distintas. Divide a sua vida entre Amsterdão, na Holanda, e Copenhaga, na Dinamarca.}

JULIE OYANG
 Writer | Artist | Namer of clouds
www.julieoyang.com | Instagram: _o_writes

25 Fev 2022