Carlos Morais José Antropofobias Via do MeioO Fuxi Ó meus amigos, companheiros destas funestas viagens por países tão antigos quanto as estrelas e a Lua, e tão estranhos quanto o profundíssimo interior de nossas desgraçadas almas, ¿que sobressaltos ainda nos esperam, que magias secretas teremos ainda de superar, que horrores se erguerão perante as nossas pupilas dilatadas de espanto e terror? Cada vez mais perto de nossas precárias existências, uiva o monstro da guerra, que ameaça fundir de vez a humanidade com a terra, incessantemente percorrida pelo espectro esquálido da fome e pela invisível maldade de dez mil pestes. Ó maldito humano, que te crês superior à própria Natureza, mas depois te revelas, uma e outra vez, incapaz de simplesmente ordenar a tua existência e não compreendes que te encontras possuído pela inconstante ira e és escravo da tua própria ambição! Não te contentas com o jade branco ou o refulgente ouro, não há tesouro que sacie tua inextinguível sede de mando sobre os outros homens, os animais e as coisas; pois em ti habita uma eterna angústia; em ti rastejam as serpentes expulsas; por ti cresce, poderosa e impante, a fertilíssima hera do Mal! É talvez por isso que no Monte a que chamam do Veado Branco, onde um dos oito imortais em montada sagrada se evolou pelos céus rumo a Penglai, habita o fuxi, um pássaro cuja forma lembra a do galo, embora encimada por uma cabeça humana. ¿Que estranhas cópulas, que monstruosos amplexos, que terríveis procedimentos terão ocorrido para tornarem possível a existência deste sinistro animal? Não sabemos, mas basta a nossa mente extenuada atrever-se a alvitrar uma resposta, para logo sentirmos a pele percorrida por horrendos arrepios e o coração disparar em desfilada, qual cavalo selvagem fustigado pelo chicote nocturno do medo, alheio a rédeas e contenção. Que os homens se abstenham de percorrer o Monte do Veado, pois apesar de nele existirem riquezas capazes de acalmar as mais desvairadas ambições, se tiverem a desgraçada sorte de vislumbrarem um fuxi, é certo que cedo se desencadeará uma Guerra e por ela perecerão os campos cultivados, por ela serão decapitados os mansos animais, por ela serão sacrificados os melhores mancebos de duas gerações e destruída a soberba dos países. O fuxi emite um som que lembra o seu nome. Se o ouvirdes, sombria noite ou dia claro, arrepiai caminho, pois a senda onde vos encontrais é a mais certa das vias para a desgraça!
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasO tuofei A belíssima Montanha da Ovelha Negra — cujo nome ignoramos a origem ou se, de algum modo, assume as características negativas da denominação ocidental —, além do xiao, alberga nas suas encostas esmeralda uma estranha ave, a que chamam tuofei. Tendo o corpo semelhante a uma grande coruja, o tuofei distingue-se por apresentar uma face humana e ser capaz de se equilibrar na sua única perna. Além do seu fantástico aspecto, este bizarro pássaro parece apostado em tudo fazer ao contrário do que é apanágio na Natureza. Assim, mal os frutos começam a exalar o perfume da sua madurez, anunciando a chegada do Verão, os tuofeis recolhem-se nas grutas da parte mais alta da montanha e aí hibernam durante toda a estação quente. Só quando as temperaturas descem, as folhas se desprendem das árvores e os campos se preparam para vestir os mantos da geada invernal, é que os tuofeis se dignam abandonar as grutas e encher o ambiente com os seus alaridos. Dizem as crónicas ser um espectáculo extraordinário observar os tuofeis quando estes resolvem, já depois das primeiras luzes outonais terem enrubescido os céus, voltar de novo à vida. Durante os primeiros dias, assiste-se a um certo caos no bando, pois as antigas relações são desfeitas ou esquecidas durante a hibernação e aquela sociedade de pássaros com face humana parte novamente da estaca zero. Formam-se novos casais e estabelecem-se novas solidariedades. Contudo, estes processos não são simples e implicam animadas, por vezes violentas, discussões entre as aves, o que propala nos ares um som obsessivo, parecido com os que emitem as cagarras. Finalmente, quando de novo alguma ordem é restabelecida, o bando esboroa-se em grupos mais restritos, de dois ou três casais, e cada um segue a sua vida, aproveitando a abundância e segurança proporcionada por aquele magnífico ambiente. Os machos que se quedam sem companheira, por alguma razão difícil de discernir, abandonam tristonhos a Montanha da Ovelha Negra e acabam vítimas de caçadores, que vendem as suas penas a altíssimo preço. É que, segundo os especialistas, quem as usar junto ao corpo, não terá receio de tempestades, de raios, de trovões e de outras calamidades. Já as fêmeas solitárias, geralmente mais velhas, erram pelos bosques, sozinhas ou em grupo, anunciando ao mundo em inexcedivelmente belos trinados a sua profunda desdita, o que parece comover os outros tuofeis. Como paga, o resto do bando vai-lhes deixando comida e oferecendo protecção.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasO renyue Nesta peregrinação pelas montanhas da China – numa virtuosa demanda por animais nunca referidos nos compêndios do Ocidente – somos invadidos pela felicidade de aportar ao sopé da Montanha do Bambu, que se caracteriza pela profusão vegetal e pela beleza insuperável das suas encostas. Delas se inclinam árvores retorcidas sobre abismos temperados de musgos, pelos vales cabriolam rolos de nuvens, no seu íntimo repousam metais preciosos, dos quais somente o ferro ousa mostra-se, dotando a paisagem de marcas rubras sob o sol da manhã. A temperatura é amena praticamente todo o ano e do seus bosques emerge uma sinfonia vital, que causa o espanto dos homens e parece ter adquirido o beneplácito dos deuses. Além da vegetação prolífica, da Montanha do Bambu brotam numerosas nascentes de uma água puríssima, cujo caudal, ao longo de barrancos e vales, se transforma em ribeiros, cascatas e lagos. Num desses cursos de água, o rio Cinábrio, vive um peixe chamado renyu que, apesar do seu nome (peixe humano), em nada se assemelha a uma pessoa, sequer às tribos habitantes de certos subúrbios. O renyu não é uma sereia, não apresenta uma face humana, não passará de um peixe vulgar, com quatro barbatanas. No entanto, a sua carne é extremamente apreciada porque se diz ter o poder de curar ilusões. Que ilusões?, perguntará o visitante, abismado, na sua inocência, com a pretensa capacidade deste peixe de afugentar das mentes pensamentos desviantes e perigosos. Sim, respondem os alfarrábios, mas também a imaginação doce e subtil é bloqueada pela carne deste animal, impedindo a piedade e o amor. Por isso, o renyu é servido apenas a pessoas com graves problemas psíquicos, soterradas em estranhas ilusões, despedaçadas interiormente por visões tenebrosas e maléficas. Segundo o historiador Sima Qian, no túmulo do primeiro imperador da dinastia Qin ardiam milhares de velas, feitas com gordura de renyu. Tal facto tem sugerido numerosos comentários ao longo dos séculos. Alguns atribuem-no ao extremo brilho que proporciona. Mas outros consideram-no uma velada crítica às ilusões do imperador relativas à imortalidade, como se a gordura do renyu, ardendo na sua câmara funerária, finalmente o libertasse da ilusão de se tornar imortal, algo em que torrou largas fatias do tesouro estatal, uma despesa que o cadáver ali presente claramente revelara infrutífera. Poderia a gordura do renyu ter sido usada para eliminar as ilusões do imperador morto ou, simplesmente, para lembrar que a imortalidade nunca passará de isso mesmo – uma ilusão? Mestre Zuo, no seu comentário, não deixa de espetar uma ínfima alfinetada na questão: “O que se me torna menos digerível é a demanda da imortalidade por parte de alguém que acredita na vida depois da morte ou não teria gastado tantos recursos do país na construção do seu mausoléu.”
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasAnimais Fantásticos da China XXI – A Feiyi Alguns animais pertencem a um só lugar, pois as suas características estão intimamente ligadas à terra onde nasceram. São, pois, incapazes de surgir como habitantes de outros territórios. Uma vez nascidos, para sempre ali ficam como se existisse uma lei natural que os impedisse de noutro sítio existir. O mesmo fenómeno ocorre com as plantas. Contudo, outros bichos existem que não se eximem de percorrer o mundo e são mesmo capazes de se adaptar a outros habitates. É o caso da feiyi, uma bela serpente, cujas quatro asas implantadas no seu dorso lhe permitem voar pelos céus, feito que executa com vívido prazer. Um dos lugares onde podemos encontrar uma feiyi é na Montanha do Grande Lótus (assim denominada por causa da sua forma). E repare-se que esta bela mas inóspita montanha não acolhe plantas ou animais, à excepção desta extraordinária cobra, capaz de sobreviver num sítio cuja míngua todos os outros animais assusta. Avistar uma feiyi é, para alguns da escola pessimista de Wuhan, sinal de que uma tremenda seca assolará o país. Já as escolas de Emei adoptam uma postura radicalmente diferente, entendendo a feiyi como um sinal de que algo positivo ocorrerá. E lembram o episódio em que Tang, o primeiro rei da dinastia Shang, ainda antes de adquirir o mandato do Céu, terá avistado uma feiyi, facto interpretado como sinal de desgraça para a moribunda dinastia Xia. Bom ou mau presságio, a feiyi tem sido vista em diversas lugares e por variadas ocasiões. Numa lenda taoista, a feiyi aparece ligada ao culto da imortalidade e à beberragem capaz de proporcionar outras dimensões à vida. Não é claro se ela é capaz de produzir o tão almejado elixir ou se ela conduz um mestre à fonte de onde brota o licor que nos torna transcendentes, precisamente situada na Montanha do Grande Lótus. De igual e desgraçado modo, não sabemos de alguém que tenha experimentado o elixir da imortalidade – ou porque esses felizardos migram para as ilhas do imortais; ou porque vivem discretamente entre os comuns mortais sem alardear a sua relevante condição. Ao que sabemos, a própria feiyi busca continuamente fontes sábias de onde haurir vida. Quando as encontra, nelas se enrosca e suga-as até não restar uma gota. Daí que mestre Zuo tenha erguido perguntas, cujas dimensões se confundem com a própria grande muralha: “Por que precisa um ser imortal de continuamente procurar outras fontes de imortalidade? Não será o seu estado perene e infinito? Precisará este ser de ciclicamente renovar a sua condição? Poder-se-á ser imortal mas não para sempre?”
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasO yu Esta longa viagem, que a miríficos lugares nos leva e estranhas criaturas nos desvela, lentamente ensina certas ideias, expõe certos factos (imaginários ou não), que não deixam de contribuir para dissipar um pouco da névoa que constantemente se interpõe entre nós e o mundo. Mesmo se o nosso conhecimento da Natureza pouco se altera, devido à grandiosidade, complexidade e mudez do objecto, talvez seja o nosso próprio olhar, suas incidências e divagações que mereça uma interrogação, uma análise, uma investigação. Surge esta reflexão a propósito dos animais de face humana, amiudamente encontrados nas montanhas e nos vales, nos lagos e nos rios, dessa China cuja existência igualmente mergulha na bruma dos tempos e das mentes. Desta vez encontramo-nos na Montanha das Colinas Excelentes, nome misterioso para uma formação geológica que nenhuma árvore exibe, nenhuma planta alimenta, nenhuma flor a decora. As rochas permanecem nuas, cruelmente expostas a intensos banhos de sol e a uma atmosfera radicalmente seca. Talvez por isso, a Montanha das Colinas Excelentes emita um fortíssimo brilho, que encandeia que nela demorar a vista. Ora nas suas encostas mais a sul, existe um vale, a que chamam Central, onde, aliás, nasce o Vento Nordeste. Não conseguimos encontrar uma explicação para este fenómeno, de algum modo semelhante às cavernas gregas, de onde emanam os vários ventos que sopram sobre a terra. Trata-se de um estranho vale, seco como a boca de Hades, quase uma antecâmara do inferno, onde dificilmente alguma vida encontrará meios de subsistência, a não ser que se alimente de pedras e de algum minério que por ali houver. É, precisamente, nesta paisagem lunar e maléfica que se diz existir um pássaro, parecido com uma coruja, mas que apresenta uma face humana, com quatro olhos e quatro orelhas. Chamam-lhe yu, talvez por causa do som que regularmente emite e que os homens muito apreciam ouvir. Por quê?, perguntará o viajante desprevenido. É que, mal esse som atravessa os ares, mal o yu se põe a cantar nas imediações do Vale Central, logo os homens se colocam em fuga, de olhos nos chão e coração sobressaltado, pois avistar este pássaro é presságio de que uma terrível seca vai abraçar o mundo. Assim, embora dotado de um comportamento pacífico, o yu é um pássaro maldito entre os homens. Talvez estes se interroguem sobre a sua capacidade de sobrevivência num ambiente tão hostil e isso os faça atribuir ao animal a capacidade de espalhar as características do seu habitat pelo resto do mundo. O pensamento humano funciona muitas vezes por contiguidade, metonímia, de forma mágica e irracional. Como se os habitantes de um lugar pedregoso, por exemplo, tivessem de ser pessoas ariscas, desconfiadas, bicudas.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasA irrelevância do solstício Retiro o que dissera porque as palavras limitam-se a flutuar rio abaixo, obcecadas por uma deriva de perfeição. “Tu não existes”, dizias enamorada da frase rude como se eu ainda estivesse à tua frente. Certo. O que é isto de grunhir, soletrar ou escrever? Onde nos leva a ribanceira? Quando foi que tudo começou? Une-nos um espírito e um santo tão sacrílegos que Deus ruborizado se escondeu e assim permanecerá até ao fim do nosso tempo. A massa informe das coisas insiste em colar-nos as pálpebras. Dificilmente distingo, na tona da peneira, a farinha dos dias, os grânulos das noites, pedaços de almas e fímbrias de corpos. Vendado prossigo. E antolhado me recordo de ter havido uma existência qualquer. Nela bebia o húmus alcoólico e a seiva esbranquiçada de mil gerações. Então percebi a lição de me tornar poeira e fazer-me aos ventos das infinitas direcções. E nesse estado ínfimo me encontro enquanto sóbrio me disperso. Nessa condição, entrarei em teus olhos ainda que nunca me vejas. A tua mão percorrerá o ar sem me tocar. Serei o mosquito mínimo nos teus ouvidos, o zumbido persistente da matéria, a forma do abismo por atravessar. Nesse campo de mortos serei todos eles, as armas caídas e serei nada. Multidões de sonâmbulos perseguem na noite o seu próprio corpo num eterno afã de encontrar. Mesmo supondo que tal façam sem astúcia ou o uso da razão, ainda assim dormirão algemados a sonhos, dos quais pela aurora não haverá qualquer memória. Um fruto permanece por colher na glabra árvore do amor Retomo a estrada dos sentimentos desasados. É tempo de abrigar os viajantes imprudentes, ao som dos sapos que coaxam na beira dos vulcões. É impossível voar. Passa a banda irmanada, a banda apropriada, soprando a música séria dos funerais. A costumeira cavalgada de valquírias canibais. O som do sangue não respeita os desejos do silêncio, até ao vácuo da mente se sobrepõe. O oceano vomita cadáveres nas areias de um país. Só aos mortos interessa o seu nome, a sua fama, a riqueza disforme das suas gentes. Ninguém sabe o que fazer. Já pouco há de comer e de bebida um resto turvo arde bravo na garganta. Quedamo-nos sem fala, boia a mala onde dantes cabiam as nossas precárias vidas. O vírus separa as montanhas dos vales e as cidades das lezírias. Ali mesmo onde era suposto termos sido felizes. O vírus nada separa que não estivesse já separado, ainda que parecesse enroscado, ataviado de festa. Dei por um homem vestido de sol e uma mulher vestida de lua. Ele tremia gelado. Ela ardia em febre crua. Na transparência das peles, uma veia regurgitava, talvez uma verdade antiga. Tão antiga que ninguém se lembrava da sua língua. Teremos de esperar pela tradução dos tempos. E confinar os lamentos que como coro ecoam. São milhões de vozes, filhas da torre invisível que alcançou o céu. Todas elas lancinantes como espadas, cerradas como punhos, unidas como romãs. “Não entendo a tua língua”, dizias. E nada havia para entender nos gestos que a voz fazia. Serei coxo, serei cego, serei rei e vagabundo. Pintarei o céu do roxo que minha mãe me ensinou. De todo este lerdo mundo, foi a cor que me sobrou. Uma cor forte, sabor de acetona, a cobrir um invisível firmamento. Multidões de sonâmbulos perseguem na noite o seu próprio corpo num eterno afã de encontrar. Mesmo supondo que tal façam sem astúcia ou o uso da razão, ainda assim dormirão algemados a sonhos, dos quais pela aurora não haverá qualquer memória. Um fruto permanece por colher na glabra árvore do amor. Hoje o dia primará pela sua excessiva extensão e um acréscimo negativo de sombras. A luz erguer-se-á como um vício. Aproximo-me da janela, ainda nu mas já cansado, e recolho na pele o primeiro raio de um solstício. O planeta roda e em breve outros dias nascerão. Eu não ficarei na mesma. Tudo o que fiz ou desfiz, o que li ou inventei, hospital ou falésia, não chegará para o óbolo quando soar a minha hora.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasAnimais fantásticos da China XIX – O hujiao Das encostas da inominada montanha onde proliferam os jurus, desce o intenso rio Yin que se espreguiça até ao mar. Nas suas águas, densas, lamacentas, vive um estranho animal com corpo de peixe e cauda de serpente. Dão-lhe o nome de hujiao. Na realidade, é difícil definir o hujiao como sendo um peixe. Ele, com o seu corpo listado como um tigre, será talvez parente das baleias. O que, com certeza, não partilha com o nosso conhecido cetáceo é o seu tamanho, pois os hujiaos conhecidos não ultrapassam a dimensão de um gato. Nos arrabaldes do rio Yin, em aldeias de pescadores e camponeses, o hujiao é servido à mesa e a sua carne deveras apreciada. Segundo a tradição, a sua deglutição proporciona eliminar inchaços e hemorróidas, uma propriedade muito apreciada em regiões onde a gastronomia insiste particularmente nos ingredientes picantes. Mas o traço realmente espantoso do hujiao consiste no facto de, quando nasce, olhar num relance o mundo em seu redor e o mais rapidamente que pode tomar o caminho de volta ao ventre de sua mãe. Depois, só a custo de muito carinho e persuasão, esta o consegue convencer a dar os primeiros passos fora do ambiente protector do útero materno. Não se trata de um processo fácil, pois o recém-nascido não apenas tem as suas razões como consegue delas elaborar argumentos nem sempre fáceis de rebater. Contudo, a mãe, com a paciência e sabedoria de todas as mães, independentemente da espécie, faz-lhe ver a futilidade da não-existência. Finalmente, o bebé hujiao lá acede a chafurdar nas águas lamacentas do rio Yin e aí levar a sua vida. Este comportamento pós-natal não deixou de espantar os homens e incendiar algumas imaginações. Seria o hujiao dotado de uma antiga sabedoria — imanente do tempo em que humanos e animais se entendiam e trocavam segredos sobre as respectivas naturezas — que o levaria a desprezar o estado actual do mundo, tal qual ele o encontrava à nascença? Não seria então essa recusa de existir um sinal de uma superior e bem elaborada teoria, ao invés de se tratar de um mero recuo horrorizado de um animal sem consciência perante a má formação do mundo? Não sabemos. Esta extraordinária característica do hujiao não deixou, como seria de esperar, de encontrar adeptos, homens desconcertados com o estado das coisas, incapazes de encontrar um fio condutor para a sua existência que realmente fosse do seu agrado e que, cansados do sabor a gesso na boca, entendem ser sábio o hujiao por se recusar existir. Não é do nosso conhecimento a erecção de templos em sua honra ou do seu exemplo, talvez porque essa não-acção constitua a essência de quem considera não valer a pena viver. Menos radicais, outros pensadores consideram que o hujiao nunca recusou a vida, mas sim a existência tal qual ela lhe era apresentada. Assim, a sua atitude de regresso ao útero significará uma “declaração”, a saber: o mundo que me apresentais não presta, é urgente melhorá-lo. Estes reformistas vêem no hujiao o exemplo de um ser “natural”, cujo comportamento nos alerta para a desgraça que fizemos do mundo que habitamos. Mas onde, até ao momento da presentificação de outro, não temos outra opção que não seja nele viver.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasAnimais fantásticos da China XVIII – O Juru É recorrente na sabedoria antiga a importância atribuída à face humana. A fisiognomonia – ramo do saber que relaciona os traços físicos da face com o carácter – surgiu em diversas civilizações, da grega à árabe, da hindu à chinesa, passando pelo Renascimento, onde fez as delícias de artistas como Leonardo da Vinci ou Charles Lebrun. A face humana desperta noutro ser humano um complexo de emoções inextrincável. É caso para se dizer que quando se nos depara uma face “as sortes estão lançadas”, na medida em que é imprevisível que sensações, que sentimentos, que pensamentos nos atravessarão a mente e quanto isso poderá mudar as nossas vidas. Uma certa face pode ser, para cada um de nós, na ocasião certa, um Rubicão. E nada na nossa existência ficar como antes. Ora 500 lis além do monte Tianyu, que se encontra vedado a visitantes por razões mal esclarecidas, existe uma montanha cujo nome não é referido, onde habita um estranho pássaro com três pernas e a cabeça branca. Contudo, para enorme espanto de quem o vislumbra, este pássaro, a que chamam juru, apresenta uma face humana. Se o juru tivesse a dimensão de uma águia, seria algo realmente bizarro de se ver, pois a sua face teria o tamanho aproximado da face de um homem. Porém, o juru não excede o tamanho de um pato vulgar, não sendo por isso um bicho ameaçador, apesar das suas inusitadas feições. Aquela pequena face humana, dependurada de um pescoço de pato invoca uma tal miríade de sentimentos, do horror à compaixão, que ninguém é capaz de o perseguir e ainda menos de o matar. É desconhecido por isso o sabor da sua carne. De igual modo, causa algum espanto que nenhuma parte de um tão peculiar animal não seja entendida como útil para as magias dos xamanes ou para a confecção de mezinhas medicinais. Existirá, contudo, um rumor sobre um imperador muito antigo, cujo filho sofria de terríveis aflições mentais, que terá servido ao seu herdeiro uma sopa de juru, na esperança, jurada por um feiticeiro das margens do rio Amur, de uma cura que permitisse ao alienado aceder ao trono. Tal não haveria de suceder, pois o jovem príncipe não só não terá apresentado melhoras depois do horrendo manjar, como se afundou numa profunda melancolia da qual foi impossível arrebatá-lo. O feiticeiro procurou refúgio junto das tribos Miao, no oeste da China, e nunca mais dele se ouviu falar. Talvez por causa de este rumor, à mesa dos camponeses, ainda hoje se assustam as crianças dizendo-lhes que vão comer sopa de juru, na qual uma cabeça humana emerge quando a panela é mexida. “A quem vai hoje sair a cabeça?”, perguntam as avós, divertidas com as expressões de asco e horror nas caras de seus aflitos netos.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasAnimais fantásticos da China XVII – O gudiao Esta nossa demanda por terras chinesas obriga-nos, por vezes, a enfrentar criaturas de horror, cuja existência incita os homens a interrogar os deuses sobre a sua original bondade. Como podem deuses benevolentes permitir a semelhantes criaturas assombrar a terra entre os Quatro Mares onde uma humanidade valerosa se esforça por ser respeitadora e submissa aos seus preceitos e vontades? A pergunta incha de indignação quando a experiência nos diz que as principais vítimas destes seres de pesadelo são, geralmente, inocentes maculados pelo único pecado de se encontrarem em sítio funesto à hora errada. O mal tem uma inegável preferência por aqueles que, em termos de pensamentos e acções, muito pouco se encontram submetidos aos seus desígnios, nem frequentam os espaços onde os seus modos favoritos habitualmente proliferam. Tomemos o horrendo exemplo do gudiao, uma feroz besta que habita o monte Luwu, duas montanhas a leste do monte Xun. O terreno em Luwu é particularmente seco, o que limita de forma radical o crescimento de vegetação: além de ricos minerais, pouco mais se apresenta ao viajante que ousar aventurar-se por estas paragens. Ali nasce o rio Zegeng, afluente do rio Pang. Ora é ao longo do seu curso atribulado, através de pontudos rochedos e aflitivas depressões, que habita o gudiao, uma espécie de abutre cornudo, senhor de rica plumagem e que ostenta uma cauda semelhante a uma serpente. Contudo, a sua característica mais repugnante é o bico em forma de gancho, com o qual se apraz a desfazer e deglutir seres humanos, por cuja carne detém um particular apetite. Esta preferência agudiza-se quando a vítima se trata de uma criança ou uma jovem mulher. Alguns afirmam mesmo que o gudiao adquire rapidamente o vício da carne humana e, para o mitigar, não terá outro remédio que não seja caçar e absorver o almejado petisco, após o que sossega, até que os roncos inclementes do seu estômago vazio de novo o lancem na busca do seu predilecto alimento. Tal como outras bestas comedoras de humanos, também o gudiao aprendeu a imitar o choro de um bebé. E fá-lo com arte e convicção, de modo a assim atrair numerosas vítimas que, desgraçadas, só demasiado tarde reparam ter caído numa mortal armadilha. Por que razão criaram os deuses tal estirpe de criaturas e lhes permitem refocilar na carne dos inocentes? Este tipo de questão poderia causar alguma confusão nas mentes mais vulneráveis, mas valem-nos as palavras de mestre Zuo (Zuozi), inscritas na pedra: “Não compreender os actos de um gudiao equivale a não compreender os nossos próprios actos. O homem não se deve crer aparte da natureza ou superior nas suas acções aos outros dez mil seres. Se avaliarmos com integridade (cheng) o nosso coração (xin) – as nossas motivações, os nossos pensamentos, as nossas acções –, logo descobriremos que o comportamento do gudiao se queda muitos graus abaixo do nosso numa escala de iniquidades. Nós, os humanos, somos todos canibais. Da carne e da alma dos nossos semelhantes, fazemos festa e fortuna.”
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasXVI | Animais Fantásticos da China: O Huan O viajante, que da Montanha de Jade Flutuante se dirija para leste, terá de passar outras cinco montanhas até atingir o famoso monte Xun (Xun Shan), local rico em ouro e jade, cuja distribuição nos faz interrogar sobre a existência de desígnios misteriosos na Natureza, como se as coisas não fossem simplesmente o que são e por detrás da sua existência roncasse um desejo, suspirasse uma vontade, uivasse uma determinação, e elas não acontecessem meramente por acaso. No caso do monte Xun, tão excessiva riqueza encontra-se equitativamente distribuída entre a encosta norte (o jade) e a encosta sul (o ouro). Por quê, perguntará o surpreendido geólogo de tão óbvia divisão. A única resposta é dada pela mito que associa o frio do jade ao norte e o brilho do ouro ao sul. Mas então tudo se passa como se fôra o mito a arquitectar a Natureza, o que não deixa de ser um pensamento perturbante. Ora no monte Xun, além desta rigorosa distribuição de riquezas, existe um animal que tem maravilhado os sábios ao longo de várias eras. Conhecido por huan, apresenta uma forma muito parecida com uma cabra, mas com as extraordinárias características de não ter boca e de ser imortal. Segundo as crónicas, a sua imortalidade deriva precisamente de não precisar de comer para sobreviver. A inexistência de boca, por outro lado, também impedirá os vapores malfazejos de se instalarem no seu corpo e provocarem uma inevitável decadência. É claro que o huan motiva a admiração de muitos e desperta uma contida raiva nos grandes mestres taoistas cuja vida é dedicada à procura da imortalidade. Ao que consta, alguns deles optaram mesmo por habitar o monte Xun para assim poderem apreciar de perto a existência de um ser que consegue, graças a atributos naturais, aquilo que muito estudo, muita meditação, muitos elixires, muito passeio por lugares ermos ou uma vida exaurida em grutas até hoje não conseguiu alcançar. Uma das questões que assombra o pensamento destes mestres e os leva perto do desespero é não conseguirem compreender se o huan tem ou não consciência da sua imortalidade e assim avaliar se as suas acções são condicionadas ou não por essa consciência. Como passará os seus dias um animal que prescinde de alimento? Qual o objectivo de uma vida sem fim previsto, que infinitamente se arrasta pelo tempo? Terá o huan uma consciência histórica e uma memória suficiente que lhe permita usar o que presencia ao longo de uma eternidade? Por outro lado, se nos ativermos aos sábios ocidentais, navegaremos no caudal das ideias que atribuem a emergência da consciência à consciência da morte. Como então conceber consciência num ser que é imortal? Deveremos simplesmente considerar que essa consciência não existe ou, pelo contrário, admitir a possibilidade de um ser imortal desenvolver outro tipo de consciência, livre das angústias da mortalidade e da finitude. Compreensivelmente, a existência deste animal causou numerosas teorias sobre a vida, a morte e, sobretudo, a razão do desejo de imortalidade que habita certos homens. Valerá a pena ser imortal? Como condensar num instante milhares de anos de experiência? A reflexão sobre estes temas, motivada pelo huan, levou já muitos mestres taoistas a desistirem da sua busca e a tornarem-se bons confucionistas, abandonando as montanhas e passando a viver na companhia de outros homens, desistindo para sempre de uma demanda que agora se lhes afigura sem sentido.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasAnimais fantásticos da China XIII – O changyou Algures, na actual província de Hunan, existirá uma montanha referida nas crónicas como Changyou Shan. Dela se diz ser praticamente calva, por ali não medrar vegetação relevante, apesar de muita nascente, muito ribeiro e variados lagos animarem a paisagem. Esta paradoxal infertilidade da montanha — a inexistência de vegetação num lugar com excesso de água – não é explicada por nenhum dos antigos sábios, que se limitam a descrever este estranho fenómeno e nele não se detêm mais que uma linha, como se esta ocorrência fosse para eles algo de vulgar. “Não tem árvores ou plantas. Muita água.” É assim, laconicamente, que a montanha Changyou é descrita. Num desses escritos surge, no entanto, uma subtil alusão, provocada pelo deslocamento de um caracter na sequência da frase, o que possibilita outra leitura: a montanha será tão perigosa que árvores e plantas, prudentemente, ali recusam crescer. Ora nesta extensão nua de rocha, povoada de ribeiros e lagos, vive um animal que, tal como a montanha, é conhecido por changyou, muito parecido com um macaco. Apresenta, contudo, quatro orelhas em forma de leque sobre a cabeça e uma longa cauda. Felizmente, o changyou é um bicho elusivo, pois é tido por certo que, ao ser avistado, tal significa a proximidade de um dilúvio. Este facto tem sido extensivamente constatado e reportado em numerosos documentos. Um dos casos narrados refere o avistamento de um changyou, seguido de semanas de inundações; após o que outro changyou foi avistado e desta vez os rios transbordaram de tal maneira que várias aldeias foram submergidas. Talvez por isso, alguns relatos estabelecem uma relação de inimizade entre o changyou e o lendário rei Yu, que domesticou as águas, criando barragens e canais. Nessas lendas, o changyou teria tentado impedir o papel civilizador do soberano, tendo este desterrado o agourento macaco para aquela montanha estéril, onde ele desde então tem levado dura vida. Eventualmente, a existência do changyou, tal qual é descrito em duas breves linhas no Shanhaijing, poderá ter desencadeado, ao longo das transformações do imaginário chinês, a produção de variados seres mitológicos, como o Rei Macaco, da “Peregrinação ao Oeste”, entre outros deuses de compleição símia. De tal modo é temida uma aparição de um changyou que não existem relatos de caçadas ou de mezinhas produzidas a partir do seu sangue, carne, nervos ou pêlo; e nem mesmo as suas inusitadas quatro orelhas, dispostas em forma de leque, parecem ser alvo de qualquer tipo de cobiça por parte dos homens. Trata-se, portanto, de um animal que ninguém quer caçar, comer, capturar, encontrar ou sequer pôr a vista em cima.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasA Zhu As várias partidas do mundo, os lugares, as cidades, as paisagens, unicamente reivindicam espaço na nossa memória quando algum traço particular as distingue. A esses espaços fica associada uma emoção, logo ali sentida ou mais tarde emergente, que a mente, ávida de acção, guarda com deleite. Certos sítios são lembrados pela sua beleza, outros pela extravagância; mas a montanha do Salgueiro e a sua particular fauna conseguem ultrapassar estas categorias e intrometer-se no mundo dos homens de forma relevante e inesperada. É que por ali existe uma ave, com a forma aproximada de uma grande coruja, cuja aparição é suposto anunciar alterações importantes na hierarquia política de toda uma região. Chamam-lhe zhu e, provavelmente, ostenta uma penugem rubra escura, da cor do vinho feito de uva. Sendo uma ave, dotada da capacidade de voar, surge do nada ao crepúsculo, encontra o seu recanto num ramo onde se agarra com firmes dedos — pois a zhu não possui patas de pássaro, mas mãos humanas, que lhe saem de baixo do seu volumoso corpo — e dali os seus olhos penetrantes fixam o mundo como se o quisessem hipnotizar. De quando em vez, emite um som que lembra o seu nome: “Zhuuu…” Não é bom sinal, garantem, avistar esta ave. Alguns mestres dizem ser um presságio de índole tão ruim como ver um cometa atravessar os céus ou encontrar uma baleia morta a flutuar entre as ondas. Reza a tradição que, quando uma destas aves aparece, tal quer dizer que o rei vai destituir, exilar ou matar grande parte dos seus oficiais superiores. É então fácil de prever a confusão gerada pelo rumor do avistamento de uma zhu; e imaginar os espíritos em desordem, a tessitura de conspirações, a emergência de terrores, a catadupa de planos e, amiúde, levianas mas trágicas decisões. Invocar a zhu é garantir o conflito e a desarmonia. O poeta Tao Yuanming reforça a crença no mau agouro desta ave. Em breves linhas, irónico, sugere por ali ter andado uma zhu, quando o rei Huai de Chu baniu o famoso Qu Yuan, um importante oficial e trágico poeta. Não se pense, contudo, ter advindo de suas poesias a má sorte que lhe selou o destino ou que podemos dar como garantida a aparição de uma zhu naquele final do século IV a.E.C.. Arrebatado pelo desgosto de assistir ao espectáculo degradante de uma governação, maculada de práticas corruptas e inoperante pelo desleixo da realeza, Qu Yuan cometeu suicídio, atirando-se às águas barrentas de um rio. Este seu acto tornou-o num herói, num santo, numa data, todos os anos comemorada pelo povo. Compreende-se o temor que a zhu inspira. A sua presença é disruptiva, não da ordem individual, ou seja, da vida de cada um, eventualmente da vida do sujeito que a avistou, mas de toda uma ordem social. Não é incomum, por exemplo, a visão de uma zhu acender o rastilho de guerras civis ou, no mínimo, criar um período de incerteza entre os mais qualificados oficiais. Aristocratas, generais, comerciantes milionários, todos eles sentem vacilar o seu poder e, por isto, pela aparição de uma simples ave, quantas vezes não são estragadas famílias, queimadas colheitas, arrasadas aldeias, sacrificadas raparigas e destruída toda uma geração?
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasX- A Chiru Não cessam de nos espantar os mistérios e maravilhas da montanha Qingqiu. Encrustada no seu seio rochoso, existe uma tímida nascente de onde brota o rio Yingshui. Ao deslizar encosta sul abaixo e por a ele se unirem, em coloridos amplexos, numerosos riachos e ribeiras, o que era um mero fio transmuta-se aos poucos num nobre curso de água, chegando a atingir proporções consideráveis, antes de desaguar no lago Jiyi. Pelo caminho, ocasionalmente, o Yingshui roça as suas águas em rochas do mais puro jade, abundante naquele lado da montanha. Facto curioso: ainda antes do rio desaguar no lago Jiyi, alguém construiu uma barreira de toros aguçados, em madeira preciosa, à volta de uma dessas formações de jade, eriçada no meio das águas, isolando-a do mundo. A proximidade à preciosa pedra parece só poder ser alcançada por via subaquática, se na paliçada existir uma porta ou outra qualquer passagem. A origem e a identidade dos construtores desta paliçada também se desfizeram no bolor do tempo. Alguns referem tribos nómadas, adoradores de pedras e do fogo, senhores da caça e dos metais. Outros preferem a crença em civilizações extraterrestres, capazes de deixar a sua marca como sinal da intenção de regressar. Mas a teoria talvez mais fantasiosa atribui a um animal, vulgar habitante do rio Yingshui, a edificação daquele inusitado círculo amadeirado, que impossibilita o acesso ao mais belo penedo de jade que por ali desponta. De facto, quer ao longo do rio, quer em números bem mais abundantes no próprio lago, habita uma espécie de salamandra vermelha, a que dão o nome de chiru. Este animal respira debaixo de água, embora, surpreendentemente, seja capaz de se deslocar com desenvoltura, por curtos períodos de tempo, em terra firme, e mesmo adoptar uma postura vertical. Outro dos aspectos mais impressionantes deste bicho, que dificilmente ousaríamos classificar como um peixe, é a sua face, pois nela se compõe uma real expressão humana. Por isso, há quem diga que não devemos sustentar o olhar de uma salamandra vermelha, porque o facto de um animal nos enfrentar com uma expressão que reconhecemos como humana induz-nos uma emoção disruptiva e provoca-nos uma singular disposição interna. Por mais que a teoria seja atraente na sua inverosimilhança, ninguém pode garantir terem sido as salamandras vermelhas as construtoras da paliçada. E que são elas, ainda hoje, a dispor do seu usufruto exclusivo. Ou sequer se no seu instinto se inscreve esta capacidade de construção. Contudo, a teoria viu-se reforçada pela contribuição de um estudante da Boémia que, visitando a China, não apenas a defendeu ardentemente, como elaborou gráficos e projecções matemáticas diversas para provar a capacidade criativa dos membros posteriores das chiru para a execução daquela obra. Contudo, nada de realmente científico chegou a ser concluído porque há sempre um elo que nos escapa quando pretendemos considerar racionalmente as salamandras, como se elas se constituíssem num objecto indizível, situado além da linguagem, impossível de traduzir em logos. Elas são tímidas, discretas e têm, definitivamente, um olhar inteligente. Diria mesmo: mais inteligente que alguns seres humanos. Mas não se pode garantir que por detrás desse olhar se esconde um coração capaz de ordenar logicamente os pensamentos ou distinguir o possível do impossível, sem deixar de sonhar com o segundo. Entretanto, apesar de certos curandeiros entenderem que a sua carne cura a sarna, as chiru lá vão sobrevivendo e chapinhando nas águas mornas do lago Jiyi. Não é raro, nas margens do Yingshui pelo crepúsculo, ouvirmos um som parecido com o que produz o pato-mandarim. São as salamandras vermelhas que, em surdina, conversam entre si, antes de desaparecerem nas águas escuras, talvez para abrirem a porta submersa da paliçada e passarem a noite protegidas, enroladas umas nas outras, em torno da beleza interdita do penedo de jade.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasXI – O Lili Chegados à segunda Cordilheira do Sul deparamos com a imponente montanha do Salgueiro (Qishan). Um pouco mais a norte, encontra-se o monte Zhubi, a leste ergue-se o monte Changyou. Entre eles, desliza um rio onde se podem encontrar jade branco e grãos de cinábrio tão finos que formam, nas margens, uma camada brilhante e rubra, proporcionando esta paisagem fantástica a impressão de termos desembarcado noutro e distante planeta. Ora neste insólito pedaço de terra existe, habitante teimoso das margens deste rio, uma outra criatura, cujas características facilmente nos levam a incluí-la na nossa coleção de bizarrias: o Lili. Poder-se-ia dizer que se trata de um javali, pois o seu corpo, coberto de pêlo grosso e áspero, e o focinho, onde duas enormes presas retorcidas lhe saem da bocarra, são semelhantes aos do porco selvagem. Contudo, os dois animais são inconfundíveis, porque as patas do Lili são iguais às de um galo, incluindo as orgulhosas esporas, e apresenta, além disso, uma espessa crina, em nada comparável aos meros pêlos hirsutos do nosso intempestivo cerdo. Porém, o aspecto que mais o distingue de muitos outros bichos é a sua peculiar alimentação. O Lili gosta de se atafulhar de metais e de minerais, conseguindo mesmo sobreviver através do mero consumo de vulgares calhaus. Segundo os cronistas, o seu menu favorito consiste em pedras semi-preciosas, ferro e cobre. Para aceder a estas iguarias, o Lili é capaz de escavar terrenos, refocilar em minas, destroçar construções, derrubar muros, chegando a modificar radicalmente o aspecto da paisagem. Talvez por estas habilidades, acredita-se que, quando alguém vê um Lili, é porque grandes obras públicas irão em breve ser lançadas ou então ocorrerá um terramoto de devastadora potência. Por vezes, nomeadamente quando se aproximam demasiado de áreas habitadas, os Lili entram em conflito com os homens, porque pouco se ensaiam em destruir habitações, celeiros, redis, galinheiros e outras construções, o que muito irrita os camponeses das aldeias vizinhas. Estes, avisados do seu mau-humor e carácter violento, raramente se atrevem a enfrentá-lo sozinhos. Preferem preparar cuidadosamente uma batida, organizada segundo preceitos milenares, de modo a cercarem, capturarem ou matarem o incómodo animal. Por estranho que pareça, nada é referido quanto à qualidade da sua carne ou se qualquer parte do seu corpo detém algum poder mágico, o que leva a pensar que os homens temem o contacto com esta espécie de animal. Quando habitam terrenos propícios, ricos em vários minérios, os Lili reproduzem-se abundantemente. As mães tomam conta dos filhotes, deslocando-se em solidários grupos de fêmeas. Quando os machos atingem os dois anos são convidados a abandonar o grupo feminino. Aí começa para os Lili um período de vida bem mais complicado, pois esta espécie é extremamente territorial e os seus membros envolvem-se em brigas constantes, por determinado espaço e por acesso às fêmeas, nas quais o vencedor poderá emprenhar, à sua discrição, as que muito bem lhe aprouver. Em média, um Lili dura cerca de 10 anos. Curiosamente, os Lili não disputam a comida entre si. Pelo contrário, quando algum encontra uma jazida rica em apetitoso minério, imediatamente emite alguns sons, parecidos com o ladrar de um cão, com o objectivo de chamar os outros membros do seu grupo. Talvez, entre estes animais, a repartição voluntária de bens valiosos incorra num aumento de prestígio social e assim nenhum, nem em situações de escassez, tem o hábito de guardar só para si quaisquer despojos alimentares.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasVII – O Chanfu Por muito que a exploremos ou, simplesmente, por ali deixemos flutuar o pensamento, a montanha Ji revela-se um lugar inesgotável de maravilhas e assombrações. Caso não bastasse a existência de ignoradas árvores e plantas, cujas propriedades medicinais estão ainda longe de ser totalmente estudadas e conhecidas; de depósitos vastíssimos de jade verde, que irrompem do solo levando à loucura as ambiciosas gentes; esta insólita montanha, além do boyi, é ainda a morada de um outro bizarro animal, que crismaram de chanfu. Apesar do seu heterodoxo aspecto, os antigos registos são unânimes em considerá-lo uma ave. Isto talvez porque a sua forma se assemelha à do galo, embora com dimensões consideravelmente maiores do que o nosso animal de capoeira. Além disso, o chanfu é senhor de três cabeças, que culminam três longos pescoços. Esta profusão cefálica implica, além de três poderosos e afiados bicos, a existência de seis olhos, o que permite ao bicho considerar a qualquer momento os quatro pontos cardeais. O seu insólito corpo é ainda composto por seis patas e três asas. Apesar de alado, o chanfu perdeu algures na noite dos tempos a capacidade de voar. Consegue, outrossim, graças às asas, efectuar saltos consideráveis, mas rapidamente se encontra de novo no solo, onde se torna presa de alguns predadores, nos quais podemos incluir, sem vergonha de maior, os próprios seres humanos. Uma das características mais arrebatadora deste animal é o facto de permanecer em constante estado de vigília, pois enquanto uma das cabeças dorme as outras duas mantêm-se acordadas e o seu corpo activo. Ora para sustentar a sua constante actividade, aliás reveladora de um indisfarçável nervosismo, esta surpreendente ave é escrava de um monstruoso apetite, o que a leva a constantemente procurar alimento, debicando em quase tudo o que lhe passa à frente dos insaciáveis bicos. Talvez por isso, alguns relatam que quem comer da carne do chanfu será acometido de violentas insónias. Sem que nos tenha sido fornecida prova médica de tal efeito, certo é que, ao longo dos tempos e incólume às modas, o chanfu tornou-se no prato predilecto de guardas fronteiriços, jogadores inveterados e sábios desesperados com a estreiteza dos anos que lhes restam para levar a bom porto os seus estudos. Sendo que estas três espécies de homens são extremamente comuns na China, o chanfu correu sempre um grave perigo de extinção. Diz-se também que, tal como o andrógino descrito por Aristófanes no “Simpósio” de Platão, este animal parece ser habitado por um radical sentimento de vaidade, enfrentando os eventos de peito bem levantado e uma irreprimível tendência para exibir um comportamento agressivo, muito enraizado no seu carácter exaltado, sempre que outros bichos cruzam o seu caminho. E este será um dos perigos de comer a sua carne: é que além da insónia, ao que parece, quem o devorar, será invadido e possuído por um excessivo amor-próprio que, geralmente e em boa verdade, conduz a actos irreflectidos e a uma familiar forma de perdição.
Carlos Morais José Antropofobias Artes, Letras e IdeiasO lei Por razões muito difíceis de explicar, existem montanhas onde, apesar de percorridas por numerosos cursos de água, não nascem plantas ou árvores. Torna-se então difícil compreender como podem nessas regiões inóspitas sobreviver animais de grande porte. Contudo, contra as mais lúcidas expectativas, tal não deixa de acontecer. Os antigos são muito claros: ninguém se deve atrever a frequentar tais arrabaldes, pois a sua vida ver-se-ia exposta a tremendos riscos e perigos inusitados. É o caso da montanha Chanyuan, onde habita o lei, um enorme gato selvagem, cuja dimensão e forma evocam o leopardo, mas que se caracteriza por exibir uma fartíssima cabeleira. A sua existência é referida por numerosos autores, dos quais destacamos Mestre Zhuang (Zhuangzi) e, curiosamente, o pai da moderna literatura chinesa, Lu Xun. A característica mais interessante do lei, fascinante sobretudo para Zhuangzi, é o facto de ser hermafrodita e depender unicamente de si mesmo para se reproduzir. Neste particular, encarnaria o ideal taoista de auto-suficiência, pois de nada precisaria para assegurar a continuidade da sua espécie. Os antigos chineses apreciavam sobremaneira esta capacidade de possuir num só corpo o Yin e o Yang, porque tal era não somente um sinal de independência e autonomia, mas sobretudo de uma feérica fertilidade. Já Lu Xun entabulou com o lei um outro tipo de relação. Conta o escritor que o conheceu através de uma inesperada prenda. Tendo, em criança, ouvido falar de animais fantásticos, que desafiavam a mais ousada imaginação humana, isso nele despertou uma invulgar e imensa curiosidade. No entanto, não conseguia arranjar maneira de obter o Clássico das Montanhas e dos Mares, o livro ilustrado que regista a existência de todos estes estranhos seres, talvez porque os seus pais não desejassem povoar a sua mente de estranhas fantasias. Até que um dia a sua ama, com quem ele detinha uma conflituosa relação desde que ela assassinara o seu rato de estimação, lhe apareceu com um embrulho de papelão, dentro do qual se encontrava o tão almejado livro. E, logo no primeiro capítulo, eis que sobressaía o lei e a sua longa cabeleira, facto que viria, por razões na verdade mal explicadas, a marcar a sua futura carreira, segundo ele confessa num breve artigo de 1926. Segundo as antigas crenças, devido ao seu hermafroditismo, quem comesse da carne do lei, nunca mais sentiria ciúmes. Esta propriedade extraordinária era muito apreciada por causa da difundida estrutura familiar poligâmica, na qual existia uma forte concorrência e ciumeira entre as várias esposas de um homem, o que amiúde tornava amargo o ambiente no interior de um lar onde deveria prevalecer a harmonia. Daí que muitos se arriscavam a organizar caçadas ao lei, ainda que com a clara consciência de correrem perigo de vida, algo menorizado quando em jogo estava a manutenção da paz quotidiana. Diz-se que muitos maridos deprimidos acabaram por ser vítimas das garras afiadas e dos dentes pontiagudos desta tão preciosa besta. Mas outros, capazes de regressar a casa na posse daquela preciosa carne, conseguiam então assegurar um lar mais harmonioso em que as esposas, ao invés de se digladiarem, contribuíam em conjunto para a sua felicidade.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasO xuangui Da montanha Niuyang escorre um rio peculiar, onde germinam seres raros, cujas características têm assombrado gente local e viajantes, ao longo dos milénios. Chamam-lhe Rio da Água Estranha (guaishui). Nele, nas suas margens, afirmam os registos nascerem criaturas de excepção, algumas das quais perigosas. Em contraste com a sua fama e o seu nome, as águas do Guaishui deslizam suavemente por encostas e vales até desaguarem no rio Xianyi, sem nunca causar grande alarido, ao contrário de alguns dos seus irmãos que regularmente se revoltam e galgam as margens, inundando campos e aldeias. Ora nesta aprazível e serena aparência, neste celebrado curso de água, prolifera o xuangui, um animal com corpo de tartaruga, cabeça de ave e cauda de serpente. O xuangui é um exímio nadador, o que contrasta com a lentidão com que se desloca em terra firme. Quando se move dentro de água, o seu corpo roda como um parafuso, à medida que vai avançando. Daí o seu nome que literalmente significa “tartaruga giratória”. As similitudes com as suas primas tartarugas, nomeadamente a carapaça, que no caso do xuangui é profundamente negra, fazem com que seja extremamente apreciado para divinações. Além disso, acredita-se que quem usar uma qualquer parte do xuangui pendurada no cinto, nunca ficará surdo e perderá os eventuais calos que lhe tenham crescido nas mãos ou nos pés. Sendo a carapaça associada ao céu e o corpo à terra, este animal simboliza um universo, solidamente ancorado nas suas patas. Conta-se ter o xuangui, em tempos primordiais, dominado a região que antecede os infernos, onde possuiria capacidade para voar, não sendo, no entanto, explícito se da sua carapaça brotariam ou não asas. Nesse tempo, seria um predador carnívoro para desgosto de almas, homens ou bestas que cruzassem aquela região pré-infernal. Entediados de tanta voracidade, os deuses resolveram castigar o xuangui, retirando-lhe a capacidade de voar e exilando-o no Rio das Águas Estranhas, onde ocupa uma discreta posição. Mas os implacáveis deuses não se ficaram por aqui. Para eles não era suficiente esta emigração forçada, a perda de mobilidade e de estatuto. Para evitarem para sempre o regresso de comportamentos ínvios, nomeadamente a glutonice assassina dos xuangui, extinguiram todos os machos da espécie. Desde então as fêmeas são penetradas por serpentes e é o amplexo com estes répteis que garante a continuidade desta espécie, sempre no feminino. Há também quem considere, erroneamente, devido à sua carapaça de cor negra, o xuangui como a tartaruga original que ocupa o Norte do mundo, de onde as águas escorrem para os rios, os lagos e os quatro mares, parente da fénix vermelha, do tigre branco e do dragão verde. Contudo, é sabido que essa primeva tartaruga não possuía cabeça de ave, nem arrastava uma cauda longa de serpente. Além disso, não se imagina esse nobre animal a emitir um som de cana rachada, como faz o xuangui.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasO xingxing Na primeira orla montanhosa do Sul, ficam as montanhas da Pega (Queshan). As antigas crónicas relatam que ali, nos vales que serpenteiam os sopés, os aldeões contam estranhas e variadas histórias sobre um tal de monte Zhaoyao, um cume que apresenta a característica singular de quando em vez estremecer. Recentemente, o Instituto de História da Academia de Ciências Sociais de Sichuan acredita ter provado que se trata do monte do Gato Agachado (Mao’er), assim denominado devido à forma do seu pico, que fica a cerca de cem quilómetros a norte de Guilin, na província de Guangxi. Nas suas encostas cresce a canela, abunda o ouro e o jade. Riquezas minerais à parte, este monte é conhecido pelos seres bizarros, plantas e animais, que por ali terão existido. As crónicas narram, com relativo detalhe, a existência de árvores com propriedades fabulosas, capazes de matar a mais profunda das fomes ou de impedir os viajantes de se perderem do seu caminho, mas talvez a mais espantosa entidade do monte Zhaoyao seja um animal, a que chamam xingxing, cuja forma se parece com a de um macaco de cauda longa com a cabeça decorada por duas orelhas brancas. O xingxing caminha acocorado, mas quando corre assume a posição vertical dos humanos. Talvez por isso, nesta região, se creia que comer este animal aumenta a capacidade para correr. O xingxing é também descrito como tendo, além da longa cauda e das orelhas brancas, uns olhos muito vermelhos. Outros descrevem-no como um porco de face humana. Contudo, a sua característica mais fascinante é o facto de “chamar as pessoas pelo nome.” Esta capacidade para articular palavras é o que leva, talvez, um outro compêndio a considerar os seus lábios uma iguaria. Na região onde vive o xingxing, os camponeses descrevem-no como um bicho nómada, que vagabundeia sem nexo, nem objectivo perceptível. Contudo, queixam-se também de ser um animal muito difícil de capturar. O que desgraça o xingxing é o seu amor desmedido por vinho e sandálias. Estando a par desta tara, os camponeses colocam estrategicamente, em locais que sabem frequentados pelo bicho, vinho e várias sandálias atadas umas às outras. Quando se apercebe da presença da bebida, o xingxing aproxima-se, apesar de saber que se trata de uma armadilha e consegue reconhecer quem a terá montado. Então chama-o muito alto pelo nome e insulta-o, imprecando: “Seu miserável escravo! Julgas que me apanhas?!” Logo em seguida, o xingxing afasta-se. No entanto, passado pouco tempo, regressa pois não resiste a experimentar o vinho e a calçar um par de sandálias. Se ele bebe demasiado torna-se uma presa fácil porque fica ébrio e as sandálias, presas umas às outras, não lhe permitem correr. E assim os camponeses são finalmente capazes de o conduzir a uma jaula, amparando-o como se faz a um tio bêbado. Quando depois alguém se aproxima e, para o irritar, lhe diz “vá, arranja maneira de sair da jaula…”, ele volta-se para essa pessoa e dos seus olhos deslizam lágrimas rubras que encharcam a pelugem fulva do seu rosto.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasSobre o baptismo dos monstros Do livro Embriologia Sagrada, escrito por um frade siciliano no século XVIII, abençoado pelo Papa Bento XIV e publicado em Português no ano de 1791. Neste passo do volume, em que o religioso pede auxílio a um especialista francês, discute-se a geração, ocorrência e o baptismo de monstros (Descoberto em Passarela, Gouveia, numa arca improvável): “(…) Huma mulher póde ter commercio, primeiro com huma besta, e algum tempo depois com hum homem, ou com homem, e com besta, ou com huma besta sómente. No primeiro caso ha motivo para duvidar se a mulher concebeo da besta, ou se o féto, que sahe della, he huma produção do homem só, porém desfigurada, e feita monstruosa pela impressão, que a besta fez na imaginação da mulher no tempo da união, que precedeo á do homem: por outra parte quem póde afirmar que assim como huma besta pode fazer que huma concepção humana se faça monstruosa, também o homem não póde indireitar, e humanizar, digamo-lo assim, huma concepção bestial. No segundo caso, se se suppõe que a mulher tem concebido do homem, toda a dificuldade está tirada (…), e sempre ha razão para duvidar e suspender o juizo; porém se huma mulher só tem tido commercio com uma besta, augmenta-se a dificuldade, e o embaraço: se he certo, como o crem muitos Fysicos, que o féto está formado todo, e organizado perfeitamente no ovo, e que se vivifica no mesmo instante da concepção, quem se atreverá a dizer que Deos suspende o seu concurso, e que não lhe infunde huma alma racional, seja quem for o macho que o põe em movimento? Pois não se póde determinar se esta informação se faz logo que o féto se vivificou, isto é, no mesmo instante da concepção; pois não ha coisa que pareça deva impedir que entre nelle a alma racional; pois o féto, segundo esta hypothesi, não he todavia monstro; e he necessario, ao parecer, algum tempo, ou ao menos mais de hum instante, para que hum féto humano bem formado, e bem organizado se transforme, e possa converter-se em monstro. Não sei que diga dos monstros, que nascem de bestas femeas com figura humana: confesso que tremo, quando revolvo esta materia: com tudo não sendo artigos de fé os systemas, que ideião os Medicos, e Fysicos, e os Anatomicos, parece que quando ha dous com pouca differença igualmente verisimeis, he permitido, havendo a mesma difficuldade em hum, que no outro, e sendo a cousa de tanta importância como esta, differir ao dictame de Medicos, e Fysicos muito hábeis, que julgam que o féto está todo formado, e perfeitamente organizado na semente do homem. Mr. Levenhouc, Hollandez, faz ver por meio de seus globos de vidro, que na semente dos badejos machos estão formados inteiramente os badejos filhos, e que se movem algum tanto. Nesse sistema, se se supõe que o espirito seminal da femea põe em movimento o féto, e o vivifica ao tempo da concepção, e que a alma racional se infunde no mesmo instante, he necessario grande valor para decidir que o féto humano, formado todo, e perfeitamente organizado, só por estar no corpo de huma besta femea, não está informado de huma alma racional. De tudo o que fica dito concluo, que se devia desejar que se visse baptizar geralmente tudo o que nasce de mulher, no caso de ter vida, e ainda os monstros, que nascem de bestas femeas, se tem figura humana, quando se sabe que algum homem tem podido ter parte na producção; pois é impossivel decidir que semelhantes monstros não são animais racionaes. Trata-se da salvação, ou da condemnação eterna das almas; e tendo-se feito o sacramento para as almas, e não as almas para o sacramento, a razão, e a piedade pedem que se aventure sempre o sacramento antes que a alma.” Paris, a 25 de Maio de 1693. Fillipe Ignacio Save, Doutor em Medicina da Faculdade de Paris.”
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasAlexandria Existe na cidade de Alexandria um Porto Interior. Fixa o Norte, de onde lhe veio o pai. Num dos seus extremos, alguém de novo ousou a Grande Biblioteca. Abundam livros e mulheres jovens. Pelo meio, sobre as praias, debruçam-se esplanadas, num excesso de mar. No outro extremo, passeia a desmesurada gente, talvez à espera do momento certo para voltar a pegar fogo a isto tudo. * Já Marte sobre o fim da cidade se levanta, mas nem por isso os homens sossegam e olham de novo o mar antigo. Pela urbe persiste o ruído, o caos que pouco cintila ou alcança. A cidade deixa à estrela esse castigo. E ela olha do alto e pouco vê, nada procura. Onde estão os épicos fantasmas da minha literatura? Ficaram os homens impuros e as suas mulheres cercadas. E as ruas belas como rugas ou trapos pisados nas calçadas. Na casa de Kavafis paira um odor a abandono. Apenas um refrão, sussurrado por um bigode. Escasseiam os livros e sobram as horas. Os versos lamentam a sorte rasa. Poemas dormem sem abrigo pelas ruas. Nada há para fazer, só para ver e os olhos humedecem da tristeza do que não é (talvez nunca tenha sido), a sentirem fundo a culpa de uma deslocada ambição. * Nos versos de Kavafis expirava o último heleno e talvez uma cidade. * Havia no lugar onde em 1902 foi construído o Hotel Metropole um obelisco de dois mil anos. Cleópatra impusera-o para celebrar Marco António. Agora existem sombras posteriores a marcar corredores, um elevador de três portas e as colunas solenes do átrio. — Ainda há onde respirar, rosno curto. Kavafis frequentava o Hotel Metropole. Não sei se unicamente a entrada, de onde se disfruta a rua em poltronas altas; se subia ao primeiro andar, e deslizava pelos salões, entre brandys, golpes de estado, charutos e revoluções. Provavelmente, pouco disso o interessava, como lhe deviam ser indiferentes os veludos e os pendentes adamascados. Imaginemos que, sem sabermos de quê, lhe interessava a possibilidade. Fantasiemos que esse quê poderia surgir, vindo da rua, sob a forma de um cavalo ou de um príncipe, ainda pingentes de suor de um galope ou de múltiplas defenestrações. E o poeta esperava, naquele canto sóbrio, meio enternecido de sombra, raspado do passado, ainda que o hotel fosse então novo e pouco fizesse prever a glória a que o meu coração o consagra. Previra os bárbaros, é certo, mas não os previra assim. O obelisco está algures em Nova Iorque. Central Park, creio. in Anastasis
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasA pequena saúde e a grande vida Na sociedade mediática, a saúde (ou o seu discurso) ganhou uma importância fundamental. Nunca como hoje as pessoas foram tão levadas a tomar a saúde como um dos principais modelos de referência nas suas vidas. Como muito bem notava Susan Sontag em “Aids and its metaphors”, existe uma concupiscência, uma estranha relação entre a doença, a comunicação, a política e, consequentemente, os comportamentos. Para além de ser de desconfiar qualquer sobrevalorização do corpo, a posse da saúde – ter saúde, como se diz – mercantilizou-se como outra posse qualquer, é traduzível por quantidades de numerário (com o que se gasta no médico, na farmácia, no ginásio, no dealer). Hoje ter saúde significa também um determinado tipo de consumo, como significa determinado tipo de comportamento, ostentação de signos, sendo que este implica também a aderência a uma específica rede consumista. A propagação real ou mediática das doenças restringe os comportamentos (como no caso da sida), modifica os hábitos (como o fitness e o jogging), proporciona novos gadgets à indústria (como no caso da pneumonia atípica). A doença ou a sua sombra proliferam através de uma quantidade assombrosa de revistas da especialidade, hoje predominantemente travestidas em forma física e componentes estéticas. Na televisão são cada vez mais comuns os programas sobre doenças – em Portugal, Júlio Isidro entrevistava pessoas que sobreviveram a cancros e ataques cardíacos. Por toda a parte somos confrontados com a necessidade da precaução, da prevenção, da medicação, do rastreio; entrando para o nosso quotidiano termos bárbaros provenientes da medicina e da manutenção, cujo aspecto mais inofensivo se tornou amplamente numa mercadoria. O que o corpo tomar é o que ele é, sobretudo em termos de valor social. Chegámos, portanto, a um tempo em que a química retomou os seus direitos, interferindo em todas as esferas. Está praticamente ultrapassado a era romântica em que a psicologia abdicava da factura química, na esperança de uma cura dita “espiritualista”. Hoje não há tempo para isso e, sobretudo, escasseia a paciência. “Quero a minha felicidade já, nem que seja em pequenas doses e tenho direito a ela, porque ela está em toda a parte” (como no caso do Viagra, outro potente mutante de comportamentos, ansiedades, emoções, relações) – sente-se e diz-se. A saúde é, portanto, fundamental. Mas convém compreender que se trata de uma saúde especial. Muito dirigida e muito bem orquestrada. Mas raramente ultrapassa o nível farmacológico, mecanicista, que encara o corpo como um ente fragmentado, como no caso do culturista que desenvolve uma relação particular com cada músculo. O equilíbrio é agora procurado na química, na localização dos problemas. As terapias de outro tipo encontram-se agora em franca decadência. Na verdade, lidamos com uma pequena saúde, feita de preocupações históricas sobre a decadência do corpo e a proximidade da morte. Trata-se, finalmente, do modo como a sociedade em que vivemos tira proveito das angústias (umas existenciais, outras que ela própria cria) e as molda de forma a serem mercantilizáveis. Assim, alteram-se igualmente os comportamentos e regista-se uma disciplina dos corpos e dos seus horários, bem conveniente ao circular da mercadoria, de cujo estatuto os humanos se aproximam cada vez mais e alegremente, como se nisso suspeitassem da existência de uma qualquer forma primeva de justiça. Nem por sombras estamos perante uma relação ecológica e equilibrada ou sequer perante uma reflexão mais longínqua sobre o papel da ruptura num contexto natural. Cuidamos, amedrontados, isso sim, da nossa pequena saúde, de um corpo que encaramos como estando na nossa posse ou que nos possui, mas sempre com uma visão mecanicista e não integrada desse mesmo corpo. Este é comprado nos media, nos ginásios, nos médicos, nas farmácias, nos dealers (de algum modo, a drogadicção ilegal é uma medicina alternativa e mais generalista, talvez mesmo a que, nalguns casos, mais se aproxima de alguma espiritualidade). As pessoas desfilam pois pela senda da pequena saúde, em muitos casos servos da sua ditadura. Por ela reorganizam as suas vidas. São induzidas a fazer do exercício físico uma parte dos seus quotidianos. As vitaminas, outra. Os programas, os filmes, as notícias, o obsceno, como o exemplo da dor alheia, vendida ao minuto nos ecrãs, são os altares desta religião, que monitoriza o dia, as refeições, o sexo, o sono, as relações, inclusivamente consigo próprio. A pequena saúde ganha foros de modo de vida. E o que fica de fora? A vida, precisamente a vida, a grande vida.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasUm dia [dropcap]“O[/dropcap] dia fútil, mais que os outros dias”: o dia das “discretas ironias”. Saberei fazer um dia que importe, um dia que marque a passagem do tempo e não se esvaia simplesmente, como se os relógios não existissem, na sua existência circular e monótona? O tempo só tem, na verdade, um lugar e um templo que é o corpo. Tudo o mais nada nos diz sobre ele. E os dias andam sedentos de um qualquer acontecimento. Uma ruga de memória no cérebro, algo de memorável, amorável. Um daqueles eventos que o esquecimento não varra. Um padrão implantado no continente verde das horas. E que o dia não seja de “discretas ironias”, mas um frenesim de trombetas e rufar de corações. E que o dia seja mais e seja mais cego de tanta velocidade, uma lição de condução em estrada de montanha, os olhos rasos de precipícios e a mente ávida de abismos. E que o dia seja de estrondosa certeza, de pão e de vinho sobre a mesa e, sobretudo (ó sim, sobretudo!), sem hesitações. E que não seja um dia fútil e já passado antes de se aconchegar no manto da noite. E que algo aconteça de extraordinário, de brutal. E que nos faça uma daquelas fomes capazes de comer a areia dos desertos e haurir num sorvo a água dos mares. E que seja salgado. Apimentado. E que se desfaça na boca com um riso crocante de dentes. E que nos escorra quente na garganta, sabendo a metal acabado de forjar. E que seja isso e que seja tudo. Mas não fútil. Não de pequenas e discretas ironias.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasAntigamente… [dropcap]Q[/dropcap]uando o imperador falava até os burros baixavam as orelhas, porque existia uma antiga tradição no Império do Meio segundo a qual o Filho do Céu podia controlar os Dez Mil Seres. E assim acontecia, um pouco por todo o império. Cada édito do imperador era distribuído por todas as províncias, mesmo as mais remotas e em menos tempo do que, hoje, podemos pensar. Os canais de comunicação imperiais na China eram céleres porque estavam montados de tal modo que as mensagens nunca paravam. Mas não se trata apenas de uma questão de velocidade. Peso, isso sim, peso era o mais importante porque em risco estava a vida, não apenas a vida dos indivíduos mas de toda a família. A palavra do imperador surgia assim imbuída de um especial poder porque carregava sempre em si a ameaça de morte. É como se o carácter imperativo dos éditos derivasse de algo sagrado, algo que não se fita a face, que se obedece sem discutir, que se executa sem pensar. E, ao longo da História da China, assistimos muitas vezes às mais flagrantes mudanças de opinião, de posição, de atitude, de pensamento. O que hoje era azul, passava a ser laranja; o que ontem era verde, rapidamente resplandecia do mais brilhante dourado. Nesses tempos, era assim. Vivia-se o terror do império, o povo era subjugado pela vontade férrea dos tiranos, muitos deles regionais. Contudo, estes raramente se atreviam a não cumprir as imperiais ordens, esforçando-se mesmo por as julgar sábias, recitando-as com fervor, dignas de inscrição em pedras colocadas sobre dorsos de tartarugas, como ainda hoje podemos testemunhar nalguns museus e templos mais importantes. Claro que estes procedimentos limitaram o desenvolvimento da China, na medida em que nem sempre o imperador estava certo, joguete que por vezes era de alguns dos malvados eunucos que o rodeavam. Ainda assim, aos homens de virtude das províncias distantes, outro remédio não havia se não obedecer-lhe. Felizmente que hoje já não é assim e a China avança determinada no caminho da modernização e desenvolvimento. No entanto, nem sempre o imperador se enganava e muitas vezes dava as ordens certas que contrariavam a ambição dos senhores feudais, em prol do povo. Tenho para mim que, aliás, algumas das directivas dos imperadores impulsionaram a China no bom caminho, porque contornavam o desejo de imobilismo egoísta dos senhores locais, ciosos de que nada mudasse para conservarem, a todo o custo, o seu desmedido poder e satisfazer a sua insaciável luxúria.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasA utilidade do min tói [dropcap]“N[/dropcap]ão sei. Falta-me um sentido…”. E é com esta frase de Álvaro de Campos a martelar-me as têmporas que me afasto do tempo irreal dos cronómetros insensíveis à real passagem das horas. Tenho para mim que é inútil a reza fria e sem sabor nas papilas gastas e, por isso, pouco temerosas. A língua enrola as palavras, desdobradas em suspiros, sombras destacadas de paredes de quartos interiores. Ajoelho-me, contudo. Não para meditar que sou ossudo e pouco afoito à concentração. Menos ainda em súplicas ou lamentos, estranha disciplina de mulheres, arrojadas nos templos mas temíveis nas brigas. Ajoelho-me enquanto me dirijo a um sítio perfeitamente conhecido, não vá o sentido esvair-se também do próprio quotidiano. Faço-o em silêncio, enquanto gracejo para o lado. E reservo para mim, só para mim, essa “oscura noche”. E com que deleite me repito: “Não sei. Falta-me um sentido…” Pagaria caro, neste momento, a menor ousadia, o corpo calibrado de medo, ajoelhado, vergado, verdascado e — porque não? — sangrento. Rio-me, contudo, dessa minha odisseia de atravessar ruas, calcorrear passeios, olhar para dentro de lojas afáveis, servir-me dos gestos alheios para compor um mundo. Só os outros me fazem o sentido, na certeza plena de cada gesto. Não pensam e são belos como os gatos, respiram e são pujantes ainda que a sua respiração seja roufenha, desde que não saibam que respiram e assim escapem à repugnância de duas frases articuladas e com sentido ainda que vago. Vagueio e só assim advém o esquecimento, pelo cansaço dos músculos e a acção lenta do frio (“Não sei. Falta-me um sentido…”), até me recolher nos braços tépidos de algum min tói.