Parte 12. Deus somos nós, desta vez não trago notícias reconfortantes

O Cinema é um formato belo e único. É simultaneamente um jogo e um transformador desse mesmo jogo. Nesta série, a autora e pensadora visual, Julie Oyang, apresenta 12 realizadores chineses, as suas obras e as suas invenções estéticas, que acabam por se revelar as invenções estéticas de antigos filósofos

 

Quando acabei de assistir à obra-prima de anime chinesa Da Hufa – que significa Grande Guardião – diferente de tudo o que alguma vez vi, fiquei sem ar e cobri-me de suores, muito, muito frios. Não consegui perceber exactamente o que é que me tinha posto naquele estado. Talvez estivesse muito cansada, facilmente manipulada e desejando sê-lo – desta vez, não por mentiras – mas pela honestidade.

Um guerreiro chamado Da Hufa vai salvar o seu príncipe de uma cidade opressiva governada por um falso deus. Da Hufa vai ter de derrotar o deus e os seus homens e, neste processo, descobre uma conspiração pelo poder.

Para os espectadores com menos de 18 anos, este anime pode ser mais do que os habituais filmes assustadores e aparentemente nostálgicos, passados em sublimes paisagens orientais. Muitas das personagens que surgem na tela têm um contorno negro e intrigante, pleno de horror e de mistério. O argumento tem um toque Zen de descontração e de humor contundente, forte e arrojado como a parte visual. Cada fala é arrepiantemente impiedosa e certeira de forma a realçar todos os cambiantes do pânico que nos fere no sítio certo e que nos faz seguir em frente. Tal e qual uma boa massagem aos pés.

O nosso protagonista, o Grande Guardião, parece um ovo vermelho gigante, um mestre de Kongfu que se expressa de forma espirituosa e poeticamente cómica, sempre que se confronta com um problema. O príncipe é um reflexo hilariante de si mesmo. O Povo dos Amendoins não é humano, mas uma criação do grande deus. Têm de comprar olhos e bocas, pô-los na cara para parecerem humanos e querem ser admirados. No entanto, a verdade é que só recebem ordens de outros e vivem uma vida de mentira, a tal ponto que querem produzir uma pedra preciosa, resultado de uma doença que terão de contrair, para a entregarem como oferenda ao deus que os criou. Aqui temos um retrato fiel dos modernos funcionários de escritório. Entretanto, o descendente de Pao Clan recebeu do grande deus a missão de exterminar o povo dos amendoins e fez deste objectivo o seu ideal, pelo qual pode arrancar o próprio coração. E como é que é o grande deus? Bem, nós sabemos como é que são os deuses, não sabemos?

Cada personagem é uma metáfora estilizada, tão aterradoramente real que não sabemos se havemos de rir ou de chorar porque a cada personagem do filme corresponde uma personagem real que caminha ao nosso lado.

Que mensagem nos está a ser transmitida? Talvez que Deus é um brincalhão, mas não teremos todos nós um pouco de deuses ardilosos e manipuladores?

Ficam muitas perguntas sem resposta ao longo do filme. Para mim, este anime pretende colocar um grande ponto de interrogação no Legalismo, a influente escola filosófica que modelou a China a par do Confucionismo e do Taoísmo.

O Legalismo é uma filosofia dominante concebida e delineada pelos senhores feudais. A ideia central do Legalismo é que a governação deve ser sempre feita com mão de ferro: recompensar com um castigo e punir com o terror.

Famosas citações legalistas para reter na memória:

🌸 Aquele que é vaidoso e se deleita com as suas capacidades será sempre enganado pelos seus inferiores. Quando apresenta argumentos e gentileza, os seus inferiores aproveitam-se dessas capacidades.

🌸 Os ministros podem ser comparados às mãos: se se erguerem podem cuidar da cabeça; se se baixarem podem cuidar dos pés.

🌸 As pessoas, nas bem ordenadas eras do passado, defendiam a lei pública e ignoravam as estratégias privadas; focavam as suas intenções e unificavam as suas acções. Tudo o que faziam tinha por objectivo servir o governante.

{Julie Oyang é uma autora de naturalidade chinesa, artista e argumentista. É ainda colunista multilingue e formadora em criatividade. As suas curtas metragens foram seleccionadas para o Festival de Vídeo de Artistas Femininas e também para a Chinese Fans United Nations Budapest Culture Week. Actualmente, é professora convidada da Saint Joseph University, em Macau. Gosta especialmente de partilhar histórias inesperadas, contadas a partir de perspectivas particularmente distintas. Divide a sua vida entre Amsterdão, na Holanda, e Copenhaga, na Dinamarca.}

JULIE OYANG  Writer | Artist | Namer of clouds
www.julieoyang.com | Instagram: _o_writes

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