Versos de Du Fu na paisagem desolada de Luo Mu

Du Fu (712-770), o poeta que viveu a itinerância tantas vezes como um descontentamento, encontrou em tudo ocasiões para celebrar o deslumbramento. Uma delas ficou guardada num poema feito diante de uma pintura e que refere o nome de uma divindidade a que se deu o nome Xianwu, o «Obscuro guerreiro misterioso». No poema intitulado «Na parede dos aposentos do mestre do chan do templo de Xianwu», o poeta está diante de uma obra feita por um dos pintores mais reverenciados entre os que estão na origem da arte da pintura executada sobre rolos portáteis, o já então lendário Gu Kaizhi (c.345-c.406). E o templo de Xianwu nas montanhas Wudang (Hebei) foi o lugar escolhido para evocar uma outra figura lendária, associada a uma conversa que aconteceu no decurso de um passeio e tão entretida que ignorou uma ravina infestada de tigres, cuja história é conhecida como «as três gargalhadas», o monge Huiyuan (334-416):

«Quando é que o audacioso Gu Kaizhi
colocou aqui esta obra?
A parede está toda repleta de pinturas
do paraíso da montanha utópica Yingzhou.
Vapores quentes exalam
das rochas sob o sol inclemente,
Sobre as correntes de lagos
e rios, o céu azul.
Um monge mendicante voa
na bengala de latão perto dos grous,
Outro, cruza a água na taça de madeira
sem alarmar as gaivotas.
Parece que estou diante
de um caminho para o Monte Lu,
Ou estou na verdade vadiando
com o monge Huiyuan?»

Não foi a única ocasião em que o olhar do poeta se fixou diante de uma pintura, iluminando-a. Uma relação dinâmica entre o poeta e os pintores que se prolongou. Na dinastia Qing, um pintor de Ningdu (Jiangxi) mas que viveria quase sempre na capital da Província, Nanchang, lembrá-lo-ia numa estrofe extraída desse poema.
Luo Mu (1622-1706) escreveu na pintura de 1685, Paisagem com árvores e rochas (rolo vertical, tinta sobre papel, 175,2 x 73,6 cm, no Museu Ashmolean da Universidade de Oxford) os dois versos de Du Fu que aludem aos «Vapores quentes exalam das rochas sob o sol inclemente,/ Sobre as correntes de lagos e rios, o céu azul», numa escolha que exclui todas as circunstâncias do poema e contrasta de modo complementar com o carácter abstracto da pintura, que se concretiza nos poucos elementos descritos no título, criando uma nova cadeia de sentidos. No longo rolo horizontal de pintura de 1661, que lhe é atribuído no Metmuseum, Paisagem de rio no Outono (tinta sobre papel, 32,7 x 665,5 cm) essa sobriedade é reforçada pela figuração de um panorama ribeirinho em que a presença humana está apenas indiciada através das casas de telhados de colmo onde se não vêem pessoas, à excepção de um pescador com o seu chapéu largo. Um cenário onde o olhar do observador, tocado pelas palavras de Du Fu, podia habitar; quem sabe se o pescador não era Huiyuan, alguém com quem iniciar uma conversa que termina numa gargalhada?

4 Nov 2022

A Paisagem Ressonante de Ma Wan

Yang Weizhen (1296-1370) dedicaria a sua vida às palavras que escreveu muitas vezes como uma homenagem ao cenário da área de Jiangnan, porém não seriam só as palavras enformadas pela nostalgia, que o haveriam de recordar após a sua eloquente passagem por essa paisagem. Song Lian (1310-81) um ministro e conselheiro de Taizu, o fundador da dinastia Ming, recordou-o na «Inscrição para o mestre Yang, o falecido supervisor da erudição confuciana em Jiangxi»: «A meio da dinastia Yuan um grande mestre da literatura surgiu na área de Zhejiang e ele era o mestre Tieyai.
A sua voz ressonante e o seu brilho luzente subiram ao alto e penetraram no céu. Jovens de Wu e Yue aproximavam-se dele em grande número, do mesmo modo que as montanhas prestam homenagem ao Monte Tai e todos os rios fluem para o mar. Uma situação que só terminou ao fim de mais de quarenta anos.» O sobrenome Tieyai «Penhasco de ferro» com que foi conhecido resulta de um episódio biográfico: o seu pai Yang Hong, vendo que ele não estudava, mandou encerrá-lo numa torre no cimo da colina do mesmo nome onde durante cinco anos viveu isolado a estudar os clássicos.
Quando fez o exame jinshi em 1327 provou como os conhecia, em particular os Anais das Primaveras e Outonos (Chunqiu) e os seus comentários. E apesar de ter exercido funções oficiais em Tiantai ou Qianqing (perto da actual Shaoxing) a sua vocação cumpriu-se na área da literatura. Song Lian: «Com um turbante de Huayang e um casaco de penas, Yang partia num barco-casa na Piscina do dragão ao longo da ilha da Fénix, segurando a fauta de ferro a seu lado e quando a tocava, o som subia a pique, penetrando as nuvens. Os que observavam suspeitavam estar perante um imortal exilado.» Ver-se-ia em pinturas a tradução visual do som da flauta de Yang.
Ma Wan (c.1310-78) o poeta e pintor da actual Nanquim, que terá aprendido a arte com Yang Weizhen, pintou paisagens que respondiam a essa animação dos sentidos em Jiangnan. Em Paisagem de Primavera (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 83,2 x 27,5 cm, no Smithonian) que lhe é atribuída, nota-se a caligrafia de Tieyai, celebrando a alegria de navegar no rio Changjiang. Dois eruditos a cavalo prestes a passar uma ponte de madeira ecoam dois barcos no meio do rio.
Em Intenção poética de nuvens ao entardecer (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 95,6 x 56,3 cm, no Museu de Xangai) quase se pode escutar a flauta de Yang. Song Lian: «Com a idade ele foi-se tornando cada vez mais descomedido. Construiu um jardim isolado e um «terraço de Penglai» a norte do rio Song e não passava um dia que não recebesse convidados e ficasse profundamente embriagado. Depois ordenava cantoras que cantassem a «Neve branca» acompanhando-as na pipa de fénix. Alguns convidados dançavam rodopiando livre e graciosamente. Parecia mesmo o porte dos nobres da dinastia Jin.»

26 Out 2022

Zhang Wo dançando com a sua sombra

Su Dongpo (1037-1101), que viveu dolorosamente o exílio, escreveu um célebre poema recordado no Festival do Meio-Outono, e conhecido como «Prelúdio à melodia da água» (Xuidiao getou) onde constam os versos que sublinham a saudade e alertam para os perigos do isolamento:

Como gostaria de voltar cavalgando o vento,
Mas receio o Palácio de cristal
e a Torre de jade lá no alto
onde poderei não conseguir suportar o frio.
Levanto-me e danço com a minha sombra clara:
ainda estou no Mundo dos homens?

O exílio poderia ser entendido como a condição do poeta como a viveu Qu Yuan (339-298 a.C) e identificou no Li Sao, Encontrando a tristeza, que consta da antologia Chu ci, as Elegias de Chu. A figura do poeta unia-se assim aos versos de origem xamânica, escritos para serem cantados em forma de antífonas no decurso de cerimónias rituais e, fazendo uma ponte para o mundo dos seres sobrenaturais, facilitavam a transmissão de objectivos morais, métodos estilísticos do passado e à exposição expressiva do trabalho do pincel.
Foi o que na dinastia Yuan um pintor literato de Hangzhou chamado 張渥 Zhang Wo (activo entre 1336-64) fez e mostrou no rolo horizontal Nove Cantos (Jiu ge) de que existem três versões. Duas de 1346, uma no Museu de Xangai, outra no Museu Provincial de Jilin (tinta sobre papel, 29 x 523,5 cm). Outra de 1361 está no Museu de Arte de Cleveland (tinta sobre papel, 28 x 438,2 cm) contendo o texto original na caligrafia de Chu Huan (activo 1361- c.1450), que acompanha as onze representações.
Entre elas, uma das mais antigas figurações do poeta Qu Yuan e mais dez seres imortais que constam das Elegias. Executadas sem cor ou diluição de tinta (baimiao) mostram, no esplendor das suas linhas claras e ondulantes, a cadência do movimento de ondas e nuvens, particularmente nas etéreas figuras dos dois poemas mais conhecidos, dedicados à Divindade e à Dama do rio Xiang.
Zhang Wo recriou nessa pintura um tema e um método já usado por Li Gonglin (1049-1106), que aperfeiçoou e que vinha já do pioneiro Gu Kaizhi (345-406) e do seu rolo Ninfa do rio Luo, que também se apoiava num poema narrativo de Cao Zhi (192-232), que descreve encontros e desencontros com uma ninfa desse rio cujo original se perdera, mas fora recriado várias vezes durante a dinastia Song. Um género de pintura em que os seus amigos literatos gostavam de se rever.
Da biografia de Zhang Wo consta uma breve carreira de funcionário imperial, abandonada por desencorajamento ou perseguição baseada em preconceitos regionalistas. Mas desde que abandonara a burocracia, encontrara o mecenas Gu Ying (ou Gu Dehui, 1310-69) que lhe proporcionou a possibilidade de viver da arte da pintura. Achará nela um lugar de exílio oposto ao destino funesto de Qu Yuan. Como escrevera Su Dongpo: «Se o meu coração encontra aqui a paz, aqui será a minha aldeia natal.»

18 Out 2022

Wang Jun e as Pedras de Sonho

Ruan Yuan (1764-1849) cumprindo as suas funções de funcionário imperial iria desde a sua terra natal de Yizheng perto da grande cidade de Yangzhou (Jiangsu) até às mais díspares regiões, algumas tocando as fronteiras do Império Qing, criando no espaço e no tempo uma intrigante figura luzente. Desenhada a partir das suas origens humildes ao Grande Secretariado em Pequim, escorada na convicção confuciana do homem justo e da sua virtude, também vislumbrou o indizível da arte.

Governador da Província de Guandong entre 1817 e 1826 tomou acções decisivas no combate ao comércio do ópio tendo estendido a sua acção até Macau onde, em 1821, terá ordenado a prisão de vários traficantes. Mas a sua curiosidade estendeu-se aos conhecimentos dos estrangeiros, ao publicar um estudo biográfico sobre astrónomos e matemáticos da dinastia que incluiu trinta e sete missionários Europeus que viveram no Império e escreveram sobre o assunto.

Em 1820 em Cantão, fundou a notória Academia do Oceano da Erudição (Xuehai Tang). O pintor Wang Jun (1816- depois de 1883) interrogou o seu enigma vital nos locais por onde ele caminhou. No álbum Legado dos feitos de Ruan Yuan em dez cenários pintados (tinta e cor sobre papel, 27,9 x 33,7 cm, no Metmuseum) escreveu na última folha: «No meio do Inverno de 1883 o neto do mestre, Jingcen, trouxe-me um álbum para pintar, assim reuni passagens das “Notas do barco de um imortal” (Yingzhou Bitan) que ele compilou e que poderiam ser representadas em pinturas e apresentei-as nas páginas precedentes para sua instrução.» Essas passagens referem lugares como a Torre Wenxuan onde «o mestre não apenas erigiu uma torre a Oeste do templo da sua família, exclusivamente para guardar os seus livros mas também escreveu um ensaio sobre ela.»

Wang Jun referia assim o apego de Ruan Yuan aos livros, sendo inéditas as bibliotecas que ele promoveu bem como as reuniões de objectos artísticos que prolongavam a sua colecção pessoal e que foram pioneiras da ideia de um «museu» em templos célebres. Deles faziam parte as «pedras de pintura» (huashi) ou «pedras de sonho» (mengshi) da montanha Cangshan, na área de Dali, que ele coleccionava desde que fora governador de Yunnan (1826-35).

Nessas pedras cortadas em fatias, conservando os veios, o observador podia recriar na sua imaginação o aspecto de uma paisagem e escrever na margem uma anotação. Num rolo vertical (tinta sobre papel salpicado de ouro, 164,5 x 40,7 cm, no Smithonian) ele caligrafou um poema evocando Su Shi, que começa: «Pedras de pintura de Taicang assemelham-se a multidões de nuvens,/ O engenho humano não alcançaria a majestade da arte do Céu./

As caravanas de flores e pedras terminaram e o rio Bian congelou,/ O estúdio do Lago de neve foi destruído, as nuvens escureceram, o mestre Su há muito partiu e a sua pedra também.»

6 Out 2022

Retratos Que Gu Jianlong Fez na Horizontal e na Vertical

«Os lotos murchos, as pétalas dobrando-se para se proteger da chuva,/ Os crisântemos despidos ainda orgulhosos nos seus ramos estendidos atravessando a geada./ Há que lembrar que este é o tempo oportuno para a paisagem ser observada,/ Se as laranjas estão amarelas e os cunquates verdes, é esta a estação adequada.»

Wu Weye (1609-72) o poeta, pintor e literato atento e celebrado que viveu num desconfortável tempo de desencontros foi representado na pose habitual dos retratos de ancestrais, sentado de face virada para a frente como se olhando o tempo que passou e o que virá. Observando o rolo vertical (tinta e cor sobre seda, 149,7 x 89,8 cm, no Museu de Nanquim) como que se pressente a verdade sobre os seus arrependimentos no olhar desolado, debaixo da cabeça coberta com um tradicional barrete de tecido preto do tipo fujin, que já se usava na dinastia Han. E que contrasta com as vestes claras acinzentadas, mais escuras perto dos pés, calçados de vermelho tal como a espécie de almofada confortável que cobre a inesperada cadeira grosseira onde está sentado, construída com ramos nodosos de madeira não tratada. Uma peça de mobiliário cujo significado foi evoluindo em pinturas, desde iconografia característica de personalidades budistas até caracterizar agora a elegância espiritual de personalidades cultas. Que se reconheciam em palavras do Daodejing: «Bloqueia as aberturas, fecha as portas, amacia as arestas, desfaz os nós, abranda o teu olhar; deixa que as tuas rodas se movam apenas em antigos sulcos. Isto é conhecido como a misteriosa paridade.» (Cap.56) O autor da pintura, que em algum momento certamente se espelhou no olhar humilde do retratado, era um pintor de Suzhou chamado Gu Jianlong (1606-depois de 1687) que se relacionou com essas distintas figuras de literatos tendo acompanhado o poeta Qian Qianyi (1582-1644) a Pequim onde esteve nos anos de 1660-70 e realizou pinturas e retratos nos mais diversos estilos para outras relevantes personalidades da corte e da cultura, afirmando a sua vocação de apreender o olhar do outro. No retrato horizontal de Wang Shimin (1592-1680) que está no Instituto de Arte de Minneapolis (rolo, tinta e cor sobre seda,35,2 x 119,7 cm) ele moldaria o conteúdo da representação ao formato do suporte.

Gu Jianlong faz nessa pintura um retrato que é a detalhada descrição da morada organizada de um homem de letras, que se vê no centro na única divisão que abre para a rua, numa pose descontraída de perna traçada. Está rodeado de álbuns perfeitamente arrumados dispostos sobre mesas e armários. Separados dele, em corredores, quartos e outras divisões da mansão aninhada entre nevoeiros e árvores, como pinheiros, salgueiros e canas de bambu, encontram-se mulheres, criados e até crianças. Num desses quartos, o mais sumptuoso, diante de um tieluo está na sua pose digna, a esposa do pintor e numa janela velada ao seu lado, percebe-se ainda uma outra senhora. É um retrato da vida habitual muito diferente do de 1616, que o mostra isolado, feito por Zeng Jing (1564-1647) quando Wang Shimin tinha pouco mais de vinte anos e que o mostra sério, concentrado no futuro.

8 Ago 2022

Como Li Song Viu a Onda Sob o Luar

«Montanhas verdes atrás de montanhas, mansões atrás de mansões,/ Quando terminarão as canções e as danças no Lago do Oeste?/ Um vento quente aquece os visitantes, tornando-os desnorteados,/ Parece que a justa Hangzhou se vai assemelhando à velha capital, Bianzhou.»

Su Shi (1036-1101) preservou em emocionantes poemas a árdua experiência de estar no meio de tempestades embarcado no meio de um rio. Quando em 1082 escreveu as suas reflexões sobre o passado e as guerras no Penhasco Vermelho (Qianchibi fu) após uma viagem com amigos no rio Changjiang, foi esta situação que o poeta descreveu como «pairávamos livres como se tivéssemos deixado o mundo para trás, nos tivessem nascido asas e voássemos como os imortais», que se tornou de tal modo visual que os pintores repetidamente a evocariam. Como no caso de uma notável pintura feita alguns anos após a morte do poeta e que o mostra nessa embarcação com amigos no meio das ondas e rochedos sem margens e, o único vestido de vermelho é o poeta que volta a cabeça para um penhasco. Essa memória visual (folha de álbum montada como rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 24,7 x26,3 cm, no Museu Nelson-Atkins) é atribuída a um pintor de Hangzhou, que estava ao serviço da corte, num tempo em que era fluida a fronteira entre os pintores literatos e académicos, e se notabilizaria por ilustrações da irrupção do incomum no habitual da vida quotidiana, chamado Li Song (1166-1243). Existiria uma afinidade do pintor com o poeta atento às mudanças e que anotava as permanências, como ele escreve no poema da Lua do meio-Outono (…) «A Via Láctea está silenciosa, volto-me para o prato de jade,/ O bem desta vida não durará muito tempo./ No próximo ano onde observarei a lua brilhando?» Essa mesma velha lua do meio-Outono cuja claridade na disponibilidade da noite, permite reconhecer os amigos foi observada por Li Song através de um espantoso fenómeno natural que ocorre anualmente perto de Hangzhou. Em Observando a onda numa noite de luar (folha de álbum, tinta e cor sobre seda, 22,3 x 22 cm, no Museu do Palácio em Taipé) o pintor alcança uma memorável síntese poética.

Li Song dispôs os poucos elementos da sua pintura num cuidadoso equilíbrio. Uma mansão construída à beira das águas colocada entre duas árvores nuas, com um pátio onde estão rochas e pinheiros, dentro da casa pequenas personagens deixadas em branco, parecem fantasmas, como se adquirindo a cor da lua, que na pintura tem uma coloração que dir-se-ia humana. Só algumas estão na varanda a assistir a essa violenta maré que empurra as águas do rio Qiantang no equinócio do Outono, fazendo-as correr ao contrário e é um acontecimento raro no mundo (no Brasil designado pororoca) e é o que ocupa o centro da pintura. Está alinhada debaixo da lua e de uma inscrição que refere que é preciso abrir a porta e «observar a onda nocturna sob o luar» e é acompanhada pelo vistoso carimbo da Senhora Gongsheng (1162-1233) a imperatriz Yang dos Song, que nas suas três linhas cortadas é o trigrama kun, da terra, o receptivo, que dialoga com a onda dita localmente do «dragão de prata», yinlong.

1 Ago 2022

Palavras Que Dialogaram Com a Paisagem de Xia Gui

Por Paulo Maia e Carmo

 

Juefan Huihong (1071-1128) o monge que se tornaria uma das mais eminentes personalidades do Budismo Chan, teve um desafiante início de vida. Nascido em Yunzhou (actualmente em Jiangxi) orfão dos dois pais em 1084, o filho de um funcionário teria poucas possibilidades de encontrar um lugar na rigidez social da dinastia Song, que só acharia quando se juntou a um convento.

A sua dedicação ao estudo foi por vezes posta em causa, acusado de excesso de erudição para atingir a iluminação espiritual do Dao. Numa dessas ocasiões ele respondeu, dialogando com Lingyun Zhiqin, um célebre monge da dinastia Tang que escrevera: «Durante trinta anos procurando uma espada,/ Tantas vezes folhas cairam e rebentos despontaram,/ Uma vez olhei para uma flor de pessegueiro,/ E deixei de ter dúvidas.» Huilong respondeu no poema: «Quando Lingyun a viu uma vez, já não voltou a olhar,/ Esses ramos adornados de vermelho e branco não mostram flores./ O infeliz pescador que não pescou nada do seu barco,/ Regressou para pescar peixe e camarões em terra seca.» O seu mestre leu e aceitou-o. Também escreveu palavras tão concretas que quase mostram uma paisagem. Como o poema que inspirou o pintor Xia Gui (activo c. 1195-1230) para realizar uma pintura sob o tema das «Oito vistas de Xiaoxiang»: «A chuva da noite passada acalmou, o ar da montanha está pesado, Vapor subindo, o sol e a sombra; luz cambiante no meio das árvores; O mercado de minhocas vai fechar, a multidão diminui, Salgueiros à beira dos caminhos ao longo da ponte do mercado; como fios dourados a brincar, De quem é a casa com terreno cheio de flores para lá do vale? Que suave o trinado do pássaro amarelo chamando na brisa primaveril, Bandeiras anunciam vinho na distância enevoada – olha e verás; É o que está a Oeste do caminho para o Vale Sulcado da Árvore Zhe.»

Xia Gui foi um pintor profissional da corte e por isso mesmo desvalorizado, sobretudo a partir da hierarquia criada pelo influente teórico Dong Qichang. E no entanto ele é autor de pinturas alusivas e inovadoras, exemplares até para o tipo de linhas ditas fupi cun. A ausência de literatura contemporânea na sua biografia, bem como de escritos de sua autoria, denuncia um preconceito que só olhando a obra se percebe como foi superado.

As pinturas associadas à corte Song do Sul (1127-1279) apresentam-se habitualmente sob a forma de rolos verticais, folhas de álbum ou redondas para leques.Vale a pena por isso observar o seu extenso rolo horizontal Doze vistas da paisagem (tinta sobre seda, 27,3 x 353,6 cm) que está no Museu de Arte Nelson-Atkins, na cidade do Kansas. Apresenta-se hoje apenas com quatro vistas pintadas mas ao longo do tempo foi sendo acrescentado com colofónes que o estenderam para o triplo. Testemunho de quem olhou e, como o mestre que leu as palavras de Huihong, acreditou.

7 Fev 2022

A Viagem de Li Shi e o Perigo de Adormecer Com Tigres

Mokuan Reien o peregrino budista Japonês que foi ordenado em Kamakura em 1323, passados três anos foi para a China onde viveu até 1345, para aprofundar o Dao na região de Jiangnan. Primeiro no templo Liutang, na área do Lago do Oeste e depois durante dez anos no templo Benjue entre 1333-43,onde dirigiu o repositório dos Sutras. Também fez pinturas, que o levariam a ser considerado um segundo Muqi (ou Fachang, 1210-1269) o admirável pintor do Chan também associado ao templo Liutang, particularmente venerado no Japão. As pinturas de Mokuan, levadas para a sua terra natal, seriam admiradas tanto pela concepção do acto de pintar como pelos temas. Como é o caso dos Quatro a dormir (Shisui, rolo vertical, tinta sobre papel, 73,7 x 32,5 cm) que hoje se encontra em Tóquio na colecção da Fundação Maeda Ikutokukai. Nela convergem o significado e o modo de fazer, desenrolando o paradoxo de figurar o que não se pode ver, que é referido como o «sonho», sonhado pelas personagens adormecidas. Os três que são associados ao Monte Tiantai (Zhejiang): Fenggang, Hanshan e Shide e o tigre que sempre acompanhava o primeiro. As figuras operam aqui como um dispositivo despertador de uma corrente de significados associados ao mistério de Hanshan e Shide, personalizações de um conjunto de preciosos poemas. Na pintura está uma inscrição feita por Shaomu do templo de Xiangfu, que saúda com «as mãos juntas»: «O velho amigo Fenggan abraçando o tigre, dorme,/ Num amplexo de grupo com Hanshan e Shide./ Sonham o Grande Sonho da fluida impermanência,/ Enquanto uma árvore velha e frágil se agarra à beira do precipício.» Esse precipício a que ele alude pode ser aquele estado entre o sono e a vigília ou entre a sombra (jing) e a penumbra (wangliang) que dialogam por exemplo no capítulo dois do Zhuangzi.

Li Shi que esteve activo no século XII é um nome associado a uma pintura cujo título pode ser traduzido como «Viagem em sonho pela região dos rios Xiao e Xiang» (Xiaoxiang woyou, rolo horizontal, tinta sobre papel, 33 x 403,6 cm) que está também em Tóquio no Museu Nacional, onde é visível uma técnica que é referida com esse nome de «penumbra» – wangliang hua, habitualmente traduzida como «pintura de aparição.» Na figuração imaginada da área que foi frequente motivo de poetas, e que seria encapsulada como tema na denominação «Oito vistas de Xiaoxiang» tudo é ao mesmo tempo conciso e vago. Nalguns lugares como que dissolvendo-se na bruma, dialogando com o que não pode ser visto, numa reafirmação de que o lugar da sua apreciação é no mundo da literatura. Que estas duas pinturas se encontrem no Japão não será alheio o facto de ter sido ali que se desenvolveu o género pictórico designado sumi-e, figuras de água e tinta, em que as formas, como se fora o tempo, fogem imprecisas sem se fixar – dir-se-ia um sonho.

3 Fev 2022

Lu Hong, o Pintor Que Caíu Nas Graças do Imperador

«Uma cabana num ermo, situada no cume de uma montanha deserta,/ E uma árvore velha, sem flores, debruçada sobre as águas./ Depois de almoço procurei um lugar assim, tranquilo e retirado,/ Mas o frio excessivo torna o entardecer amargo e trágico.»

Wang Wei (701-761) seria sempre visto como o ideal do literato que personifica o encontro das artes complementares de objectivos antiteticos da pintura e da poesia, o que se materializa de modo admirável nas vinte pinturas com os correspondentes poemas, que incluem as respostas a um desafio poético do letrado Pei Di, num rolo horizontal, onde estaria representado o seu retiro campestre, e que por isso são conhecidas pelo nome do lugar em Lantian, a sul de capital Chang’an: Wangchuan. A lenda que o envolve bem como os poemas (traduzidos para português por A. G. de Abreu, em Poemas de Wang Wei, ICM, 1993) como ideias, sobreviveriam incólumes ao passar do tempo, as pinturas enquanto objectos perecíveis, só através de cópias, processo pelo qual se perde o «ritmo espiritual» (qiyun) original. Entre essas cópias, aquela que é reconhecida como mais próxima do modelo é o rolo horizontal (tinta sobre seda, 29 x 490,4 cm) que se pode ver no Smithonian, da autoria de Guo Zhongshu (c. 927-977). Mas a ideia de fazer uma pintura do lugar de retiro de literatos, rodeados de uma paisagem de eleição, entendida como a revelação do carácter e da sua verdadeira natureza, que com ela se identificam como num auto-retrato, seria recriada ao longo de muitos anos por outros pintores como, de modo notável, por Li Gonglin (1049- 1106) no seu rolo horizontal, Herdade de montanha (Shanzhuang, tinta sobre papel, 28,9 x 364,6 cm) que se encontra no Museu do Palácio Nacional, em Taipé. Porém, ainda no tempo de Wang Wei, na dinastia Tang, conhece-se uma pintura feita por um letrado de Yuzhou (Hebei) chamado Lu Hong, favorecido pelo imperador Xuanzong (685-762) que não só aceitou a recusa de o servir como funcionário imperial num cargo que lhe destinou, como lhe ofereceu uma propriedade nas faldas da montanha Songshan, perto da cidade de Luoyang (Henan).

Lu Hong (activo entre 713-41) fez-se representar, escutando a natureza ou dialogando com um amigo nesse refúgio, na pintura Dez vistas de uma cabana de telhado de colmo (Caotang shizhi) de que existem igualmente várias cópias, a mais fiel será a que se encontra no Museu do Palácio Nacional, em Taipé (tinta sobre papel, 29,4 x 600 cm) e que hoje se apresenta como um rolo horizontal com dez secções. Na sua ingenuidade, é possível perceber a personalidade telúrica, daoísta de Lu Hong, diferente da elegância do budista Wang Wei ou da paisagem imersiva de Li Gonglin. Em duas secções a sua figura, desproporcionada em relação à paisagem, surge no topo de elevações de lugares, a quarta das quais é descrita poeticamente como «almofada de nuvens» tal como a nona: uma «caverna para descortinar a verdade». Subido nesses lugares de onde se pode ver mais longe, ele porém não parece estar a olhar mas a ensinar, pelo exemplo, devolvendo pela arte o que recebeu de graça.

15 Nov 2021

Os Amigos de Zhang Yu e a Nostalgia da Errância

Nizan (1301-1374), o mais livre dos pintores da dinastia Yuan (1279-1368), passou o seu tempo vagabundeando desde que, em 1366, abandonou a sua casa fugindo a um ataque de soldados saqueadores que prenunciavam já o fim da dinastia, alojando-se em casa de amigos, em mosteiros budistas, reflectindo no espaço a liberdade do seu espírito. Esses poucos que encontrou no mundo e que o receberam não o impediam de perceber um outro olhar de outros que o desprezavam, ao contrário a sua sensibilidade permitia-lhe reconhecer a sua vida como uma anomalia, quiçá um caminho para uma outra coisa e essa seria indizível. «Aquilo que designo como pintura não é mais do que a alegria de desenhar despreocupadamente com o pincel. Não busco a semelhança, faço só o que me entretém e alegra. Recentemente vinha caminhando ao acaso e cheguei a uma cidade. As pessoas que lá quiseram saber das minhas pinturas queriam-nas exactamente como desejavam, representando um momento particular. Então, foram-se embora insultando-me, amaldiçoando-me de todas as maneiras possíveis.» A sua via estranha seria prosseguida por outros individualistas como Huang Gongwang ou Wu Zhen entre outros. Mais tarde, quando os historiadores da pintura, escolheriam estes como os pintores que estavam no caminho certo. Porém ao lado deles, pintores como Zhao Mengfu (1254-1322) e outros, persistiriam aparentemente num outro modo de representação que se alguns consideraram mais conservador porque referindo os modelos clássicos, mostravam a mesma dor de um impreciso exílio. Foi o caso de um pintor de Suzhou que, ao contrário de Nizan, terá ficado em casa.

Zhang Yu (1333-1385?) foi poeta, calígrafo e pintor numa era em que estas artes, que perseguiam objectivos diferentes, eram praticadas pelos mesmos artistas. Num tempo em que era perigoso viajar, o pintor fez questão de celebrar a amizade em Suzhou, pelo que se pode deduzir do seu memorável grupo dos «Dez amigos da Muralha do Norte» da cidade. No mesmo ano de 1366 em que Nizan abandonava a sua morada, Zhang Yu fez a pintura de uma paisagem intitulada «Nuvens de Primavera sobre o estúdio dos pinheiros» (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 92,1 x 31,8 cm e que está no Metmuseum em Nova Iorque) em que, tal como nas pinturas de Nizan, não aparecem figuras humanas mas em que, pressentindo-se o mesmo nostálgico sentimento de quem se quer um eremita, tudo é enganosamente próximo do real. Os «pontos de Mi» nos cumes das montanhas, referência cultural que alude a Mi Fu (1074-1151) denunciam o seu carácter artificial. Talvez um dos seus amigos, Wu Gui, escreveu na pintura um poema: «Mestre Zhang, inspirado e elegante,/ No seu estúdio dos pinheiros, com o seu pincel delicado, fez maravilhas./ Tantas vezes a poesia evoca a pintura,/ Mas como é semelhante a comparação que a pintura evoca.”

1 Fev 2021

Figuras da Alegria e do Silêncio no Acolhimento do Chan

Fanyin Tuoluo, o abade pintor de um mosteiro de Kaifeng no século XIV, utilizou o seu estilo caligráfico num álbum de pinturas que retratam encontros entre um mestre e um aprendiz intitulados «Feitos dos mestres Chan», diálogos de monges que foi um dos temas que ajudaram o reconhecimento do Budismo Chan. Na página que retrata «Budai e Jiang Mohe» (35,6 x 48,5 cm, a tinta sobre papel) que se conserva no Museu de Arte de Nezu, em Tóquio, ele mostra o momento em que Jiang se apercebe finalmente que o monge Budai é uma manifestação de Maitreya, o Buda do futuro. Budai, também referido como o «buda que ri», ou o «gordo» ou o «feliz», cuja lenda diz que teria vivido cerca de 907-923 no reino de Wuyue no tempo das Cinco Dinastias e Dez Reinos, e cujo nome significa «bolsa de pano», um dos elementos que o caracterizam e onde transportava consolações para o mundo que sofre, seria uma reconhecível figura na difusão popular do Chan. O riso, expressão clara da empatia com que quase sempre é retratado o Budai, também está presente na pintura do século XII, «Três gargalhadas no Rio dos tigres»

Huxi Sanxiao, que refere um provérbio que conta o momento em que o solitário monge budista Huiyuan (334-416) se encontrou com o confuciano Tao Yuanming (365-427) e o daoísta Lu Xiujing (406-477) e desataram a rir quando se aperceberam que, de tão embrenhados que estavam na sua conversa, nem se aperceberam que tinham atravessado uma região infestada de tigres. Nessa pintura que está no Museu do Palácio Nacional em Taipé, feita no estilo de «rugas talhadas com machado», fupi cun de Li Tang (c. 1050-1130) a tinta e cor sobre seda, fica clara a relação harmoniosa entre as três filosofias. Num outro ícone do Budismo, desta vez sempre envolto em silêncio, também se espelhava a harmonia e seria repetido pelos pintores.

Jueji Yongzhong, um obscuro monge pintor do século XIII é o autor de uma dessas figuras. A sua fluida e sintética «Guanyin vestida de branco» (104 x 42,3 cm, rolo vertical, tinta sobre papel) de que uma cópia está no Museu de Arte de Cleveland, contém uma curiosa anotação: «uma de oitenta e quatro mil pintadas pelo sacerdote Insei», o que seria uma resposta a uma promessa do «Sutra do Loto» que assegurava a «via do Buda» a quem se dedicasse a mostrar as figuras do Budismo. Dessa Guanyin, a que «escuta os pesares do mundo», na aparente informalidade do traço rápido, desprende-se uma impressão de proximidade. Como também no caso do diálogo a dois, ou na conversa a três com diversos pontos de vista; nessas confissões privadas transmitidas em silêncio à Guanyin, estão exemplificados valores de cumplicidade e de atenção fraterna que foram mostrados pelos pintores, testemunhos da forma como o Chan foi sendo acolhido desde que Bodhidharma atravessou um largo rio numa fina cana de bambu.

25 Jan 2021