Os Amigos de Zhang Yu e a Nostalgia da Errância

Nizan (1301-1374), o mais livre dos pintores da dinastia Yuan (1279-1368), passou o seu tempo vagabundeando desde que, em 1366, abandonou a sua casa fugindo a um ataque de soldados saqueadores que prenunciavam já o fim da dinastia, alojando-se em casa de amigos, em mosteiros budistas, reflectindo no espaço a liberdade do seu espírito. Esses poucos que encontrou no mundo e que o receberam não o impediam de perceber um outro olhar de outros que o desprezavam, ao contrário a sua sensibilidade permitia-lhe reconhecer a sua vida como uma anomalia, quiçá um caminho para uma outra coisa e essa seria indizível. «Aquilo que designo como pintura não é mais do que a alegria de desenhar despreocupadamente com o pincel. Não busco a semelhança, faço só o que me entretém e alegra. Recentemente vinha caminhando ao acaso e cheguei a uma cidade. As pessoas que lá quiseram saber das minhas pinturas queriam-nas exactamente como desejavam, representando um momento particular. Então, foram-se embora insultando-me, amaldiçoando-me de todas as maneiras possíveis.» A sua via estranha seria prosseguida por outros individualistas como Huang Gongwang ou Wu Zhen entre outros. Mais tarde, quando os historiadores da pintura, escolheriam estes como os pintores que estavam no caminho certo. Porém ao lado deles, pintores como Zhao Mengfu (1254-1322) e outros, persistiriam aparentemente num outro modo de representação que se alguns consideraram mais conservador porque referindo os modelos clássicos, mostravam a mesma dor de um impreciso exílio. Foi o caso de um pintor de Suzhou que, ao contrário de Nizan, terá ficado em casa.

Zhang Yu (1333-1385?) foi poeta, calígrafo e pintor numa era em que estas artes, que perseguiam objectivos diferentes, eram praticadas pelos mesmos artistas. Num tempo em que era perigoso viajar, o pintor fez questão de celebrar a amizade em Suzhou, pelo que se pode deduzir do seu memorável grupo dos «Dez amigos da Muralha do Norte» da cidade. No mesmo ano de 1366 em que Nizan abandonava a sua morada, Zhang Yu fez a pintura de uma paisagem intitulada «Nuvens de Primavera sobre o estúdio dos pinheiros» (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 92,1 x 31,8 cm e que está no Metmuseum em Nova Iorque) em que, tal como nas pinturas de Nizan, não aparecem figuras humanas mas em que, pressentindo-se o mesmo nostálgico sentimento de quem se quer um eremita, tudo é enganosamente próximo do real. Os «pontos de Mi» nos cumes das montanhas, referência cultural que alude a Mi Fu (1074-1151) denunciam o seu carácter artificial. Talvez um dos seus amigos, Wu Gui, escreveu na pintura um poema: «Mestre Zhang, inspirado e elegante,/ No seu estúdio dos pinheiros, com o seu pincel delicado, fez maravilhas./ Tantas vezes a poesia evoca a pintura,/ Mas como é semelhante a comparação que a pintura evoca.”

1 Fev 2021

Figuras da Alegria e do Silêncio no Acolhimento do Chan

Fanyin Tuoluo, o abade pintor de um mosteiro de Kaifeng no século XIV, utilizou o seu estilo caligráfico num álbum de pinturas que retratam encontros entre um mestre e um aprendiz intitulados «Feitos dos mestres Chan», diálogos de monges que foi um dos temas que ajudaram o reconhecimento do Budismo Chan. Na página que retrata «Budai e Jiang Mohe» (35,6 x 48,5 cm, a tinta sobre papel) que se conserva no Museu de Arte de Nezu, em Tóquio, ele mostra o momento em que Jiang se apercebe finalmente que o monge Budai é uma manifestação de Maitreya, o Buda do futuro. Budai, também referido como o «buda que ri», ou o «gordo» ou o «feliz», cuja lenda diz que teria vivido cerca de 907-923 no reino de Wuyue no tempo das Cinco Dinastias e Dez Reinos, e cujo nome significa «bolsa de pano», um dos elementos que o caracterizam e onde transportava consolações para o mundo que sofre, seria uma reconhecível figura na difusão popular do Chan. O riso, expressão clara da empatia com que quase sempre é retratado o Budai, também está presente na pintura do século XII, «Três gargalhadas no Rio dos tigres»

Huxi Sanxiao, que refere um provérbio que conta o momento em que o solitário monge budista Huiyuan (334-416) se encontrou com o confuciano Tao Yuanming (365-427) e o daoísta Lu Xiujing (406-477) e desataram a rir quando se aperceberam que, de tão embrenhados que estavam na sua conversa, nem se aperceberam que tinham atravessado uma região infestada de tigres. Nessa pintura que está no Museu do Palácio Nacional em Taipé, feita no estilo de «rugas talhadas com machado», fupi cun de Li Tang (c. 1050-1130) a tinta e cor sobre seda, fica clara a relação harmoniosa entre as três filosofias. Num outro ícone do Budismo, desta vez sempre envolto em silêncio, também se espelhava a harmonia e seria repetido pelos pintores.

Jueji Yongzhong, um obscuro monge pintor do século XIII é o autor de uma dessas figuras. A sua fluida e sintética «Guanyin vestida de branco» (104 x 42,3 cm, rolo vertical, tinta sobre papel) de que uma cópia está no Museu de Arte de Cleveland, contém uma curiosa anotação: «uma de oitenta e quatro mil pintadas pelo sacerdote Insei», o que seria uma resposta a uma promessa do «Sutra do Loto» que assegurava a «via do Buda» a quem se dedicasse a mostrar as figuras do Budismo. Dessa Guanyin, a que «escuta os pesares do mundo», na aparente informalidade do traço rápido, desprende-se uma impressão de proximidade. Como também no caso do diálogo a dois, ou na conversa a três com diversos pontos de vista; nessas confissões privadas transmitidas em silêncio à Guanyin, estão exemplificados valores de cumplicidade e de atenção fraterna que foram mostrados pelos pintores, testemunhos da forma como o Chan foi sendo acolhido desde que Bodhidharma atravessou um largo rio numa fina cana de bambu.

25 Jan 2021