Paulo Maia e Carmo Via do MeioA Via da Descoberta de Fang Yizhi Nicolas Trigault (Jin Nige,1577-1628), o missionário jesuíta que publicou em Hangzhou no ano de 1626 um primeiro glossário de romanização de palavras chinesas, o Xiru ermu zi, «Auxílio para os olhos e ouvidos dos literatos ocidentais», fê-lo como o nome indica para ajudar os Europeus que contactavam com uma língua muito diferente da sua. E, no entanto, alguns anos depois, entre os literatos locais houve quem estivesse atento a esse sinal pioneiro de compreensão, como de resto estava a muitas outras formas e meios de expressão. Fang Yizhi (1611-1671) elogiou esse modo económico e elegante de fazer «cada conceito ligar-se a uma única palavra e cada palavra a um único sentido, como no distante Ocidente, onde os sons se combinam com os conceitos e palavras se formam de acordo com os sons». Era a livre opinião de um letrado que fez parte daqueles súbditos dos Ming que se sentiam incómodos durante a mudança dinástica (yimin) o que influiria de modo drástico na sua vida. Nascido em Tongcheng (Anhui) numa família onde se cultivavam as letras e desde cedo ligado a um grupo literário designado Fushe, «Sociedade da restauração», razão porque teve de partir para o Sudeste disfarçado de vendedor de remédios, ramo do conhecimento que viria a dominar. A percepção que teve desse caminho em adaptação constante – dele são conhecidos trinta e nove nomes – expressou-a no poema Du wang, «Vou sozinho»: Meus queridos companheiros estão todos dispersos, Pela minha parte vou sozinho para os bosques. Num único ano mudei de nome três vezes, Nove em dez palavras atormentam os meus ouvidos. Habituei-me a ouvir notícias da guerra, A minha mágoa aprofunda-se com a chuva e o vento. Não será difícil cessar de existir, Mas a falta de algum amigo causar-me-ia imensa dor. Fang Yizhi deixaria tocantes pinturas que são as pegadas dessa via em que se fez acompanhar da memória de antigos pintores, como na folha de álbum Velhas árvores e pinheiros, imitando Nizan (26,8 x 2 cm, no Museu de Hunan). Mas ele que viria a abraçar a vida de monge itinerante do Budismo chan, com o nome monástico Yaodi Yuzhe, o «humilde galeno», sabia de lugares onde peregrinos eram acolhidos como a natureza recebia a vida humana, o que figurou no rolo vertical Um templo oculto nas montanhas (215,5 x 84 cm, tinta sobre papel, no Museu Nacional de Arte da China). Sentindo-se acolhido dispôs-se a conhecer de um modo objectivo. Foi o que propôs no livro Wuli xiao shi, «Notas sobre o princípio das coisas» onde se lê: « Entre o céu e a terra tudo é medicina, tudo é uma coisa, tudo tem uma causa. Não há nada sem yin e yang, qi ou sabor bem como mutuas interações e transformações. Com um método: Quando seguires a razão até um ponto que não consegues entender, vira-te para algo que entendas, para o dominar – usa o concreto para compreender o escondido.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioJin Chushi e o Quinto Rei Dos Infernos Bao Zheng (999-1062), nascido perto da actual Hefei (Anhui), mais conhecido como o «juiz Bao», permaneceria na memória popular como um homem justo, defensor de camponeses e gente comum contra injustiças perpetradas por corruptos. Quando estava no seu posto de magistrado em Duanzhou (actual Zhaoqing, também conhecida como Shiuhing, Cantão) escreveu um poema que é uma declaração de princípios: A essência da governação consiste em possuir sempre um coração limpo, A estratégia da vida é seguir sempre vias direitas. Um caule elegante tornar-se-á num pilar e o aço refinado nunca será torcido até se tornar um gancho. Ratos e pardais alegram-se quando as tulhas estão cheias, assim como raposas e coelhos se preocupam quando os prados secam. Os livros de História contêm as lições dos que já morreram; Não deixais apenas desonras aos vossos descendentes. Na evolução do sincretismo religioso em que a mitologia popular vai recebendo influências do Budismo e Daoísmo, a fama do juiz suscitaria a suspeita de que ele era na verdade o quinto rei, Yanluo wang, da série dos misteriosos Dez Reis do Inferno que actuam como juízes, e como tal aparece ainda hoje nas populares «notas do inferno» que se queimam nos templos. Na radiosa capital Youdu, ele reinaria sobre todos os outros reis de Diyu, um lugar correspondente ao conceito budista Naraka, e que se traduz como «prisão da Terra», um purgatório onde são julgadas as faltas dos que morreram e se preparam para reencarnar. Um conceito que se prestava às mais ousadas expressões da fantasia e como tal foi sendo recriado em pinturas murais de templos, como avisos. Entre os seus augustos autores conta-se o célebre Wu Daozi (act. c. 719-c.760) que terá feito uma pintura a fresco desse lugar tormentoso no templo Jingyun de Chang’an. Uma renovada curiosidade surgiria no século X quando aparece o apócrifo «Sutra dos dez reis». A que responderam atelieres de pintura, como um situado em Mingzhou, actual Ningbo (Zhejiang). Jin Chushi, um leigo budista dessa cidade, activo no fim do século XII, é o nome que consta numa série de dez rolos verticais (tinta e cor sobre seda, 129,5 x 49,5 cm, no Metmuseum) onde aparecem os dez reis-juízes sentados em faustosas cadeiras diante de painéis com paisagens apenas sugeridas, cada um com a jurisdição sobre um tipo de faltas e de pessoas. Atrás das suas barras, os magistrados têem a cabeça coberta com o tongtian guanfu, que indica uma «ligação directa com o céu», usado por imperadores em ocasiões especiais. Em baixo, figuras de pesadelo empurram os réus na expiação dos seus erros. No caso do quinto rei, algo que se verá noutras representações, existe um espelho para onde um demónio obriga o penitente a olhar. Será esse outro tribunal, o da consciência, o mais severo, que recordará as admonições de Bao Zheng?
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO engenho do autor do Engenho de Água Li Zhi (1059-1109), um letrado da dinastia Song do Norte que entre os seus amigos contava eminentes espíritos livres, recordados na obra Jinan Xiansheng shiyou tanji, «Discussões com mestres e amigos», escreveu sobre outros antigos pintores que o impressionaram. Como o excêntrico e engenhoso Guo Zhongshu (c.910-977), autor do rolo vertical Viagem no rio quando a neve ia clareando, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, uma das mais impressionantes pinturas feitas no estilo jiehua, «pintura de limites». Em 1098, ao reflectir sobre dezanove Jardins famosos de Luoyang (Luoyang mingyuan ji) elogiou-o: «Quanto à pintura de construções arquitectónicas, torres, e pavilhões, Shuxian (seu nome alternativo) alcançou o seu próprio estilo, que era o mais maravilhoso de todos. Nas suas pinturas, as vigas dos telhados, as traves, pilares e barrotes são mostrados com espaços abertos entre eles, através dos quais nos podemos movimentar. Umbrais, lintéis, janelas e vestíbulos parece que podem realmente ser atravessados, abertos e fechados (…) E de tal modo que, ao desenhar um grande edifício tudo esta à escala e não existe a mais pequena discrepância.» Essa sofisticação da representação que impressionava os observadores alcançaria um ponto alto numa pintura em que o modo da figuração se adequa ao objecto representado. Esse rolo horizontal, que se encontra no Museu de Xangai, o Engenho de água (tinta e cor sobre seda, 53,3 x 119,2 cm) suscita imensa admiração e está envolto em dúvidas sobre a sua autoria ou o período histórico exacto em que foi feito. Wei Xian, um pintor das Cinco dinastias (907-960), é um dos nomes de autores apontados, porém uma interpretação daquilo que está na representação indicia um tempo posterior. O desenho meticuloso leva outros autores a atribuírem a sua autoria ao polímata que foi astrónomo e engenheiro mecânico entre outros, Zhang Sixun (activo durante o século X) já na dinastia Song. Zhang Dunli (?-1100), genro do imperador Yingzong (1032-1067), e a quem são atribuídas pinturas muito diferentes que mostram a vida despreocupada de aristocratas, como Jogando cuju num pátio como passatempo (folha de álbum, tinta e cor sobre seda, 28,2 x 29,7 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé), é outro possível autor da pintura do Engenho de água. Nela se percebe a vontade dos imperadores Song de alardear as inovações administrativas e tecnológicas. Como a da máquina que usava a força da água movendo uma azenha para moer o arroz e outros cereais, separando os grãos comestíveis da casca. Mas, desde os planificadores que, no canto superior esquerdo, se sentam para estudar o projecto, até à taberna no canto inferior direito onde trabalhadores descansam, existe todo um sistema tão organizado e laborioso que houve quem ali visse uma representação do neidan shu, a alquimia interna do daoísmo.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioZheng Min e as Recordações Das Montanhas Amarelas Zhuangzi, o clássico do século IV a. C. que escreveu sobre a «vadiagem feliz», afirmou que «O homem perfeito usa a sua mente como um espelho – sem procurar nada, não acolhendo nada, respondendo sem guardar. Assim consegue triunfar sobre as coisas sem se magoar». Essa vocação de «vaguear onde não há caminho», muitas vezes deslocando-se sobre as águas dos rios, nunca guardando nada senão memórias, foi sentida como um guia por homens de letras e pintores. Certas paisagens, como o cenário invulgar das Montanhas Amarelas (Huangshan), como que convidavam os passeantes para nelas inscreverem novos caminhos. Uma «escola de pintura» foi designada com o seu nome e dela participaram grandes mestres como Hongren ou Shitao. E os que eram originários da província de Anhui, onde se situam essas montanhas, como o pintor e poeta Mei Qing (1623-1697), deixaram desse convívio com a natureza testemunhos de uma viva impressão. Como no decurso de um passeio com familiares e amigos numa embarcação descendo um rio: «A chuva clareando, dir-se-ia um céu de Outono, Vamos descendo o rio Qing, navegando neste navio pintado, A cidade obscurecida e o campo vasto, As montanhas verdejantes tocam as ondas, Sons de flauta entristecem os poetas; Nos aposentos monásticos velhos monges meditam tranquilamente. Não há isco para o dragão que se não vê, Apenas a serena piscina de água.» O poema acompanha o rolo vertical Navegando no sopé da montanha Xiang (tinta sobre papel, 134,6 x 59,1 cm, no Metmuseum) onde outros amigos também escreveram poemas como um seu jovem discípulo Shi Runzhang que assinalou, não apenas o dia exacto em que decorreu o passeio – 21 de Maio de 1673, como lembrou o poeta Li Bai que por lá passou compondo poemas e como esse era também o lugar onde o imortal magistrado Dou Ziming pescou um dragão branco. Essas impressões em grupo de nada valiam se não fossem partilhadas. Zheng Min (1633-depois de 1683), pintor e poeta que terá participado nessa jornada e era de Shexian, igualmente em Anhui, terá sido o destinatário do rolo, mas também ele faria pinturas e poemas recordando as famosas montanhas para partilhar, lembrando caminhos solitários na memória. No álbum de nove páginas com pinturas e caligrafias Oito vistas das Montanhas Amarelas (tinta sobre papel, 24,1 x 14 cm, no Metmuseum) ele refez alguns dos lugares mais célebres das montanhas como o Cume de loto, a Ponte dos imortais ou o Pinheiro dragão enrolado, contrastando-os com poemas. O que o motivou foi um pedido do seu jovem amigo Chuzhen. Para isso recordou duas jornadas que fez por lá em 1670 e 1673, a última há já sete anos. E acrescenta que, se «no futuro, depois de todos os seus filhos se casarem», ele alguma vez lá for, «espero que leve este álbum com ele para comparar com os lugares reais. Serei então o seu guia.»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA Exactidão do Palácio Mirífico de Yuan Yao Qinwang Zheng, ou Zheng, o rei de Qin (259-210 a. C.) depois de vencer seis Estados combatentes em 221 a. C. imaginou um reinício da História que começava pela sua própria designação que passou a ser Qin Shihuang di, o «Primeiro monarca esplendoroso». Das diversas leis, formas e práticas vigentes nos outros Estados fez uma só, das muitas muralhas que protegiam cada um deles, fez só uma Grande muralha de dimensões desmesuradas, Wanli changcheng; mandou queimar livros que pudessem pôr em causa o seu pensamento e para alardear o seu vasto poder mandou erigir um fabuloso palácio em Epang no ano 212 a.C.. O destino das várias acções seria desigual. É certo que huangdi passaria a ser a nomeação de todos os futuros poderosos dirigentes a que chamamos «imperadores»; a extensa muralha, sempre acrescentada, permaneceria como um desafio; as ideias que se lhe opunham, pela sua natureza, nunca seriam contidas; o palácio de dimensões exageradas não seria acabado e como clara figuração do seu poder, objecto da ira do rebelde Xiang Yu que acabaria por conquistar Xianyang, a capital do seu reino, situada perto da actual cidade de Xian. Mas o fogo que consumiu o palácio Epang, além das ruínas, deixou intacto o ambicioso sonho de pedra. Muitos anos depois o poeta dos Tang, Du Mu (803-852) que nunca o viu, refez na imaginação a prodigiosa construção (…) «que se estendia por mais de trezentos li, tapando o sol no céu e desde o Norte da montanha Lishan ziguezagueava para Oeste e depois virava direito para Xianyang. Dois rios (Wei e Jing) fluíam no seu curso brando em direcção aos muros do palácio. A cada cinco passos havia uma torre, a cada dez passos, um pavilhão com corredores que serpenteavam como seda ondulando. E as pontas dos beirais eram projectadas como bicos de pássaros. Cada estrutura tirava partido do terreno, mas todos estavam engenhosamente entretecidos, ou cada um aposto ao outro.» (…) Yuan Yao (activo entre 1720-80), o pintor profissional de Yangzhou (Jiangsu), propôs mais de uma vez as formas que poderia ter o palácio que se estendia numa colina entre dois rios. Numa dessas pinturas no Museu de Belas Artes de Boston, a Vista imaginada do palácio Epang (tinta e cor sobre seda, 172,6 x 127 cm), ele utilizou o método jiehua, «pintura de limites» ou feita com réguas, e o estilo gongbi, o pincel minucioso para reproduzir o efeito de espanto que causaria a visão da construção que figurou em harmonia com a paisagem. Adequação entre o estilo e o deslumbramento do objecto pintado que Yuan Yao partilhava com o seu familiar Yuan Jiang (1670?-1755?) outro pintor de Yangzhou com quem foi por vezes confundido. Mas se a impressão de opulência e esplendor do palácio na pintura espelhava a estabilidade política e económica do tempo, isso contrastava fortemente com a era da imensa vontade de Qin Shihuang.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAs Nuvens Sobre a Mesa de Yang Jin Tao Hongjing (456-536), o sábio daoísta multifacetado nascido em Moling, perto da capital Jiankang, a actual Nanquim e que seria autor de estimados textos que esclareceriam o Dao, como o Zhengao, a «Declaração do Aperfeiçoado», teve desde muito cedo a intuição de que o lugar a que pertencia, a sua pátria electiva, era no meio das montanhas Juqu, hoje designadas Maoshan. Para lá se dirigiu desde 492 e apesar da distância e do isolamento, a sua fama de eremita erudito, yinshi, foi-se estendendo sempre ao longo dos mais de oitenta anos da sua vida que decorreu num período especialmente turbulento que viu sucederem-se treze imperadores. O mais memorável de entre eles era também uma personalidade notável capaz de reconhecer a luz que brilhava no escuro no meio das montanhas. Xiao Yan (464-549) que fundaria uma nova dinastia terá consultado Tao Hongjing para escolher um nome auspicioso para o seu reinado. Desde então chamado imperador Wu de Liang (r. 502-549) uma palavra de múltiplos sentidos que incluem a ideia de uma cadeia montanhosa, não cessou de honrar o daoísta a quem atribuiu o título de «chanceler das montanhas» e para quem mandou erigir, onde ele vivia, o eremitério Zhuyang guan, a «Abadia Yang da cor cinábrio». Entre os dois desenvolveu-se uma fecunda relação literária e espiritual nascida da aparente contradição entre um homem que aprofundava o Dao e outro que foi responsável por uma progressiva disseminação e sinização do Budismo, que declarou como religião oficial do Estado. No final ambos reconhecendo os méritos do outro, contribuindo para a heterogénea religião nacional. Da conversação literária entre os dois foi guardado um esclarecedor poema de Tao Hongjing dirigido a Xiao Yan: Perguntou-me o que há de tão interessante nas montanhas, e há tantas nuvens brancas pairando sobre os cumes. Mas só cada um, por si só, as pode admirar. Não as podemos segurar nas mãos para vo-las apresentar, senhor. Yang Jin (1644-1728), um pintor erudito que contribuiu para a exuberante riqueza visual exibida pela dinastia Qing no seu desejo de assumir a herança cultural vinda de dinastias precedentes, colaborando com o seu mestre Wang Hui (1632-1717) na ilustração das Viagens ao Sul do imperador Kangxi, prolongaria aquele inolvidável diálogo através de um poema. Numa pintura feita para o álbum de dezasseis folhas, Paisagens a partir de antigos mestres (tinta e cor sobre papel, 27, 9 x 30,8 cm, no Metmuseum) em que participam outros cinco pintores, sobre uma paisagem enevoada ao estilo de Mi Fu (1051-1107) escreveu: A chuva abandonando as vastas regiões despovoadas faz as cores da madrugada transparecem e surge o azul celeste dos vapores de montanhas distantes. Nuvens brancas enchem a minha mesa ao desenrolar a pintura. Quem pode dizer que elas não podem ser enviadas a um senhor?
Paulo Maia e Carmo Via do MeioLu Wenying, as Cores da Pintura e a Intuição da Chuva Huizong (r.1100-1126), o imperador que cultivou as artes do pincel, terá lançado uma provocação entre os pintores da sua corte que consistia na figuração em pinturas de versos que ele propunha. Um desses versos pode ser traduzido como: «Vai o cavalo galopando pisando flores, os seus cascos exalando fragrâncias.» Houve quem respondesse pintando um cavalo galopando livre numa floresta de flores caídas. Porém o que mereceu o aplauso do monarca mostrava: indícios de tinta vermelha no centro, o perfume, e duas borboletas esvoaçando assustadas, o cavalo acabara de passar. Essa escolha sobre como representar ideias imbuídas do ritmo da vida, o desafio próprio da pintura, foi revelando o engenho dos autores. Um pintor na dinastia Ming mostrou em dois exemplos, uma particular adequação da intenção do criador ao formato da pintura. Juntamente com Lu Ji (act. c. 1439-1510), Lu Wenying (1421-1505) encenou num rolo horizontal a celebração num jardim, como era já então um tema habitual entre eruditos, o sexagésimo aniversário de três altos funcionários. Nesse Encontro no jardim de bambu (Zhuyuan shouji, tinta e cor sobre seda, 33,8 x 395,4 cm, no Museu do Palácio, em Pequim) estão pintados, de maneira ritmada e em etapas como convém a um lento desenrolar, doze literatos sentados, alguns nas sofisticadas cadeiras portáteis de «costas de ferradura», jiaoyi. São reconhecíveis pelas suas cabeças ornadas pelo wushamao, o tipo de chapéu de tecido preto com duas asas exclusivo dos funcionários da corte, e estão acompanhados de sete jovens criados, um dos quais dança com um grou, o pássaro da longevidade. Todos estão identificados com uma espécie de filactério. Entre eles estão retratados os dois autores do rolo, vestidos cada um com uma das duas cores com que por vezes é referida a própria arte da pintura, danqing, o vermelhão do pigmento do cinabre (dansha) e o verde-azul do ciano (qinglu, azurite). Lu Wenying, pintor de Zhejiang, que tal como Lu Ji foi chamado à corte no reinado de Hongzhi (r.1487-1505), também intuiu a vocação do rolo vertical para apreender uma visão única. Na pintura Tempestade numa vila junto do rio (Jiangcun fengyu, tinta e cor sobre seda, 170,5 x 103,4 cm, no Museu de Arte de Cleveland) o olhar, pelo enganoso processo da percepção simultânea, inunda-se com a violência da água precipitando-se, inclemente. Mas se é certo que estão figuradas ondas alterosas, bandas oblíquas de tonalidades da tinta que sugerem bátegas e mesmo dois homens que se protegem com uma cobertura de palha e um guarda-chuva, o olhar descobrirá uma pequena figura que parece sorrir numa janela. Dentro de casa, protegido da intempérie, um rapaz observa o mesmo que nós: está dentro e fora da pintura. Como alguém que esteja diante da pintura, ele olha a chuva que cai mas que não saíu do pincel do pintor.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAs crianças que aguardavam por Tao Yuanming Wang Qihan (act. 950-75), autor de uma célebre pintura de um Literato que limpava os ouvidos ao lado da qual Yongcheng, o quarto filho do imperador Qianlong, escreveu que aquela era uma obra que «circulara, deliciando muitos olhares», também concebeu outra representação que mostra uma fina sensibilidade capaz de provocar a mesma sensação de inesperado deleite. Numa folha de álbum (tinta e cor sobre seda, 43 x 33,2 cm, no Museu de Belas Artes de Boston) de Mulheres e crianças junto de um lago com lótus diante de um salgueiro (simbolizando a ausência do pai?) apresenta uma cena íntima e familiar: junto de um bebé, uma mãe que cultiva as artes e as letras, como se vê nos rolos de pinturas e caligrafias e um qin atrás dela. O que explicará o gesto leve e o olhar brando com que levanta o braço para acalmar as brincadeiras mais irrequietas de outras crianças que estão num pátio à sua frente. Se bem que invulgar entre as obras dos literatos, esse género de figuração de mulheres e crianças, ou apenas crianças, tornar-se-ia uma característica única da pintura das seguintes dinastias Song e Yuan, depois repetida em obras impressas e artes decorativas, como espelho exemplar da harmonia familiar nas dinastias seguintes. Porém, de modo típico, nessa altura a atenção ao espaço da intimidade familiar estava ancorada na sublimidade literária das palavras de poetas como Tao Yuanming (365-427). Em Regresso a casa (Guiqu laici, poema IV) o poeta recorda com alegria os que o esperavam ao chegar ao seu refúgio campestre: «(…) E então vi a minha casa de família, Cheio de alegria pus-me a correr, Um rapaz meu criado veio receber-me Meus filhinhos esperavam-me à porta (…) Os três caminhos quase não se distinguiam mas os pinheiros e os crisântemos ainda lá estavam. Segurando as crianças pela mão, entrei na minha morada (…)» A descrição, feita com tal detalhe inspiraria inúmeros pintores. He Cheng (1224-depois de 1315) foi um dos autores de vários rolos horizontais que recriam essa situação como o anónimo, dos mesmos anos de 1300, que está no Museu de Arte de Cleveland ou o feito a partir de um original de Qian Xuan (1239-1301), que está no Metmuseum (tinta e cor sobre papel, 106,7 x 26 cm), que se tornariam um tema querido por pintores, sobretudo depois do rolo horizontal de Li Gonglin (c. 1049-1106) que está no Smithonian (tinta e cor sobre seda, 37 x 521,5 cm). Deles faz parte a encenação desse encontro com as crianças, que torna visíveis os sentimentos do poeta ao regressar. Um pediatra da dinastia Song, Qian Yi (c.1032-1113) escreveu sobre esse olhar de ternura do poeta e da mãe, na pintura de Wang Qihan: «Acredito que disseminar o afecto é uma responsabilidade das pessoas de bem. Cuidar dos mais novos é uma instrução que nos foi passada pelos sábios. Como poderemos não propagar essa protecção?»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioWang Qihan e o Literato Que Limpava os Ouvidos Cai Yong (132-192) o erudito calígrafo e entendido na música do qin, certo dia foi convidado para o serão em casa de um amigo que o quis obsequiar povoando o ambiente sonoro com uma melodia suave, para o que dispôs um músico tocando o qin discretamente atrás de um biombo. Subitamente porém Cai Yong levantou-se e saiu exasperado. Quando o anfitrião perplexo quis saber a razão de tal procedimento, a resposta terá sido ainda mais assombrosa; o ilustre convidado alegou que notara na música que escutava um «sentimento assassino». Procurando uma explicação, o anfitrião interrogou o músico. Este, revendo as ideias e os sentimentos que lhe atravessaram o espírito enquanto tocava, lembrou-se que estava observando os movimentos de um louva-a-deus que se aproximava de uma cigarra, cujo chilrear o incomodava e como desejava que o primeiro acabasse com o ruído da outra. Ao ouvir a explicação, Cai Yong respondeu bem-humorado: «Ah, então foi isso.» A anedota, contada para enaltecer a fina sensibilidade do erudito da dinastia Han Oriental, coloca também em evidência o biombo, essa peça de mobiliário que serve para separar mas também para capturar anonimamente os mais escondidos segredos, os mais leves sussurros e ardis. Na dinastia Tang do Sul (937-960) pintores como Zhou Wenju ou Gu Hongzhong usaram em pinturas esse dispositivo referido comummente como pingfeng, «guarda-ventos», para encenar visualmente vias para descobrir e encobrir verdades. Outro caso exemplar foi imaginado pelo pintor da actual Nanquim, Wang Qihan (act. c. 950-75). Numa pintura conhecida pelo gesto inesperadamente privado da sua figura principal que, diante de três biombos, levanta a mão direita para limpar o ouvido, o imperador Song Huizong (1082-1135) que foi uma das eminentes personalidades que a possuiram, escreveu na margem direita da representação, na sua distinta e elegante caligrafia designada shoujin duas palavras, Kanshu, Examinando livros, que passaria a ser o seu nome formal. Wang Qihan, que no catálogo de pinturas Xuanhe huapu (1120) do tempo de Huizong, é referido no capítulo IV como pintor de temas budistas e daoístas, de que será exemplo a obra que lhe é atribuída de um Imortal (presumivelmente Lu Dongbin) montado num dragão (folha de álbum, tinta e cor sobre seda, 40 x 37,5 cm, na Galeria de arte da Universidade de Yale) seria porém objecto de uma persistente admiração devida à figuração de um gesto íntimo. Examinando livros, rolo horizontal guardado na Biblioteca da Universidade de Nanquim (Kanshu tu, tinta e cor sobre seda, 284 x 65,7 cm) mostra uma cena dominada por três biombos pintados com paisagens harmoniosas, em frente deles, uma cama e em cima dela, um qin. À direita, diante de uma mesa com livros o literato repousa descalço, o dedo no ouvido, confiante, numa manifestação da sua longanimidade.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO vento nas ameixieiras de Wang Shishen Shitao (1642-1707), o pintor peripatético, vagueando pela região de Jiangnan, «a Sul do grande rio Changjiang» figurou um poeta erguendo-se num barco, olhando impressionado para uma enorme massa rochosa e escreveu os versos: Enquanto o vento vai soprando na Ravina Ocidental quem permitiu que o poema se completasse sozinho? Tanta pena da ameixieira, a solitária do frio, que não tem companhia. Daqui apenas se avistam os poucos ramos que sobraram, Flores caídas enchem já o chão e a Primavera ainda não terminou. Um coração amargurado, apertado como uma semente, consegue persistir em tais pensamentos constantes A pintura numa folha de álbum (Reminiscências de Qinhuai, tinta e cor sobre papel, 25,5 x 20,2 cm, no Museu de Arte de Cleveand) é exemplar do seu processo como pintor literato individualista para quem o crescente simbolismo da pintura como que pedia o contraste dinâmico com a palavra poética. Essa figura do indivíduo solitário no meio da paisagem está presente em muitas das suas pinturas e até foi assim que ele fez o seu Auto-retrato supevisionando a plantação de pinheiros. Um outro pintor, seu contemporâneo e da mesma região de Jiangnan, habitante da cidade de Yangzhou, também figurou esse sujeito sensível que da natureza recebe sinais de lentas ou delicadas mutações. Wang Shishen (1686-1759) faria uma rara pintura de um homem caminhando ao frio com um jarro de barro, que se presume cheio de neve para ser derretida e feita água, quem sabe se para o chá, aproximando-se da vedação de uma habitação coberta com um telhado de palha, a que chamou Pedindo água de neve (rolo vertical, tinta sobre papel, 91 x 26,8 cm, no Museu de Arte da Universidade de Princeton). Wang Shishen, o pintor de Anhui que escolheu o nome artístico de Chaolin, «aninhado na floresta», ficaria conhecido pelas suas pinturas de ameixieiras. Um álbum de oito pinturas de Paisagens e flores no Metmuseum (tinta e cor sobre papel, 20,3 x 25,1 cm) será um modelo a mostrar a potenciais compradores a sua habilidade de pintor profissional na rica região comercial ao longo do Grande Canal. Mas noutras pinturas, como Flores de ameixieira, no Museu de Arte de Cleveland (rolo vertical, tinta sobre papel, 144,4 x 75,7 cm) descreve uma situação típica das actividades dos literatos: «Em busca de flores de ameixieira com amigos, Aproveitamos a frescura de um dia claro, Sinto leves os meus sapatos pretos e as meias de algodão, Que belos os bosques diante da porta deste antigo templo, Caminho para a frente e para trás, como se habitasse numa pintura.» Noutro poema diz: «O distinto badalar de um sino rompe o silêncio nas montanhas, Mil anos depois todos os heróis das Seis dinastias estão esquecidos, Sob uma janela budista apreciamos os dias ociosos, Ramos e flores de ameixieira guardam para si todo o vento Leste.»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioCheng Xiuji, um Pintor, um Imperador e o Livro das Odes Tang Wenzong (809-840), o monarca que percebeu o grandeza do exemplo, mandou emitir um decreto apontando como Três maravilhas do grande império dos Tang, Sanjue webian, a poesia de Li Bai, a caligrafia de Zhang Xu e a arte da espada de Pei Min. Como que confirmando essa intuição imperial sobre o valor da poesia, Wang Yinglin (1223-96), o filósofo e ensaísta os Song do Sul, guardou em Kunxue Jiwen a memória de uma relação entre o imperador Wenzong, um pintor e o grande texto clássico Shijing, que reúne poemas e canções de várias tradições, cuja compilação é tradicionalmente atribuída a Confúcio (551-479 a. C.) e é traduzido entre outros, como Livro dos Cantares ou Clássico da Poesia. Aí se diz que, não estando satisfeito com a figuração «da vegetação, dos animais silvestres e dos retratos de antigas dignidades» de ilustrações anteriores, Wenzong pediu que fossem refeitas as pinturas relativas aos trezentos e cinco poemas. O pintor escolhido foi Cheng Xiuji (804-63) e, se o celebrado poeta dos Tang Du Mu (803-52) o menciona num Encómio como alguém que se distinguiu pelo modo admirável como refez as pinturas que ilustram o célebre texto e que lhe valeriam a promoção a Hanlin daizhao, «talento às ordens», parte do grupo criado pelos imperadores dos Tang como conselheiros eruditos, outras fontes referem-no primeiro como um alto funcionário militar, detentor de títulos de nobreza. É o caso, raro para um pintor, de um Epitáfio que detalha o seu percurso na hierarquia oficial desde que passou o Exame sobre a compreensão dos clássicos, em 826. Uma terceira fonte, que se interessa mais pela sua qualidade como artista, lê-se no texto de biografias de mais de cem pintores, Tangchao minghualu, que o descreve como «aluno durante vinte anos» do preclaro pintor Zhou Fang (c.730-800). Zhu Jingxuan (activo entre 806-46), o seu autor, escreve: «Desde a era Zhenyuan (785-805) ele foi o único indivíduo na capital cujo avanço [na hierarquia] se deveu apenas à sua mestria como pintor e foi continuamente agraciado pelo favor imperial.» O caso de Cheng Xiuji, com um imperador e o Shijing repetir-se-ia. Na dinastia Song do Sul, o imperador Gaozong (r.1127-62) ordenou que a sua própria caligrafia fosse utilizada para reescrever os poemas do Shijing e solicitou ao ilustre pintor Ma Hezhi (activo entre 1131-89) que fizesse as ilustrações, de que uma parte se pode ver no Museu do Palácio, em Pequim (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 27 x 383,8 cm). Qianlong (r.1736-95) também mandou que pintores da sua corte fizessem ilustrações para o texto, que ele próprio reescreveu. De modo característico, foi um projecto grandioso de trinta álbuns, um dos quais se pode ver no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, que demoraram seis anos a ser terminados e brilhariam como uma das maravilhas do seu reinado.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAs Dez Etapas do Chan e os Cinco Bois de Han Huang Chen Hongshou (1598/9-1652), com a linha livre e caprichosa do seu pincel, fez uma pintura representando o momento em que Laozi (571-471 a. C.) está na iminência de passar um curso de água, uma fronteira em direcção ao Ocidente, a partir da qual mais ninguém tornaria a ver aquele que o historiador Sima Qian afirma ter sido incumbido de preservar documentos históricos. O sábio é representado na pintura (folha de álbum, tinta e cor sobre seda, 30,2 x 26,7 cm, no Museu de Arte de Cleveland) seguindo vagarosamente montado num boi e já cumpriu a sua missão, deixando para trás o clássico do daoísmo, o Daodejing que através dos tempos iria assegurar a sua fama e glória, como indicam as flores de híbisco que na pintura estão atrás dele. O animal lento, paciente, confiável e obstinado que o transporta também teria um lugar na memória dos vindouros, com um vínculo particular ao budismo chan. Num dos instrumentos experimentais do chan, o gong’an, mais conhecido com o nome japonês koan, há um que conta como um monge que trabalhava na cozinha do mosteiro foi interpelado pelo mestre àcerca do que estava fazendo. «Nada de mais», respondeu o monge «apenas pastoreando o boi». O mestre perguntou-lhe então «como» o estava fazendo. O monge respondeu: «Cada vez que o boi se afasta para ir comer erva, levo-o de volta ao trabalho.» No século XII o mestre do chan, Kuoan Shiyuan (activo c.1150) propôs uma série de dez etapas de meditação, para o que escreveu dez poemas e dez ilustrações, que o praticante devia seguir para purificar o corpo e o espírito, que tem no centro a figura do boi, antiga analogia referida no Sutra do Lótus como o «boi branco», metáfora para a transcendência do samsara, o ciclo contínuo da morte e da vida. Em Shiniu tu, o mestre começa com o poema Em busca do boi, cujo primeiro verso diz: «Na grande vastidão afastando os matos, vou procurando, perseguindo-o». Nessa dinastia Song (960-1279) a figuração da figura do boi alcançaria grande popularidade mas antes já fora objecto de uma pintura excepcional. Han Huang (723-787), um alto funcionário da dinastia Tang (618-907), é o autor do rolo horizontal Cinco bois (Wuniu tu, tinta e cor, 101,5 x 55,3 cm, no Museu do Palácio, em Pequim), considerada a mais antiga pintura sobre papel. A representação não possuía nenhum carimbo ou palavras a acompanhá-la mas tem hoje as marcas de poemas e carimbos dos coleccionadores, como imperadores, que a possuiram. Mas dir-se-ia que a expressividade do traço gracioso e seguro de Han Huang herdara a mestria de pintores e calígrafos que o precederam, cada boi surgindo inteiramente eloquente só no risco. No final do processo proposto por Kuoan Shiyuan, o praticante, encontrado o boi, está de Regresso ao Mundo e, acompanhando o poema, o mestre mostrou-o radiante de alegria diante do Budai, o buda que ri.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO vento nas ameixieiras de Wang Shishen Shitao (1642-1707), o pintor peripatético, vagueando pela região de Jiangnan, «a Sul do grande rio Changjiang» figurou um poeta erguendo-se num barco, olhando impressionado para uma enorme massa rochosa e escreveu os versos: Enquanto o vento vai soprando na Ravina Ocidental quem permitiu que o poema se completasse sozinho? Tanta pena da ameixieira, a solitária do frio, que não tem companhia. Daqui apenas se avistam os poucos ramos que sobraram, Flores caídas enchem já o chão e a Primavera ainda não terminou. Um coração amargurado, apertado como uma semente, consegue persistir em tais pensamentos constantes (…) A pintura numa folha de álbum (Reminiscências de Qinhuai, tinta e cor sobre papel, 25,5 x 20,2 cm, no Museu de Arte de Cleveland) é exemplar do seu processo como pintor literato individualista para quem o crescente simbolismo da pintura como que pedia o contraste dinâmico com a palavra poética. Essa figura do indivíduo solitário no meio da paisagem está presente em muitas das suas pinturas e até foi assim que ele fez o seu Auto-retrato supevisionando a plantação de pinheiros. Um outro pintor, seu contemporâneo e da mesma região de Jiangnan, habitante da cidade de Yangzhou, também figurou esse sujeito sensível que da natureza recebe sinais de lentas ou delicadas mutações. Wang Shishen (1686-1759) faria uma rara pintura de um homem caminhando ao frio com um jarro de barro, que se presume cheio de neve para ser derretida e feita água, quem sabe se para o chá, aproximando-se da vedação de uma habitação coberta com um telhado de palha, a que chamou Pedindo água de neve (rolo vertical, tinta sobre papel, 91 x 26,8 cm, no Museu de Arte da Universidade de Princeton). Wang Shishen, o pintor de Anhui que escolheu o nome artístico de Chaolin, «aninhado na floresta», ficaria conhecido pelas suas pinturas de ameixieiras. Um álbum de oito pinturas de Paisagens e flores no Metmuseum (tinta e cor sobre papel, 20,3 x 25,1 cm) será um modelo a mostrar a potenciais compradores a sua habilidade de pintor profissional na rica região comercial ao longo do Grande Canal. Mas noutras pinturas, como Flores de ameixieira, no Museu de Arte de Cleveland (rolo vertical, tinta sobre papel, 144,4 x 75,7 cm) descreve uma situação típica das actividades dos literatos: « Em busca de flores de ameixieira com amigos, Aproveitamos a frescura de um dia claro, Sinto leves os meus sapatos pretos e as meias de algodão, Que belos os bosques diante da porta deste antigo templo, Caminho para a frente e para trás, como se habitasse numa pintura. Noutro poema diz: O distinto badalar de um sino rompe o silêncio nas montanhas, Mil anos depois todos os heróis das Seis dinastias estão esquecidos, Sob uma janela budista apreciamos os dias ociosos, Ramos e flores de ameixieira guardam para si todo o vento Leste.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA Face Inescrutável de Meng Haoran e Wang Wei Ding Gao (?-1761), o autor do tratado Xiezhen mijue, «A fórmula secreta para pintar retratos» tinha bem claro que o escrevia numa demonstração de xiao, «amor filial», não apenas como forma de estimar os seus antepassados mas também para servir de exemplo de comportamento moral a quem se quisesse dedicar à arte e à técnica dos retratos pintados. Como ele explica no texto original escrito em 1766, com o título Chuanzhen xinling, «Compreensão da transmissão da verdadeira semelhança», foi o seu bisavô Ding Yuchen quem primeiro desenvolveu o interesse da pesquisa dos segredos da arte que depois foram transmitidos ao seu avô, e depois a seu pai e que ele mesmo transmite ao seu filho. O tratado só seria publicado pela primeira vez em 1818, pelo seu filho Ding Yicheng (1743-depois de 1823) que também acrescenta um apêndice, Xuxinling, com oito questões, e mostra como uma série de diferenças se foram esbatendo durante a dinastia Qing. Entre a maneira de pintar os retratos dos vivos, comemorativos ou de dignitários, muitas vezes executados por autores famosos por vezes designados yintu, «pintura das sombras», ou os de familiares falecidos, feitos geralmente por autores anónimos, que celebravam a alma dos antepassados, também chamados fushen «representação da alma». Mas também se tornava mais ambígua a distinção entre pintores literatos e profissionais. A linguagem utilizada pelos autores junta aspectos da fisionomia popular que via na face um espelho da ordem cósmica mas também se apropria do vocabulário erudito da pintura de paisagens. Como ao dividir o rosto em Cinco Montanhas – a testa, o queixo, o nariz, a maçã do rosto direita e a esquerda; e Cinco rios – as orelhas, os olhos, a boca e as narinas. Mas uma outra categoria, a de retratos imaginados, que possuíam o prestígio da tradição como o Retrato de Fu Sheng sentado no chão, descontraído (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 25,4 x 44,7 cm, no Museu de Belas Artes de Osaka) atribuído a Wang Wei (701-761) adquiriram grande popularidade na dinastia Qing. Shangguan Zhou (1665-1750), na obra Wanxiaotang huazhuan onde figurou heróis de Estado e da cultura ao longo da História, não terá tido dificuldade em utilizar as feições convencionais de homens corajosos que exibem um excesso de energia ou as clássicas formas de mulheres belas (meiren) em retratos de corpo inteiro, a três quartos, numa linha clara que os torna leves e facilmente reproduziveis. Há, porém, no seu álbum, dois retratos de poetas que são um desafio à representação do rosto. Meng Haoran (689-91-740), o poeta que despertou preocupado com as pétalas que caíram durante a tempestade, é representado sentado, de tal modo envolto nas suas vestes que do seu rosto só são visíveis os olhos, o nariz e o bigode. Wang Wei está sentado, relaxado, a cabeça voltada, dela apenas se vê a nuca.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Jardim de Qian Weicheng – Era um Retrato de Qianlong Weize (1286-1354) o monge chan budista que assumiria o nome Tianru, criou em 1342 um jardim em Suzhou (Jiangsu) ocupando uma área vizinha a um mosteiro, em memória do seu mestre, o abade Ben Zhongfeng, a que deu o nome de Shizilin, «O bosque dos leões», leões budistas que aludiam ao poder e à virtude do Buda. Entre as várias justificações para a escolha do nome do sítio, referido como um bosque pela densidade dos bambus ali existentes, incluíam-se: o lugar onde o mestre Zhongfeng atingiu o nirvana, o Pico do leão do monte Tianmu em Lin’an (Hangzhou, Zhejiang), a caprichosa forma das porosas pedras do lago Tai, que eram parte da composição do jardim e lembravam esse animal, e o eloquente Sutra da raínha Srimala do rugido do leão. O jardim tornar-se-ia um lugar de culto atraindo homens de cultura, entre os quais o pintor Nizan (1301-74) que o recriou numa pintura em 1373, executada na forma que ele definiu; «os traços transcendentais do meu pincel têm uma aparência rústica; não buscam a semelhança com as formas» e que faria parte das colecções imperiais. Kangxi (1654-1722) numa das suas Visitas de inspecção ao Sul, em 1703, visitou o jardim o que, como muitas outras coisas que fez, muito impressionou o seu neto Qianlong (1711-99) que repetiu a visita seis vezes, na terceira das quais em 1765, lá deixou uma placa com dois caracteres zhenqu, «deleite verdadeiro», escrito pela sua própria mão. O que foi apenas uma das inúmeras manifestações do seu imenso apreço pelo jardim. Na sua primeira visita escreveu um poema onde se nota o olhar previamente cativado pelo rolo de Nizan: «Conheço o Bosque do leão há muito tempo,/ Diz-se que foi criado pelo mestre Nizan./ De início supus que se escondia num vale remoto,/ Depois percebi que se encontrava numa cidade buliçosa. (…) A colina artificial parece uma montanha verdadeira,/ Mortais e imortais estão separados por uma curta distância.» E Qianlong encarregaria um pintor de recriar a forte adesão espritual que sentia ao lugar. Qian Weicheng (1720-72) que não pertenceu à Academia imperial, viajou com o imperador em duas das visitas imperiais ao Sul e delas fez várias pinturas, confirmando a sua intimidade com Qianlong. Em Vista total do Bosque dos leões (rolo horizontal, tinta e cor sobre papel, 38,1 x 187,3 cm, na Universidade de Alberta) o jardim é reconhecível através da representação das suas feições mais proeminentes e vistas cénicas mas é sobretudo um espaço tranquilo, ao lado de Suzhou, que por metonímia funcionava como um retrato do seu dono, que nele podia passear e agir de modo privado através do olhar e do espírito. Qianlong mandaria repetir o jardim em duas propriedades suas; no Palácio de Verão e no Retiro de montanha para escapar ao calor, em Chengde (Hebei) mas com a pintura bastava desenrolá-la, estender o braço e ver.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA versão de Shen Yuan do rolo que evoca Bianjing Meng Yuanlao (c.1090-1150), um funcionário governamental que viveu em Bianjing (actual Kaifeng, Henan) dos treze aos vinte e sete anos, sendo depois forçado a abandonar a cidade capital dos Song do Norte, partindo para o exílio em Hangzhou, escreveu uma nostálgica recordação desse lugar. Que se lê como uma ilustração da expressão «menghua», um sonho projectado no passado de um paraíso perdido, por vezes referido como a utopia do imperador Amarelo sobre Huaxu, a terra da harmonia e felicidade perfeitas. Em Dongjing menghua lu, «Sonho do esplendor da capital oriental», editado pela primeira vez em 1187, a cidade é descrita como um lugar onde “A paz se prolongava dia após dia: viviam lá muitas pessoas e havia de tudo em abundância, jovens com longas tranças não se entretinham senão com danças e tambores, os mais velhos com os cabelos salpicados de branco não ligavam a escudos ou lanças. As estações e os festivais seguiam-se uns aos outros cada um com as respectivas situações para apreciar. Noites iluminadas por candeeiros e madrugadas ao luar, períodos de neve e tempos de floração, clamando habilidades e subindo alturas, formando reservatórios e jardins onde se pode passear. Erga-se o olhar e lá estão pérgolas verdes e quartos pintados, entradas bordadas e sombras preciosas. Carruagens decoradas competiam pelo estacionamento na Avenida Celestial e cavalos ajaezados lutavam para passar nas ruas imperiais. (…)” Mas a mais comum evocação de Bianjiang é uma pintura intitulada Qingming shanghe tu, que se pode traduzir como «Sobre a margens do rio durante o festival Qingming» (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 28,2 x 528,7 cm, no Museu do Palácio em Pequim) cuja autoria, no rolo, é atribuída a Zhang Zeduan (1085-1145) e mostra a buliçosa vida em torno do rio Bian. O seu singular fascínio originou inúmeras cópias e recriações das quais cerca de cem estão hoje em vários museus e colecções. Shen Yuan (act. 1728-48) é autor de uma das mais intrigantes recriações (rolo horizontal, tinta sobre papel, 34,8 x 1185 cm, no Museu do Palácio, em Taipé) que se diz ter sido apenas um guia para outra versão colorida executada por cinco pintores da corte de Qianlong. No entanto ela exibe um domínio do desenho, da perspectiva e certos pormenores que a tornam ímpar. Nela está a única confirmação de que a cena decorre no festival Qingming, «o dia de varrer as sepulturas», através de três figuras que se vêem na primeira parte junto de um túmulo, num gesto evidente de quem chora, a eloquente expressão do pesar. Na parte central que representa a ponte dita «ponte arco-íris» onde no original um navio de grande porte se encontra em risco de bater ao passar criando um grande alvoroço, Shen Yuan resolve o perigo riscando linhas rectas que são os cabos que puxam o navio, guiando-o a partir das margens.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO que Li Shizhuo escreveu nas suas pinturas Gao Qipei (1660-1734), o alto funcionário que se notabilizou pelas suas pinturas que dispensavam o pincel e utilizava de maneira bem-humorada as mãos e a ponta de uma unha que deixava crescer para o efeito, fez parte de uma família que, se não prolongou a sua intransmissível bizarria, enriqueceria a arte do pincel. Um seu sobrinho, Li Shizhuo (1687-1770) mostraria um conhecimento invulgar da história da pintura reflectindo o gosto de sistematização e erudição característicos dos pintores ao serviço do imperador Qianlong (r. 1736-95) a quem serviu durante cerca de vinte anos. Filho de um alto funcionário terá sido no decurso de uma viagem com o pai à região de Jiangnan, que entrou em contacto com o eminente pintor Wang Hui (1632-1717) que teria um papel essencial no ressurgir de importância da pintura ortodoxa de paisagens no fim do século dezassete, com quem terá aprendido os fundamentos da arte. E na ausência de um manual de pintura seu, as inscrições que fez em pinturas constituem um corpo crítico revelador de um saber muitas vezes partilhado nos convívios dos literatos. Em Paisagem a partir de Wu Zhen (1289-1354) e Shen Zhou (1427-1509) que está no Instituto de Arte de Minneapolis (rolo vertical, tinta sobre papel, 65,2 x 32,8 cm) ele mostra um à vontade que não é isento de certo tom autobiográfico: « As pessoas gostam das pinturas de Shitian (Shen Zhou) e dizem que alcançou os mistérios ocultos de Mei Daoren (Wu Zhen). No entanto elas não percebem que na realidade isso era uma tradição familiar que recebeu do seu pai, Hengji (Shen Hengji,1409-1477). Ontem passei em Guazhou (Yangzhou, Jiangsu) e sentado numa janela à chuva virada para as águas, pintei e pus os pontos (dian) nesta pintura cuja concepção está entre Wu e Shen.» Na adopção desse «espírito dos antigos», guyi, foi consciente da síntese informada que fizera Zhao Mengfu (1254-1322) como na Paisagem no estilo desse mestre, no Smithonian (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 94,4 x 42 cm). Li Shizhuo ao ler o tratado Bifa Ji, «Notas sobre o método do pincel», escrito em parte como um diálogo, actualizou o que nele se defende sobre a verdade do pintor. Em Paisagem a partir de Jing Hao (c.855-915) e Guan Tong (activo a meio do século X) alude a uma célebre distinção académica sobre o uso da tinta ou o domínio do pincel: «Jing Hao chamava-se a si mesmo Hongguzi. Ele escreveu o Segredo da paisagem, e certa vez proclamou orgulhoso: “Wu Daozi poderá ser excelente com o pincel mas é deficiente com a tinta. Xiang Rong pode ser excelente com a tinta mas falta-lhe o trabalho de pincel”. E assim Honggu podia reclamar ser mestre dos dois. Como resultado Guan Tong procurou-o para seu instrutor. Ele foi realmente uma figura destacada do final da dinastia Tang. Aqui tentei mostrar o melhor de Jing Hao, escondendo os seus defeitos.»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioZhang Ruocheng, a Viela Estreita e o Espírito Livre Zhang Tingyu (1672-1755), o erudito e historiador que dirigiu a compilação da História dos Ming, foi também um político notável ao serviço de três sucessivos imperadores; Kangxi, Yongzheng e Qianlong, num tempo em que em que a grandeza e o poderio do império dos Qing alcançou um ponto alto. E mesmo se, no fim da sua vida as relações com Qianlong se deterioraram, ele seria o único funcionário oficial superior de etnia han durante a dinastia Manchu, a ter uma tabuleta póstuma em sua memória no Templo dos antepassados, Taimiao, junto da Cidade Proíbida. Conhecendo a sua biografia, dir-se-ia que essa capacidade de adaptação a um tempo de grande convulsão interna, apoiada numa facilidade de comunicação pela convergência da elevação dos espíritos, era para ele uma herança familiar. Em Tongcheng (Anhui) onde nasceu e de onde era originária a sua família, é conhecida uma história sintetizada num «provérbio» em que o seu pai é o protagonista. Diz-se que Zhang Ying o seu pai, funcionário na corte, recebeu um dia uma carta dos familiares que estavam na casa de família que lhe pediam para resolver uma disputa com o vizinho do lado acerca dos limites das duas casas, que os tribunais locais não conseguiam solucionar. A resposta de Zhang Ying veio na forma de um poema que dizia: «Escrevem-me uma carta de tão longe, a grande distância só por causa de um muro, Toda uma confusão só por causa de um ou dois metros. Olho para a Grande Muralha, longa de dez mil quilómetros, Passado é já o tempo do seu construtor, o imperador Qinshihuang.» Os familiares entenderam e num gesto de condescendência recuaram o muro, um metro. O vizinho, olhando para o gesto também percebeu e recuou igualmente o seu muro um metro, criando entre as duas propriedades uma congosta com cerca de dois metros de largura. A situação exemplar para a resolução de conflitos seria até hoje referida com os três caracteres liu chi xiang, «ruela apertada, espíritos abertos». Zhang Tingyu teria três filhos que serviriam o imperador e que se distinguiram nas artes do pincel em que a moral e a estética eram padrões que qualificavam os literatos. Ruoting (1726-1802) na caligrafia, Ruoai (1713-46) mostrou agudeza de abservação e domínio da alegoria na pintura de pássaros e plantas, e Ruocheng (1722-70) faria pinturas de paisagens em que a proporção era indiferente à dimensão. Num longo rolo horizontal, Viajando até ao sagrado cume do Sul (34,9 x 632,6 cm, no Museu de Arte do Condado de Los Angeles) os lugares figurados são identificados em pormenor, como num mapa. Noutro pequeníssimo rolo, vendido no mercado (Bonhams) com inscrição de Qianlong (tinta sobre papel, 3,8 x 16,5 cm) feito para ser colocado numa «arca de muitos tesouros», duobao ge, revela intimidade com o imperador esteta que valorizou a sua própria família como um tesouro.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioComo Zhang Ruitu viu o luxo ao entardecer Zhu Youjiao (1605-1627), que reinaria como o imperador Tianqi (r.1620-7), foi retratado na sua pose solene, rodeado de abundantes símbolos do seu poder, o qual segundo se deduz da crónica, o jovem monarca desprezava. Literatos cultos que olhassem para o retrato, de que existem dois exemplares, um no Museu do Palácio, em Taipé (rolo vertical, 203,6 x 156,9 cm, tinta e cor sobre seda) e outro no Museu de Arte de Indianapolis, reconheceriam aquela projecção do luxo. Mas os opulentos e sofisticados têxteis, o minucioso trabalho das vestes bordadas e de todos os outros objectos que o rodeiam, como a cadeira de dragão ou o painel por trás dela, seriam percebidos como indícios da maré luxoriante que o engoliria. Comparando com os retratos imperiais do início dos Ming, que depois Qianlong reuniria em 1748, na sua galeria Nanxun, a «fragrância do Sul» na Cidade Proibida, nota-se que a autoridade é aí projectada de maneira porventura mais humilde, mais centrada na pose e na pessoa do imperador. O curto mandato de Tianqi seria pontuado por uma série de decisões erradas e fenómenos naturais desfavoráveis como cheias e consequentes fomes e descuidos desastrosos, lidos de maneira supersticiosa como sinais de mau agouro. E o poder que o monarca descurava, era delegado no ambicioso eunuco Wei Zhongxian (1568-1627) que, pelo modo subtil como tinha de implementar as decisões que tomava, criou uma rede imperceptível de lealdades e inimizades. Alguns letrados brilhantes próximos do poder, quando Wei cai em desgraça, seriam arrastados nessa vaga de repulsa. Para um letrado de Jinjiang (Fujian) que passara o exame imperial em 1609, essa foi uma oportunidade de exprimir o seu olhar independente. Zhang Ruitu (1570-1641) foi identificado como fiel a Wei Zhongxian e só pagando uma multa escapou à prisão, mas teve que se retirar do serviço público e regressou à sua terra natal, em 1628. Aí, indiferente às teorias de Dong Qichang, recriou a seu modo as paisagens monumentais dos Song do Norte, como o rolo vertical Montanhas ao longo das margens do rio (tinta sobre seda, 167 x 51,4 cm, no Metmuseum) onde, com a sua expressiva caligrafia, escreveu: Embarcações deixam a cidade e entram na floresta, Estando as margens do rio afastadas, elas flutuam no céu. Num rolo vertical da sua caligrafia (no Museu Britânico) anotou a sua versão do luxo: “Sozinho no cume mais alto, sobre camadas de rochas, aprecio a vista do entardecer sobre pinheiros e trepadeiras sinuosas. Vejo pássaros voando ao longe na floresta, encontrando o monge que regressa ao luar. O céu atrás das árvores é baixo um metro, metro e meio; estão longe centenas, milhares de nuvens de contornos nítidos. Sento-me num supedâneo de juncos, tudo está tranquilo e em silêncio, excepto o som cadenciado do sino trazido pelo vento a partir de uma fila de cavernas.”
Paulo Maia e Carmo Via do MeioNi Yuanlu pintou uma pedra ou uma nuvem? Mi Fu (1052-1107), o poeta e pintor dos Song, um dia ao tomar posse como magistrado no distrito de Wuwei (actualmente em Anhui), quando caminhava para a residência oficial, parou admirado diante de uma pedra. Logo envergou as vestes formais e segurando a placa do seu posto nas mãos, inclinou-se numa longa vénia de respeito perante o capricho silencioso da erosão natural e dirigiu-se ao monólito: «Pedra, minha irmã mais velha». Noutra ocasião tomou uma decisão que iria lamentar toda a vida, ao trocar uma das pedras de moer a tinta da sua lendária colecção por uma nova casa que nomeou Retiro de Montanhas e Oceanos. Viver retirado do Mundo era uma ambição dos literatos a exemplo de Tao Qian (365-427) que explicitou em muitos poemas essa utopia, e de modo particular nos vinte que compôs «estando ébrio», de onde deriva uma caracterização que parte dessa situação: yinjiu, a «vida na solidão rural». No fim dos Ming altos funcionários desesperados com o declinar inexorável da dinastia referiam-se a essa quimérica terceira porta, depois da inocência, do conhecimento convencional, a percepção livre e espontânea. Como o poeta e pintor de Shangyu (Zhejiang) Ni Yuanlu (1593-1644) no poema Imprevisto estando ébrio: Não ficarei com os pés atados à janela do Sul mas, com eles desembaraçados, irei dez mil li para onde quer que me guiem. Como ficar indiferente a livros preciosos ou longas espadas? Em pleno dia cantarei alto a cada coisa maravilhosa. Dado que o mestre Yang* só encontrou desprezo ao escrever sobre mistérios, terei Du Fu, que bebia muito, como guia. E não é preciso perguntar o que farei com a minha vida: seguirei adiante, contemplando montanhas, com um bastão de bambu na mão. Ni Yuanlu, na última página de um álbum de 1640 (tinta e cor sobre seda, c.21,5 x 20,1 cm, no Museu de Arte da Universidade de Princeton), escreveu uma nota: Acordei cedo e como não tinha compromissos onde estar, fiz este álbum de pinturas, sinceramente, para o quinto irmão, Xianru. Nessas dez folhas ,intituladas Amizade na Pedra (Shijiao tu), representou sucessivamente dez rochas diversas como personalidades, em que se reconhecem as quatro qualidades das pedras analisadas por Mi Fu: Shou, a estatura elegante e erecta, Tou, os buracos que permitem a passagem do ar e da luz, Lou, os canais e rachas Zhou, a superfície e textura. Noutra pintura invulgar, Nuvem pedra (rolo vertical,tinta sobre seda, 130,8 x 45,4 cm, no Metmuseum) ele dirige-se à figura pintada como se fora um ser ciente: Não é estúpida nem engana, Será uma nuvem, será uma pedra? O último ano da vida de Ni é também o último da dinastia Ming e não é uma coincidência: leal aos nós da amizade, vendo que não podia seguir adiante, ele mesmo se retirou do caminho onde observava a lentidão das nuvens e a ainda maior das pedras. * Wanli (1127-1206)
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO monge peregrino de Chen Xian Liang Kai (c.1140-c.1210), autor de um célebre rolo vertical em que o poeta Li Bai é figurado a caminhar, noutro rolo horizontal representaria Oito monges eminentes (tinta e cor sobre seda, 26,6 x 64,1 cm, no Museu de Xangai), um dos quais é identificado como o monge de Shandong, Xiangyan Zhixian (c.820-89) que descreveu num poema a sua inesperada iluminação quando ao varrer o chão subitamente ouviu uma pedrinha a cair: Um acontecimento e esqueci tudo o que sabia, Não mais confiarei no aperfeiçoamento livresco, Toquei na lição do Buda E não cairei em explicações de segredos mansos. Em mais nenhum lugar se encontrará um traço, Fora do falar e comportamento comum. Aqueles que encontraram a Via, de todos os lados, Todos dizem ter a mais elevada explicação. O pintor Japonês Kano Motonobu (1476-1559) que foi um dos que naquele país demonstraria a sua afeição pelas narrativas e pinturas peregrinas que vinham com mercadores e monges Chineses, representou-o sozinho a varrer o chão entre brumas, como no desejo de divisar um ideal. Essa admiração alcançaria um ponto alto quando anos mais tarde, no turbulento fim da dinastia Ming chegaram a Nagasaki os monges do mosteiro Huangbo, em Fujian, aí designado Obaku. E lá inovariam aspectos do convívio social como na variação da celebração da tradicional cerimónia do chá, o chanoyu, a «água quente para o chá» que exaltava «um acontecimento, um encontro», para o mais informal senchado, «a via do chá de infusão» em que as pequenas folhas eram usadas inteiras e não maceradas, no decurso do qual era apreciado o espírito literário valorizado pela elite dos Ming através da observação de pinturas, caligrafias, poemas e objectos decorativos. Para além da afectação do exotismo havia um genuíno apreço pela cultura levada pelos monges, que deixaram de chegar a partir do ano 1723 e morrendo o último dos que foram para lá em 1784. Arai Hakuseku (1657-1725), o político e erudito confucionista no breve período em que os dirigentes Japoneses abraçaram a lição de Kong Fuzi, deixou claro esse respeito num conselho sobre o modo de expressão em prosa ou poesia: Deve-se tentar escrever de tal maneira que seja facilmente compreensível pelos Chineses. Nem seria preciso dizê-lo já que a escrita teve origem na China, na sua essência ela é chinesa. As pinturas levadas pelos monges de Huangbo incluíam algumas menos conhecidas no seu país, como as do pintor Chen Xian (act. 1634-54). Num rolo horizontal ele figurou Vinte e quatro luohans, Sakyamuni, Guanyin e Xuanzang (tinta e cor sobre seda, 49,5 x 731,3 cm, no Smithonian); todos estão de pé ou sentados menos Xuanzang, que caminha. E, coisa fascinante no monge em trânsito, quando saíu de sua casa, algo buscava mas já no gesto simples do seu caminho de curiosidade se perceberá uma revelação, para si e para os que o viram passar.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Retrato Impossível de Yinyuan Longqi Yiran Xingrong (1601-68), o monge de Hangzhou que foi para Nagasaki e que foi conhecido no Japão como Itsunen Shoyu, terá sido o responsável pelo convite feito ao mestre do mosteiro Huangbo em Fujian Yinyuan Longqi para vir para o Japão em 1654, no tempo da transição Ming-Qing. Num tríptico, Yiran representou os três mestres da Escola do Budismo chan: Linji, Deshan e Damo (Bodhidharma) os dois primeiros a três quartos, voltados para Damo, de frente e no meio (rolos verticais, tinta e cor sobre papel, 124,4 x 39,6 cm, no Museu de Arte da Universidade de Michigan) do modo como tradicionalmente eram representados os monges budistas desde a dinastia Song, cohecido como dingxiang, neologismo budista que foi a tradução fonética da palavra indiana usnisa, o alto na cabeça do Buda significando a sua iluminação, que se diz invisível ao olhar de seres vivos. Sobre o retrato de Deshan, à esquerda, outro monge mestre de caligrafia Muan Xingtao (1611-84) conhecido no Japão como Mokuan Shoto, escreveu: «Um único ponto no grande vazio, uma única gota num grande barranco, Ele queimou o sutra quando lhe surgiu a iluminação. Com o seu bastão, aponta tanto para os sábios como para a gente comum, Neste mundo de Carma, acção e consequência, ele é um verdadeiro buda.» Quando Yinyuan se tornou o venerado mestre do mosteiro Obaku no Japão, também retratos seus foram feitos do mesmo modo. Num deles, feito por um autor desconhecido (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 119,4 x 57,8 cm, no Metmuseum) ele apresenta-se de corpo inteiro; o cabelo e a barba brancos não ocultam um suave sorriso, a sobrepeliz vermelha sobre o ombro esquerdo segura por um anel colocado em cima do lugar exacto do coração e, calçado com sapatos da mesma cor, os pés repousam sobre um escabelo. Na sua mão esquerda um enxota-moscas, na direita um longo bastão irrompe no meio de um poema. Muan Xingtao é também o autor desse poema: «Segurando o bastão ele aponta directamente para a Humanidade, E no entanto, como ele era originalmente sem forma, este retrato não é verdadeiro, A sua forma não pode ser percebida como forma, A sua benevolência é apenas a sua natural benevolência. Se, de repente, conseguires entender esta lei, Então o teu espírito poderá vaguear para além do Mundo.» Muan Xingtao foi reconhecido, com Yinyuan e Jifei Ruyi (no Japão chamado Sokhui Noitsu, 1616-71) como um dos “Três pincéis do mosteiro Obaku”. O último, na pintura Luohan lendo ao luar (no Metmuseum) com um pincel largo desenhou a lenta figura de um monge de costas sentado no chão, segurando um rolo que aparenta ler. Porém, nada dele nem da lua se percebe. E escreveu, com o fulgor ligeiro de uma dança: «A lua e o papel são da mesma cor. A pupila do olho e a tinta são as duas negras. O sentido maravilhoso alojado no círculo, Está para além da compreensão.»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioWang Jianzhang e as «Coisas Dos Tang» Feiyin Tongrong (1593-1661), o segundo abade do mosteiro Huangbo em Fuqing (Fujian), preocupado em preservar a sua interpretação e o modo de transmissão da suave alegria do budismo chan, escreveu num poema: Tenho praticado o chan até ao ponto Em que em mim mesmo o compreendo; E agora entendido com clareza A quem o devo passar? Tudo o que vejo é este luar de Outono, Enchendo todo o céu, Uma roda única, refulgente, Iluminando o riacho aqui à frente. O seu discípulo Yinyuan Longqi, (1592-1673) por razões ainda hoje controversas mas que acabaram na fuga a um território em convulsão e ao encontro com monges que em Kyushu desejavam conhecer a exegese do mosteiro Huangbo, partiria em direcção a Nagasaki onde chegou em 1654, com trinta discípulos e uma bagagem cheia. Para além do budismo animado pelo dao, praticado por Feyin Tongrong, nela vinham objectos que depois encheriam o mosteiro Mampukuji em Uji, na prefeitura de Quioto, criando um simulacro do esplendor da dinastia Ming, ao tempo em que no continente se receava o crepúsculo do seu brilho, fulgor de séculos de cultura ininterrupta. Entre essas peças das artes decorativas e do pincel, que os locais designavam karamono, «coisas da China» uma palavra escrita com os caracteres chineses tangwu, nesse caracter tang aludindo a uma outra cintilante dinastia com que no estrangeiro depois se identificariam os seus descendentes; tangrenjie, «pessoas da rua dos Tang», também vinham naturalmente rolos de pinturas. Algumas delas, obras de autores que não constariam das relações dos catálogos que registavam nomes e obras de pintores locais mas revelavam de maneira admirável essa percepção do homem criador, companheiro da natureza. Foi o caso de obras de um pintor de Quanzhou, em Fujian, que terão sido levadas pelos monges budistas que vinham dessa Província para o Japão. Wang Jianzhang (activo c. 1621-50) refez a sua experiência do Mundo entre a memória e a inquietação, em pinturas que reivindicavam a grandeza das actividades vãs ligadas ao daoísmo, como em Regresso a casa vindo de apanhar cogumelos (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 85,4 x 51,2 cm, na Galeria de Arte de Nova Gales do Sul, em Sydney). Aí escreveu o poema: Árvores na falésia enjaulam nuvens meio húmidas, O portão de madeira junto de um rio foi aberto há pouco, Diante do amanhecer, sozinho, busco um poema, Enquanto recolho cogumelos, o sol põe-se e eu regresso. Na pintura, Cores solitárias nas árvores do Outono (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 117,8 x 51,2 cm, no Museu de Arte de Cleveland) aludiu a um célebre diálogo sobre a felicidade dos peixes e os limites do conhecimento humano: Gelo frio cai sobre as cercas, Cores solitárias espalham os áceres Recitando o capítulo das Águas de Outono1 Não consigo acalmar as emoções no meu velho coração. Zhuangzi,17
Paulo Maia e Carmo Via do MeioLin Tinggui e os Habitantes da Tinta Preta Li Houzhu (c.937-78) que reinaria como Li Yi, o terceiro imperador dos Tang do Sul, ter-se-á agradado tanto da qualidade de uma barra de tinta que chamou o seu criador Xi Chao e o seu filho Xi Tinggui e atribuiu-lhes o seu próprio nome com que ficariam conhecidos: Li Chao e Li Tinggui. Eles que tinham vindo de Henan, no Norte, para a localidade de Shezhou, cujo nome o imperador Song Huizong mudaria para Huizhou e, sendo honrados com o posto de Guardiões da tinta, o seu produto seria celebrizado como «tinta de Huizhou». O apreço dos letrados pela qualidade da tinta, essencial veículo de expressão acompanharia a sua sofisticação. Na dinastia Ming, o influente teórico e pintor Dong Qichang (1555-1636) escreveu sobre outro produtor de tinta de Shexian (Anhui): «Daqui a cem anos já não viverá Cheng Junfang (1541-c.1620) mas a sua tinta persistirá; daqui a mil anos já não existirá a sua tinta mas o seu nome permanecerá.» Outro célebre criador da tinta preta feita com madeira queimada dos pinheiros, a árvore leal que identifica os letrados ao longo da história da pintura, que viveu na dinastia Qing chamado Hu Tianzhu, mudaria o seu nome para Hu Tiankaiwen, ou apenas Hu Kaiwen, para que se pudesse ler nos caracteres do seu nome a expressão «o céu abre o mundo da cultura». O carácter ao mesmo tempo expressivo, nas suas ténues modulações, mas contido da tinta preta não excluiria o uso da cor. Como escreveu Shen Hao na dinastia Qing: «Wang Wei disse que a «tinta esvoaçante» (fengmo) é suprema e está certo. Não se deve iniciar a pintura misturando a fluente tinta preta com as cores. Deve ser alcançada a hamonia da tinta até finalizar o esboço, e então não há objecção a que se pinte com cores.» Um pintor que viveu na cidade portuária que o viajante que atravessou países, Fernão Mendes Pinto, chamou Liampó (Ningbo, Zhejiang) na altura um lugar priviligiado do encontro de culturas, aproveitaria as várias conotações expressivas das cores e da tinta preta para uma estranha representação onde o imanente e o transcendente conviveram. Lin Tinggui (activo c. 1174-89) que partilhava o nome, não a família, com o fabricante de tinta dos Tang do Sul fazia parte do grupo de pintores que em Ningbo pintava temas budistas, trabalhando notoriamente com Zhou Jichang na pintura de cem rolos mostrando Quinhentos luohans (wubai luohan) a pedido do abade do templo Huianyuan. Numa delas, que assinou de modo discreto e a tinta dourada, representou Cinco luohans lavando a roupa (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 111,8 x 53,1 cm, no Smithonian). Só esses primitivos apóstolos que mereceram livrar-se do ciclo da reincarnação, de feições bizarras, um seu grotesco criado e as suas roupas possuem cores; o espaço onde eles se movem, que inclui um majestoso pinheiro, águas correntes e rochas são pintados a tinta preta.