Paulo Maia e Carmo Via do MeioO aniversário das flores no álbum de Dong Gao Cui Xuanwei, um velho eremita daoísta que vivia a Leste de Luoyang na dinastia Tang, regressava de uma longa jornada em busca de ingredientes para fazer um elixir, quando notou com admiração que plantas silvestres cresciam no seu jardim abandonado. No fim desse belo e inesperado dia de Primavera, a meio de uma noite banhada pelo luar, sentiu uma leve brisa e, do lado de fora da casa, apareceu-lhe uma jovem que, com as suas irmãs, lhe pediu abrigo para passar essa noite. Entraram no pátio doze ninfas que lhe explicaram que precisavam de se refugiar ali porque nesta altura do ano estavam sujeitas a grandes ventanias. Ele aceitou acolhê-las e, quando elas partiram no dia seguinte, dando-lhe como recompensa umas singulares pétalas que ele usou num remédio que lhe garantiu uma longa vida, disseram-lhe para colocar do lado oriental da casa uma bandeira vermelha. No ano seguinte quando, numa manhã de Fevereiro veio uma tempestade, as flores do jardim permaneceram intactas e assim sucedeu todos os anos a seguir. A história que associa os ventos chuvosos do fim do Inverno ao despontar das flores é relatada na Extensa relação da era Taiping xinguo (Taiping guangji) do século X, mas só publicada na dinastia Ming, retomada entre outros por Feng Menglong. E é referida como estando na origem da «Festa da manhã das flores» (Huazhaojie) que se celebra em Pequim no décimo quinto dia do segundo mês lunar e explica a razão do uso nesse dia das bandeirolas vermelhas. À comemoração das flores também se quiseram associar os literatos. O filho de um eminente pintor e funcionário imperial, Dong Bangda (1699-1769) encontraria uma forma original e engenhosa para celebrar as boninas. Dong Gao (1740-1818), igualmente funcionário imperial influente que também foi poeta e pintor, faria um álbum de doze folhas com vinte e quatro pinturas, todas acompanhadas de poemas e que está no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, designado Ventos floridos da promessa. Partindo da ideia de que a chegada dos ventos da Primavera mostravam o cumprimento anual de um compromisso dos Céus de conceder a beleza e as cores ao Mundo para serem apreciadas por quem as soubesse admirar, ele ilustra os vinte e quatro ventos da promessa com flores que desabrocham nesse período de quatro meses. E que correspondem a oito termos solares (jieqi) do antigo Calendário lunisolar conhecido já na dinastia Zhou (1050-771 a.C.), chamado Tang li ou Nongli. Começando a seguir ao solstício de Inverno, no vigésimo terceiro termo chamado «pequeno frio» (xiaohan) quando «a energia do yang começa a aumentar» no início de um novo ciclo, Dong mostra a abundante variedade da natureza desde as flores da ameixieira (meihua) até às perfumadas e quase púrpuras flores da amargoseira do Himalaia (melia azedarach, fulin) no sexto período, da «chuva do milho» (guyu).
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA vontade de Zhu Zhifan em contemplar Nanquim Su Dongpo (1037-1101), o poeta cuja vida atribulada o conduziu aos mais inesperados recantos do Império, seria sempre recordado como um viandante. Certo dia em Danzhou (Hainan) a terra onde passou exilado, os últimos três anos da sua vida, saíu de casa para ir visitar o seu amigo Li Ziyun e foi surpreendido pela chuva. A dificuldade não o demoveu, e pedindo emprestados a um camponês, um chapéu de palha e umas socas de madeira, continuou o seu caminho. Pessoas que viam passar o literato com as suas longas vestes de funcionário imperial misturadas com a lhaneza dos acessórios rurais, riam-se e diz-se até que cães, denotando a estranheza, ladravam à sua passagem. Mas a figura do poeta e a sua longanimidade, encapsulados na expressão Dongpo liji (Dongpo com chapéu de palha e socas) perdurariam e mais tarde, quando se começou a celebrar de forma metódica a sua vida e o seu aniversário, essa memória foi avidamente recuperada em pinturas e esculturas que até hoje celebram o herói cultural. E é assim que ele surge, caminhando e inclinando-se ligeiramente para levantar a fímbria dos seus vestidos para que não se arrastem na lama, numa pintura (rolo vertical, tinta sobre papel, 92 x 29 cm, no Museu Provincial de Guangdong), atribuída ao pintor literato de Nanquim, Zhu Zhifan (1558-1624). De maneira característica, diz-se que essa seria já uma cópia de uma outra, executada pelo pintor Li Gonglin (1049-1101), que efectivamente conheceu o poeta, conferindo-lhe veracidade. Noutras pinturas Zhu Zhifan ilustrou lugares distantes como no álbum Expedição ao Norte (dezoito folhas, tinta e cor sobre seda, 21,7 x 27,4 cm, no Museu Britânico) onde evoca a trágica narrativa sobre Cai Wenji, a poeta que foi levada para a terra dos Xiongnu, além das fronteiras do Império. Porém, seriam sobretudo as viagens dentro e à volta da sua cidade natal de Nanquim que o cativariam. Zhu Zhifan escreveu logo no início do século dezassete uma relação sobre a cidade de Nanquim referida pelo antigo nome Jinling que, dado o seu sucesso seria editada, revista e aumentada com poemas em 1624 e desenhos de Lu Shoubo sob o nome de Jinling Tuyong, «Odes ilustradas de Jinling». Dela constam não apenas descrições de quarenta lugares panorâmicos para observar a orbe mas também a imaginação, as histórias e lendas que os lugares despertaram. A vontade de fazer a obra nasceu, como ele refere na introdução, do seu próprio desejo de ver e documentar esses lugares, afinal parte de uma celebrada prática cultural entre os literatos designada woyou, «viajar deitado». A mesma vontade que levou Su Dongpo a não desistir da intenção de dialogar com o seu amigo, indiferente à chuva, como quem sabe que há algo que não se pode perder. Uma intuição que se percebe na tradução da palavra «curiosidade», haoqi, que denota a busca de algo bom e raro.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Retrato Fictício da Senhora Hedong Feng Menglong (1574-1646), o escritor e poeta da actual Suzhou (Jiangsu), em muitas das suas obras daria forma a um culto das emoções que se generalizava nesse final da dinastia Ming, desenvolvido em torno da palavra qing, que se refere a uma desinteressada e ardente simpatia pelos outros que, ao focar-se na importância das relações humanas, acabaria na acentuação do progressivo reconhecimento de mulheres inspiradas e inspiradoras. Na sua ambiciosa «História das emoções» (Qingshi), parte do sofisticado impulso enciclopédico que visa não apenas conhecer o Mundo mas também o discurso sobre o Mundo, Feng Menglong recolhe mais de oitocentas histórias que provam que «as coisas nesta vida são como moedas soltas; as emoções (qing) são a corda do cordel que as junta todas.» Entre esses relatos está o da jovem bela e talentosa Feng Xiaoqing, que não sobrevive à leitura do romance do Pavilhão das orquídeas (Mudanting, peça escrita em 1598 por Tang Xianzu) e cuja crónica confirma a fatídica relação entre o engenho e a tragédia quando entretecidos pelas emoções. Outro influente literato do tempo, Qian Qianyi (1582-1664) achava a história demasiado perfeita para ser verdade, desconfiando da imaginação do coleccionador de emoções, sem saber que a sua própria biografia se desenrolaria como um desafio à credulidade dos leitores. A sua relação com a cantora, dançarina e poeta Liu Yin (1618-1664) que escolheu o nome Liu Rushi, «ser como um salgueiro», a árvore que simboliza a emoção da dor da separação, foi-se contando ao ritmo de palavras ordenadas como coincidências ou rimas. A saudade que ela não quis sentir, fê-la despedir-se da vida quando ele perde a sua. Quem soube desses acontecimentos, guardou a memória dessa poetisa cortesã com admiração. E os retratos pintados com a sua figura seriam acolhidos com curiosidade. Wu Zhuo, um pintor activo no século dezassete, mais conhecido por pintar paisagens, figura como autor de um elegante e problemático retrato de Liu Rushi, aí designada por outro dos seus nomes artísticos. Nesse rolo vertical (tinta e cor sobre seda, 119,5 x 62,3 cm, no Museu de Arte de Harvard) pode ler-se numa inscrição: «Pintado para a senhora Hedong por Wu Zhuo de Huating, no Outono de 1643 na quinta de montanha da Água que limpa (Fushui shanfang)». Referências tão específicas, como o nome artístico de Liu Rushi, Hedong Jun ou o nome da quinta de Qian Qianyi, emprestam um tom de veracidade desmentida pela própria pintura. Como a pose descontraída, carismática com uma perna levantada e indecorosa para a esposa de um circunspecto literato. Porém, o seu olhar directo para o observador transmite uma intranquila sensação de proximidade. E é esse olhar que serve de ponte entre «os que expressam as emoções e aqueles que as não revelam e vivem em mundos diferentes», como Feng Menglong escreveu.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA cadeira longa de Feng Xioaoqing Su Xiaoxiao (c.479- c.501), a poeta, cantora e bailarina nascida em Qiantang (actual Hangzhou, Zhejiang) junto do rio com o mesmo nome que daria origem, no século oitavo, ao Lago do Oeste, sentia-se acolhida por um lugar único, que a recebia como se fora feito para ela viver nele. Aqueles que guardaram a sua história para a posteridade concordaram que não podia existir melhor cenário para espelhar a sua inteligência, a sua inspiradora vitalidade poética e a sua beleza. Os seus últimos desejos evocados numa cadenciada sequência de palavras: «Nascida em Xiling, morro em Xiling, serei sepultada em Xiling, merecedora desta paisagem.» O imperador Qianlong, nas suas Viagens ao Sul em 1780 e 1784, faria das visitas ao túmulo de Su Xiaoxiao, um ritual imprescindível de respeito pela tradição cultural do império. Era, no entanto, apenas um dos muitos factos e lendas que até hoje servem para contar o inexplicável encanto do Lago do Oeste. O poeta Su Shi (1037-1101), que tal como o poeta Bai Juyi, na sua qualidade de funcionários imperiais lá tiveram responsabilidades administrativas e criaram baías com os seus nomes, comparou-o à beleza fatal da cortesã Xishi, a «Senhora do Oeste», por quem «os peixes se afundaram, os cisnes tombaram, a lua se escondeu e as flores se envergonhavam», e cuja beleza fatal, distraindo o senhor da guerra, causou a derrota do Estado de Wu em 473 a. C.. Uma outra jovem e inspiradora poeta, Feng Xiaoqing (1595-1612), cuja vida breve dir-se-ia envolta nas brumas que recebem o Lago nas manhãs de Primavera, lá viveu e morreu exilada. Da sua biografia consta um funesto presságio feito por uma freira a sua mãe para que conservasse a criança iletrada; o casamento precoce como concubina de um homem rico de nome Feng cuja primeira mulher, por ciúmes, sempre se esforçou por prejudicá-la. Estando o marido ausente, obrigou-a a viver isolada numa ilhota do Lago do Oeste, em cujas águas ela mergulharia para sempre. Procurou até destruir a sua obra literária, queimando-a. Alguns, intrigantes poemas, porém sobreviveriam. Cui Hui, pintor activo em Pequim cerca de 1680-1720, retratou Feng Xiaoqing deitada, macilenta, com largas vestes brancas acentuando a sua magreza derramando-se sobre uma cadeira longa, por vezes chamada chundeng, «cadeira de Primavera» por ser adequada a afectuosas conversações. Que lhe seriam negadas. Está diante de um painel com uma paisagem numa varanda onde atrás se notam folhas de bananeira que abanando tornam sensível o som do vento. Que também nada lhe diria. Num poema, ela cisma numa possibilidade: Se, acabada de maquilhar, fosse comparada a uma figura pintada, quem sabe o grau que alcançaria no Palácio Zhaoyang. Admiro o meu reflexo pálido nas águas do rio de Primavera. Oh… mas ele terá de se compadecer de mim, como eu dele me compadeço.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA corrente entre a Beleza, a Estranheza e o Saber de Yu Ji Hongli (1711-99), que reinaria como o imperador Qianlong (1735-96), quis como o seu avô Kangxi (1654-1722) que o seu poder reflectisse, como num espelho, todo o brilho da sabedoria acumulada ao longo de séculos. Assim, como o seu avô iniciara a grande recolha e esclarecimento de todos os caracteres da língua escrita, no dicionário designado Kangxi zidian de 1716 e na Colecção completa dos clássicos, ilustrações e livros desde os tempos remotos até à actualidade (Gujin tushu jicheng), também ele iniciaria em 1772 um formidável esforço de pesquisa e colecção do saber que nos seus três mil trezentos e oitenta e um volumes excederia a fabulosa enciclopédia de 1403-8 Yongle dadian, com os seus onze mil e noventa e cinco volumes, do imperador dos Ming, Yongle (r.1402-24). Para concretizar esse ambicioso projecto que duraria dez anos, intitulado Siku Quanshu, «Biblioteca completa dos quatro tesouros», que são os quatro capítulos, Clássicos (jing), História (shi), Cartas (ji) e Mestres (zi); Qianlong contou com o cotributo dos sofisticados funcionários eruditos (shi dafu) da Academia Hanlin. Um deles pode ser visto, sentado à vontade sobre uma pedra, as pernas cruzadas, um livro nas mãos, no seu jardim com dois criados, numa pintura do Museu Britânico, que o identifica no título O Senhor Shen Shuyan a ler (rolo horizontal, tinta e cor sobre papel). O influente Ruan Yuan (1764-1849) sintetizaria o ideal que a figura pintada evoca, ao escrever no seu epitáfio: «Shen Shuyan cumpria os deveres filiais com os mais velhos, apreciava a beleza da natureza e era um ávido leitor. Empregou boa parte do seu tempo a escrever e dedicou toda a sua vida aos livros.» O autor da pintura, o literato de Hangzhou, Yu Ji (1739-1823), membro da Academia Hanlin, participou desse grandioso desígnio do imperador Qianlong como editor da Siku Quanshu. Também como editor, foi coordenador da primeira edição impressa do curioso livro, Liaozhai zhiyi, «Estranhos contos do Estúdio de conversação» que transpõe com facilidade as fronteiras entre o mundo natural e o sobrenatural. Yu Ji, na sua dedicação à pintura, mostrou no entanto o seu muito natural olhar fascinado pela beleza feminina, dentro daquele que era então um florescente e inovador género da pintura chamado meiren hua. Que visualmente adoptou, nalguns casos, a perspectiva europeia com um único ponto de vista e moralmente afirmou o talento, os méritos, os sacrifícios e a virtude moral de mulheres que viviam dedicadas a agradar a homens cultos, algo que elas também eram. Como se comprovará no rolo vertical Senhora num banco (tinta e cor sobre papel, 100,3 x 45,7 cm, no Museu Walters, Baltimore, MD). Com um pincel na mão, ela pondera a resposta a dar ao poema que, numa folha de árvore, lhe foi escrito e enviado no brando curso de água de um ribeiro.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Vento e o Guarda-vento de Wang Yun Tianguan, o «alto funcionário da corte celeste», que na fluidez da iconopraxis das figuras do Daoísmo foi saindo dos muros dos templos e apropriado para a devoção particular, concretizada em rolos de pinturas que permitiam alguma liberdade aos seus criadores na concepção das suas formas humanas, surge numa pintura feita no período de Kangxi (1661-1722) como que empurrado pelo vento, dele se desprendendo um morcego que, por homofonia da palavra fu, se tornara um popular símbolo de felicidade. E essa era mesmo a função de Tianguan: conceder a felicidade aos seres humanos. Na história da pintura a representação de morcegos vinha já do tempo do preclaro pintor dos Tang Wu Daozi (680-740), que os incluiu numa figuração da divindade daoísta Zhong Kui, o caçador de demónios, feita a pedido do imperador Xuanzong devido à sua capacidade de ver fantasmas de noite. O autor desse retrato de Tianguan feito em 1716 (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 162,8 x 106, cm, no Museu de Arte de Indianapolis), o pintor de Yangzhou Wang Yun (1652-1734) faria outras figurações desse mundo descrito em relatos daoístas, como A ilha dos imortais, Fanghu, «O vaso quadrado» (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 141,9 x 60,3 cm, no Museu de Arte Nelson-Atkins) uma visão da fabulosa ilha com a forma de uma mandorla, no centro da qual se percebem palácios protegidos por grandes rochas e montanhas no meio de brumas e ondas alterosas embaladas pela ventania. Sobre uma rocha resistem, repousando, alguns grous, sinais da longevidade, quiçá da imortalidade. Aos oitenta e um anos, o mesmo pintor representou um invulgar encontro (rolo vertical, tinta e cor sobre seda no Museu Britânico) entre um homem de barbas brancas, o seu criado e um recluso daoísta, reconhecível pelo saiote de folhas e uma cabaça, trazendo na mão um pêssego de tamanho desproporcionadamente grande, símbolo da longa vida. Estranhamente, apenas as roupas do recluso daoísta ondulam ao vento. Wang Yun colaboraria com Yuan Jiang (1671-1746), outro pintor de Yangzhou, em duas pinturas feitas para dois biombos onde em oito painéis dobráveis (weibing) estão representadas paisagens onde se aninham palácios (246 x 490 cm cada um, no Museu Nacional de Quioto). Este objecto de mobiliário decorativo chamado pingfeng, traduz-se como guarda-vento. É possível que esse vento que se não vê mas se guarda, enfuna as vestes dos daoístas, anima as ondas alterosas que protegem um paraíso, e se solta do imortal Tianguan conferindo felicidades, seja uma alusão à alegria. O poeta Li He (c. 790-c.816) escrevendo sobre o que está para cá e para lá de um guarda-vento autorizará essa intuição. Num poema que termina assim: Ao luar a brisa sopra o orvalho, Que frio do lado de fora do biombo! Enquanto corvos crocitam nas muralhas da cidade, Vai adormecendo a rapariga de Chu.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioPoetas no Jardim da Família Shen Lu You (1125-1210) segundo alguns relatos teria nascido numa manhã chuvosa a bordo de uma embarcação que navegava descendo o rio Wei, o maior afluente do Rio Amarelo (Huanghe) e em cujo vale se foi desenrolando a aurora da civlização do Celeste Império, de que ele se revelaria um apaixonado defensor. Sendo verdade, poderia ser uma premonição da vida do poeta cujo percurso foi sendo marcado por fortes correntes de origens diversas que sempre o impeliram, e que foram incansavelmente registados nos seus escritos e incontáveis poemas. De maneira exemplar o seu olhar atento às pessoas, às paisagens, costumes e monumentos ficou guardado na Memória da viagem para Shu (Ru Shu Ji) que foi escrevendo quando, sendo nomeado vice-prefeito de Kuizhou (act. Fengjie, Sichuan), saiu de Shanyin (act. Shaoxing, Zhejiang), a sua terra natal, e foi subindo o outro grande rio Yangzi, entre três de Julho e seis de Dezembro de 1170. Lu You era já há muito um respeitado poeta quando o seu descendente Lu Wenjie, no final do século dezanove mandou gravar numa pedra a figura do poeta (rolo vertical, esfregaço a tinta, 109 x 72,7 cm, no Museu de Arte da Universidade de Princeton). Aí ele está encostado numa pedra ao lado de uma caixa de livros, dir-se-ia numa breve pausa, prestes a partir. A pedra ficou significativamente no Museu de Tecto de Palha (Du Fu Caotang) em Chengdu (Sichuan) entre doze ilustres poetas, no lugar onde se celebra a memória do grande poeta dos Tang, Du Fu (712-770). Mas a recordação afectiva do poeta, que nos últimos anos de vida, retirado em Shaoxing, adoptou o nome artístico (hao) Fang Weng, «o velho que faz o que lhe apetece», ficaria para sempre ligada às palavras de um poema que escreveu ainda jovem e contrariado, numa parede de um jardim privado dessa mesma cidade. Lu You casara cedo com a primaTang Wan (1128-1156), também poeta com o nome artístico Huixian «a bondade imortal», com quem não teve filhos e por isso e para fazer a vontade da mãe, mostrando o cumprimento da virtude confuciana, apesar das notórias afinidades electivas, logo se separaria. Os dois seguiriam caminhos diversos, casados e ambos com filhos, mas anos depois em 1155 aproveitando a obrigação legal de se abrirem os jardins privados todos os anos entre o primeiro dia do terceiro mês e o oitavo do quarto, os dois reencontram-se no jardim da família Shen. Emocionado, Lu compôs um poema no guia de rimas (cipai) «O gancho de cabelo da fénix», que termina com as palavras: «Ainda temos a nossa promessa sagrada, Mas até uma carta é difícil de enviar, Não temos nada, nada, nada.» No ano seguinte lendo o poema, e na mesma harmonia ela respondeu com um poema cujo final se lê: «Receio que as pessoas se questionem porque estou triste, Finjo estar feliz, sorrindo em vez de chorar, Toda a minha vida agora é esconder, esconder, esconder.»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO rolo consolador que Wang Ximeng fez para Huizong Su Shi (1037-1101), no seu desassossego natural de poeta que, transbordando, deu forma a toda a sua actividade como funcionário imperial e político, envolveu-se de modo empenhado nas grandes polémicas do seu tempo. Referindo-se criticamente às Novas políticas (Xinfa) do seu adversário Wang Anshi (1021-86) cuja repetida oposição lhe haveria de custar o exílio, escreveu o poema: Como poderia não haver falta de comida ou secas? Os altos funcionários e as suas políticas carecem de mérito. Quando se perde a noção adequada de governar, desastres ocorrerão. Nenhum deles sabe como se auto-analisar. Quando chove, rezam por céus limpos, Quando há uma seca, desejam a neve. Essa relação entre a acção humana e o clima desfavorável, entendido como um «castigo dos céus», estava no centro de uma estupefacção sentida por todos os que habitavam aquela região naquele tempo, um fenómeno que hoje se conhece como Anomalia Medieval do Clima, que provocou súbitas alterações climáticas com consequências funestas na agricultura. O que era tanto mais grave quanto se entendia ser o imperador, através dos adequados rituais, o regulador do bom funcionamento da cadência das estações. Com a disrupção, mais se difunde um inquietante e supersticioso sentimento de instabilidade. Tendo ocorrido de modo especialmente gravoso durante a dinastia Song (960-1279) com o aquecimento entre 1100-1200, que atravessou o reino do imperador Huizong (1100-26) o monarca esteta, pintor e poeta, adequou a sua resposta à adversidade à expressão artística, encorajando quem lhe mostrava indícios de possibilidade, sinais auspiciosos. Um deles foi o alto funcionário Cai Jing (1047-1126) que o tranquilizaria sobre outro fenómeno tido como não auspicioso; o alinhamento de cinco planetas que foi interpretado como um potencial de desastres. Cai Jing, súbdito erudito recorreu à memória: Os cinco planetas movendo-se em uníssono no céu, é uma visão auspiciosa significando um futuro de grande paz. O vosso servo recorda que, de acordo com a História dos Han, quando o império alcança grande calma e tranquilidade, os cinco planetas estavam alinhados e obedeciam à regra (…) O nome de Cai Jing aparece numa pintura invulgar, encomendada por Huizong, feita por um jovem chamado Wang Ximeng (1096-1119) de quem não se conhecem outras obras. No extenso rolo horizontal de 1113, Mil li de rios e montanhas (tinta, cores sobre seda, 51,5 x 1193 cm, no Museu do Palácio, em Pequim) Wang usou o azul e o verde (qinglu), cores ligadas à busca da imortalidade, para pintar o panorama do monte Lu e do lago Poyang, em Jiujiang. Huizong podia olhar as seis vistas sucessivas de montanhas, ligadas por pontes ou cursos de água, e tranquilizar-se naquele ritmo reconfortante que Cai Jing diz ser o seu aspecto em Abril, indicando prosperidade no ano seguinte.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA conversação ambígua encenada por Gu Kaizhi Zhang Hua (232-300), que foi político e poeta durante a dinastia Jin Ocidental, foi também autor de uma obra singular, o Bowuzhi, «Registo dos mais diversos assuntos», que recolhe uma plêiade de desconformes conhecimentos; desde as observáveis maravilhas da natureza até à enumeração de anomalias ou histórias sobrenaturais, do género literário zhiguai. Entre esses relatos está, por exemplo, a descrição de uma comunidade de «mulheres selvagens», as Yenu, que viveriam isoladas no Sul e sem o acompanhamento de homens. E se não foram estas, outras mais refinadas mulheres ocuparam o seu espírito de forma constante ao longo da sua vida. De modo significativo o seu destino político ficaria ligado a uma ambiciosa mulher, a rainha Jia Nanfeng (257-300) que reinaria «por trás dos biombos» no lugar do seu marido o imperador Huidi (290-307) que teria dificuldades intelectuais. Seria através dela que ele viria a ser nomeado para o influente cargo de ministro no Departamento de obras públicas (Gongbu). Da relação entre os dois terá nascido uma série de poemas sob o título Advertências da instrutora do palácio para as senhoras da corte, escrito como vários dos seus poemas a partir de uma voz feminina, e que teria a intenção de refrear o carácter excessivo da rainha. Esses poemas de intenção didáctica estão na origem de um dos mais célebres rolos horizontais na aurora da pintura de ilustração narrativa, tradicionalmente atribuído a Gu Kaizhi (345-406). Dessa pintura, Nushi zhen tu, existem hoje duas cópias; uma no Museu do Palácio em Pequim e outra no Museu Britânico (tinta e cor sobre seda, 25,5 x 377,9 cm) com algumas diferenças no número de cenas e na execução. Nelas se notará como os caracteres inscritos ao lado das pinturas silentes, contêm avisos eloquentes. O que é especialmente evidente numa das cenas que só consta do rolo do Museu Britânico. Gu Kaizhi mostra aí uma situação íntima quando um imperador se senta para conversar com uma concubina na sua alcova. A forma negligente como os dois se apresentam reforça uma impressão de hesitação e ambiguidade: ela com um braço apoiado no espaldar da cama, ele com um pé descalço, o outro ainda meio calçado, nada é evidente. Ao contrário das palavras precisas que, como em todas as outras cenas do rolo, seriam depois nele inscritas com o texto poético de Zhang Hua, que dizem: Se aquilo que disseres for por bem, as pessoas poderão entendê-lo à mais longa distância. Se este princípio for atacado, então até mesmo o teu companheiro de cama olhará para ti com desconfiança. As duas formas paralelas de expressão, trocando as suas vocações, ajudam naquilo que Zhang Yanyuan (c.815-c.877) descreveu: Ao concentrar o espírito e a meditação profunda entende-se o que existe por si só; esquecem-se ambos, a coisa pintada e o ego, a realização separa-se da forma.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA Elegância Clássica da Família de Wang Chen Sikong Tu (837-908) o poeta da dinastia Tang falou da natureza fugídia, intangivel, daquilo que «é natural» (ziran) com palavras que seriam acolhidas pelos estudiosos da pintura como uma maneira de descrever a mais alta categoria do seu labor, aquela mais dificilmente atingível e que se afasta sempre, como a linha do horizonte: «Curve-se e aí está;/ Não se procure à direita e à esquerda,/ Todos os caminhos para ela se afastam./ Mas com um toque, aí está a Primavera!/ Como quem depara com flores a desabrochar,/ Como quem contempla a chegada do novo ano,/ De facto não a agarrarei/ Forçada, desaparecerá». Mas interrogar-se diante do espectáculo sublime das mutações da natureza, contemplando lugares particulares em que mais facilmente se sente um arrebatamento dos sentidos, era o mais grato dever dos poetas. Como fez Li Bai admirando a Cascata do monte Lu; «Será o Rio de prata (a Via Láctea) deslizando das nove direcções do céu?» Pintores literatos seguiriam esse olhar do vate, tornando a Montanha Lu, perto da cidade de Jiujiang na Província de Jiangxi, que era já um jardim literário desde o século V, num persistente motivo das suas pinturas em busca desse toque que tornava manifesto esse quase imperceptível fluxo do que «é natural», o ziran. Alguns, nessa demanda projectada sobre o Monte Lu, foram célebres no seu tempo como Shen Zhou (1427-1509) autor do rolo vertical feito a tinta e cor sobre papel (193,8 x 98,1 cm) no Museu do Palácio Nacional, em Taipé. Outros, terão recebido esse olhar como uma herança de seus maiores, como Wang Chen (1720-97) que representou o Monte Lu (rolo vertical, tinta sobre papel, 132 x 63,5 cm, vendido na Sotheby’s) da forma que o poeta Sikong Tu descreveu como a «elegância clássica» (dianya), «calma como pétalas caindo e modesta como despretensiosas flores do campo». Wang Chen vinha de uma distinta família de que fizeram parte Wang Shimin (1592-1680) e o neto dele Wang Yuanqi (1642-1715), que era seu avô. Além desse legado, ele mostrou uma disponibilidade para ser interpelado por outros como se observa no rolo horizontal Estúdio para escutar a chuva (tinta e cor sobre papel, 122 x 40,5 cm, no The Walters Museum), nome do jardim do coleccionador Zha Ying, que conta com contributos de eminentes personalidades do tempo, como Pi Yuan e Sun Xiangyan. Numa das folhas do álbum Paisagens do natural, poesia e arte (tinta sobre papel, 41,7 x 33,5, cm, na Colecção do Instituto de Arte de Minneapolis) lembrou o poeta da cascata do monte Lu: «Uma manhã entrei no mar procurando Li Bai. Buscando em vão entre pinturas de meros mortais pelo Imortal da tinta.» E noutra página recordou outra relação entre avô e neto: «Usei o método do pincel de Shuming (Wang Meng) para pintar no estilo do velho Songxue (Zhao Mengfu). Há uma semelhança porque eles são da mesma família.”
Paulo Maia e Carmo Via do MeioLiu Shiru: de Noite o Frio, as Flores e o Ramo Ressequido Yan Xiyuan (act.1787-1804) no seu livro de Biografias ilustradas de cem mulheres belas, com novos poemas (Baimei xinyong tuzhuan) recorda a famosa história da Princesa Shouyang que ficaria para sempre associada à surpresa anual do nascimento de flores em pleno Inverno. Pétalas dessas flores de pefume subtil, brancas, cor-de-rosa ou vermelhas, traduzidas habitualmente como flores de ameixieira, na verdade da árvore caducifólia prunus mume (meishu) originária do Leste da Ásia, cujas características são comuns a ameixieiras e a damasqueiros, caíram um dia sobre a face adormecida da Princesa Shouyang. Esse sétimo dia do primeiro mês lunar quando a princesa passeava no palácio Hanzhang e se sentou para descansar, fechando os olhos, sendo despertada pelas suaves pétalas que lhe caíam no rosto, ficaria na memória e foi assim que o poeta a lembrou no seu livro, acompanhado de uma xilogravura feita a partir de um desenho do célebre pintor Wang Hui (1736-95). Aí, ela está sentada nos degraus do palácio, um braço apoiado no corrimão, dormitando, à espera que se cumpra o destino que se aproxima nas flores que já se vêem tombando. Mas, se a história da princesa cativava a imaginação popular, pintores eruditos de há muito descobriam uma outra, sucinta forma de figurar aquela surpresa das flores que desafiam o frio. Um dos mais memoráveis foi o pintor da dinastia Yuan, Wang Mian (1287-1359), admirado e copiado tanto nas formas das suas pinturas como no processo até lá chegar. Nelas se observavam os elementos essenciais do assombro revelado no tempo invernoso: a noite que em breve será dia, as flores, meihua, que na homofonia mei referem a beleza feminina e alguém, um literato que as saiba contemplar e relatar com deleite, figurado nos humildes ramos ressequidos que sustentam as flores. Um dos que o imitaram nesse duplo procedimento foi um pintor de Shanyin (actual Shaoxing, Zhejiang). Liu Shiru (c.1517 – depois de 1601) no decurso da sua longa vida dedicou-se com perseverança tanto ao estudo das pinturas de Wang Mian como à observação das reais flores prematuras. No seu rolo vertical Ramo de flor de ameixieira (tinta sobre seda, 180,3 x 98,4 cm, no Museu de Arte de Harvard) referiu um dragão, símbolo da natureza e dela, a possibilidade da nova vida «Um dragão verde ergue-se alto no ar, dir-se-ia que alcança a Via Láctea,/ Borboletas de jade voam em formas irregulares e, imaculadas, são intangíveis pela lama./ De súbito, o deus do vento Fengbo lança um assobio lancinante,/ E o esplendor da Primavera estende-se por todos os lados, de Leste a Oeste.» Liu também publicou o manual ilustrado sobre a pintura de prunus mume, Xuehu Meipu, «Manual de pintura de ameixieiras do lago de neve», repleto de elogios, provas do apreço daqueles que, como ele, de noite continuavam de olhos abertos.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA Viagem de Huang Xiangjian em Busca Dos Seus Pais Sakyamuni, o Buda histórico, é muitas vezes representado na companhia de dois dos seus discípulos: Ananda à sua esquerda e Mahakasyapa, à sua direita. Deste último, o reservado amante da solidão Mahakasyapa, diz-se que se recolheu numa gruta entre três picos da montanha Kukkutapada, em Magadha na Índia, onde está meditando à espera de Maitreya, o Buda do futuro, para lhe entregar as vestes e a tijela de esmolas que recebeu de Sakyamuni. De modo sobrenatural monges budistas que viviam na montanha das Nove Curvas, Jiuqu shan, na Prefeitura de Dali, no sudoeste de Yunnan, relocalizaram ou sobreimpuseram nesse lugar, desde então sagrado, a montanha indiana e passaram a designá-la, traduzindo o nome original como montanha Jizu, a «montanha do pé de galinha», porque é formada por três elevações à frente e uma atrás, exactamente como os dedos das patas das galinhas. Na altura da transição Ming-Qing, a montanha Jizu tornara-se uma das Cinco montanhas sagradas do Budismo, depois de Wutai, Emei, Putuo e Jiuhua e povoada, nas palavras do viajante Chen Ding, por «setenta e dois grandes templos, trezentos e sessenta mosteiros e um número incalculável de pequenos santuários.» O pintor de Wuxian (actual Suzhou, Jiangsu) Huang Xiangjian (1609-1673) fez uma pintura (Jornada para a reunião familiar, rolo horizontal, tinta e cor sobre papel, 31,4 x 550 cm, no Museu de Arte da Universidade de Hong Kong) figurando uma peregrinação a esse lugar invulgar como parte de uma não menos excepcional viagem em que mostrou a sua elevada consideração e cumprimento da virtude da ética confuciana sobre o Amor pelos pais (xiao). Tendo o seu pai, Huang Kongzhao, sido nomeado em 1643, magistrado na distante Província de Yunnan no fim da dinastia Ming, dá-se o conflito dinástico. Ao fim de sete anos sem saber notícias dos pais, resolveu iniciar uma caminhada de quinhentos e cinquenta e oito dias, percorrendo cerca de seis mil quilómetros para os ir buscar. Huang Xiangjian descreveria as dificuldades que passou: (…) «Vendo que as rachas nas rochas tornavam impossível caminhar, rastejei com as mãos e os joelhos durante mais dois ou três li para atingir o templo Tuzhu, lá no cume.» Mas no fim da pintura, em que mostra trinta e um lugares históricos, religiosos ou marcos geográficos faz uma grata exclamação: «Mas o meu pincel não consegue descrever as maravilhas para lá de maravilhosas e os perigos para além de perigosos que atravessei em dez mil li. Chegando ali perguntava-me se não estava já deveras numa outra esfera.» Quando voltou dessa viagem em busca dos pais, refez a memória da jornada em pinturas que evidenciaram o seu carácter leal. Porque ao percorrer territórios e pressentindo que na paisagem, como na montanha Jizu, algo dentro parecia palpitar, cumpriu a vontade do pai que se tornara um devoto budista.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA Via da Descoberta de Fang Yizhi Nicolas Trigault (Jin Nige,1577-1628), o missionário jesuíta que publicou em Hangzhou no ano de 1626 um primeiro glossário de romanização de palavras chinesas, o Xiru ermu zi, «Auxílio para os olhos e ouvidos dos literatos ocidentais», fê-lo como o nome indica para ajudar os Europeus que contactavam com uma língua muito diferente da sua. E, no entanto, alguns anos depois, entre os literatos locais houve quem estivesse atento a esse sinal pioneiro de compreensão, como de resto estava a muitas outras formas e meios de expressão. Fang Yizhi (1611-1671) elogiou esse modo económico e elegante de fazer «cada conceito ligar-se a uma única palavra e cada palavra a um único sentido, como no distante Ocidente, onde os sons se combinam com os conceitos e palavras se formam de acordo com os sons». Era a livre opinião de um letrado que fez parte daqueles súbditos dos Ming que se sentiam incómodos durante a mudança dinástica (yimin) o que influiria de modo drástico na sua vida. Nascido em Tongcheng (Anhui) numa família onde se cultivavam as letras e desde cedo ligado a um grupo literário designado Fushe, «Sociedade da restauração», razão porque teve de partir para o Sudeste disfarçado de vendedor de remédios, ramo do conhecimento que viria a dominar. A percepção que teve desse caminho em adaptação constante – dele são conhecidos trinta e nove nomes – expressou-a no poema Du wang, «Vou sozinho»: Meus queridos companheiros estão todos dispersos, Pela minha parte vou sozinho para os bosques. Num único ano mudei de nome três vezes, Nove em dez palavras atormentam os meus ouvidos. Habituei-me a ouvir notícias da guerra, A minha mágoa aprofunda-se com a chuva e o vento. Não será difícil cessar de existir, Mas a falta de algum amigo causar-me-ia imensa dor. Fang Yizhi deixaria tocantes pinturas que são as pegadas dessa via em que se fez acompanhar da memória de antigos pintores, como na folha de álbum Velhas árvores e pinheiros, imitando Nizan (26,8 x 2 cm, no Museu de Hunan). Mas ele que viria a abraçar a vida de monge itinerante do Budismo chan, com o nome monástico Yaodi Yuzhe, o «humilde galeno», sabia de lugares onde peregrinos eram acolhidos como a natureza recebia a vida humana, o que figurou no rolo vertical Um templo oculto nas montanhas (215,5 x 84 cm, tinta sobre papel, no Museu Nacional de Arte da China). Sentindo-se acolhido dispôs-se a conhecer de um modo objectivo. Foi o que propôs no livro Wuli xiao shi, «Notas sobre o princípio das coisas» onde se lê: « Entre o céu e a terra tudo é medicina, tudo é uma coisa, tudo tem uma causa. Não há nada sem yin e yang, qi ou sabor bem como mutuas interações e transformações. Com um método: Quando seguires a razão até um ponto que não consegues entender, vira-te para algo que entendas, para o dominar – usa o concreto para compreender o escondido.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioJin Chushi e o Quinto Rei Dos Infernos Bao Zheng (999-1062), nascido perto da actual Hefei (Anhui), mais conhecido como o «juiz Bao», permaneceria na memória popular como um homem justo, defensor de camponeses e gente comum contra injustiças perpetradas por corruptos. Quando estava no seu posto de magistrado em Duanzhou (actual Zhaoqing, também conhecida como Shiuhing, Cantão) escreveu um poema que é uma declaração de princípios: A essência da governação consiste em possuir sempre um coração limpo, A estratégia da vida é seguir sempre vias direitas. Um caule elegante tornar-se-á num pilar e o aço refinado nunca será torcido até se tornar um gancho. Ratos e pardais alegram-se quando as tulhas estão cheias, assim como raposas e coelhos se preocupam quando os prados secam. Os livros de História contêm as lições dos que já morreram; Não deixais apenas desonras aos vossos descendentes. Na evolução do sincretismo religioso em que a mitologia popular vai recebendo influências do Budismo e Daoísmo, a fama do juiz suscitaria a suspeita de que ele era na verdade o quinto rei, Yanluo wang, da série dos misteriosos Dez Reis do Inferno que actuam como juízes, e como tal aparece ainda hoje nas populares «notas do inferno» que se queimam nos templos. Na radiosa capital Youdu, ele reinaria sobre todos os outros reis de Diyu, um lugar correspondente ao conceito budista Naraka, e que se traduz como «prisão da Terra», um purgatório onde são julgadas as faltas dos que morreram e se preparam para reencarnar. Um conceito que se prestava às mais ousadas expressões da fantasia e como tal foi sendo recriado em pinturas murais de templos, como avisos. Entre os seus augustos autores conta-se o célebre Wu Daozi (act. c. 719-c.760) que terá feito uma pintura a fresco desse lugar tormentoso no templo Jingyun de Chang’an. Uma renovada curiosidade surgiria no século X quando aparece o apócrifo «Sutra dos dez reis». A que responderam atelieres de pintura, como um situado em Mingzhou, actual Ningbo (Zhejiang). Jin Chushi, um leigo budista dessa cidade, activo no fim do século XII, é o nome que consta numa série de dez rolos verticais (tinta e cor sobre seda, 129,5 x 49,5 cm, no Metmuseum) onde aparecem os dez reis-juízes sentados em faustosas cadeiras diante de painéis com paisagens apenas sugeridas, cada um com a jurisdição sobre um tipo de faltas e de pessoas. Atrás das suas barras, os magistrados têem a cabeça coberta com o tongtian guanfu, que indica uma «ligação directa com o céu», usado por imperadores em ocasiões especiais. Em baixo, figuras de pesadelo empurram os réus na expiação dos seus erros. No caso do quinto rei, algo que se verá noutras representações, existe um espelho para onde um demónio obriga o penitente a olhar. Será esse outro tribunal, o da consciência, o mais severo, que recordará as admonições de Bao Zheng?
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO engenho do autor do Engenho de Água Li Zhi (1059-1109), um letrado da dinastia Song do Norte que entre os seus amigos contava eminentes espíritos livres, recordados na obra Jinan Xiansheng shiyou tanji, «Discussões com mestres e amigos», escreveu sobre outros antigos pintores que o impressionaram. Como o excêntrico e engenhoso Guo Zhongshu (c.910-977), autor do rolo vertical Viagem no rio quando a neve ia clareando, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, uma das mais impressionantes pinturas feitas no estilo jiehua, «pintura de limites». Em 1098, ao reflectir sobre dezanove Jardins famosos de Luoyang (Luoyang mingyuan ji) elogiou-o: «Quanto à pintura de construções arquitectónicas, torres, e pavilhões, Shuxian (seu nome alternativo) alcançou o seu próprio estilo, que era o mais maravilhoso de todos. Nas suas pinturas, as vigas dos telhados, as traves, pilares e barrotes são mostrados com espaços abertos entre eles, através dos quais nos podemos movimentar. Umbrais, lintéis, janelas e vestíbulos parece que podem realmente ser atravessados, abertos e fechados (…) E de tal modo que, ao desenhar um grande edifício tudo esta à escala e não existe a mais pequena discrepância.» Essa sofisticação da representação que impressionava os observadores alcançaria um ponto alto numa pintura em que o modo da figuração se adequa ao objecto representado. Esse rolo horizontal, que se encontra no Museu de Xangai, o Engenho de água (tinta e cor sobre seda, 53,3 x 119,2 cm) suscita imensa admiração e está envolto em dúvidas sobre a sua autoria ou o período histórico exacto em que foi feito. Wei Xian, um pintor das Cinco dinastias (907-960), é um dos nomes de autores apontados, porém uma interpretação daquilo que está na representação indicia um tempo posterior. O desenho meticuloso leva outros autores a atribuírem a sua autoria ao polímata que foi astrónomo e engenheiro mecânico entre outros, Zhang Sixun (activo durante o século X) já na dinastia Song. Zhang Dunli (?-1100), genro do imperador Yingzong (1032-1067), e a quem são atribuídas pinturas muito diferentes que mostram a vida despreocupada de aristocratas, como Jogando cuju num pátio como passatempo (folha de álbum, tinta e cor sobre seda, 28,2 x 29,7 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé), é outro possível autor da pintura do Engenho de água. Nela se percebe a vontade dos imperadores Song de alardear as inovações administrativas e tecnológicas. Como a da máquina que usava a força da água movendo uma azenha para moer o arroz e outros cereais, separando os grãos comestíveis da casca. Mas, desde os planificadores que, no canto superior esquerdo, se sentam para estudar o projecto, até à taberna no canto inferior direito onde trabalhadores descansam, existe todo um sistema tão organizado e laborioso que houve quem ali visse uma representação do neidan shu, a alquimia interna do daoísmo.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioZheng Min e as Recordações Das Montanhas Amarelas Zhuangzi, o clássico do século IV a. C. que escreveu sobre a «vadiagem feliz», afirmou que «O homem perfeito usa a sua mente como um espelho – sem procurar nada, não acolhendo nada, respondendo sem guardar. Assim consegue triunfar sobre as coisas sem se magoar». Essa vocação de «vaguear onde não há caminho», muitas vezes deslocando-se sobre as águas dos rios, nunca guardando nada senão memórias, foi sentida como um guia por homens de letras e pintores. Certas paisagens, como o cenário invulgar das Montanhas Amarelas (Huangshan), como que convidavam os passeantes para nelas inscreverem novos caminhos. Uma «escola de pintura» foi designada com o seu nome e dela participaram grandes mestres como Hongren ou Shitao. E os que eram originários da província de Anhui, onde se situam essas montanhas, como o pintor e poeta Mei Qing (1623-1697), deixaram desse convívio com a natureza testemunhos de uma viva impressão. Como no decurso de um passeio com familiares e amigos numa embarcação descendo um rio: «A chuva clareando, dir-se-ia um céu de Outono, Vamos descendo o rio Qing, navegando neste navio pintado, A cidade obscurecida e o campo vasto, As montanhas verdejantes tocam as ondas, Sons de flauta entristecem os poetas; Nos aposentos monásticos velhos monges meditam tranquilamente. Não há isco para o dragão que se não vê, Apenas a serena piscina de água.» O poema acompanha o rolo vertical Navegando no sopé da montanha Xiang (tinta sobre papel, 134,6 x 59,1 cm, no Metmuseum) onde outros amigos também escreveram poemas como um seu jovem discípulo Shi Runzhang que assinalou, não apenas o dia exacto em que decorreu o passeio – 21 de Maio de 1673, como lembrou o poeta Li Bai que por lá passou compondo poemas e como esse era também o lugar onde o imortal magistrado Dou Ziming pescou um dragão branco. Essas impressões em grupo de nada valiam se não fossem partilhadas. Zheng Min (1633-depois de 1683), pintor e poeta que terá participado nessa jornada e era de Shexian, igualmente em Anhui, terá sido o destinatário do rolo, mas também ele faria pinturas e poemas recordando as famosas montanhas para partilhar, lembrando caminhos solitários na memória. No álbum de nove páginas com pinturas e caligrafias Oito vistas das Montanhas Amarelas (tinta sobre papel, 24,1 x 14 cm, no Metmuseum) ele refez alguns dos lugares mais célebres das montanhas como o Cume de loto, a Ponte dos imortais ou o Pinheiro dragão enrolado, contrastando-os com poemas. O que o motivou foi um pedido do seu jovem amigo Chuzhen. Para isso recordou duas jornadas que fez por lá em 1670 e 1673, a última há já sete anos. E acrescenta que, se «no futuro, depois de todos os seus filhos se casarem», ele alguma vez lá for, «espero que leve este álbum com ele para comparar com os lugares reais. Serei então o seu guia.»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA Exactidão do Palácio Mirífico de Yuan Yao Qinwang Zheng, ou Zheng, o rei de Qin (259-210 a. C.) depois de vencer seis Estados combatentes em 221 a. C. imaginou um reinício da História que começava pela sua própria designação que passou a ser Qin Shihuang di, o «Primeiro monarca esplendoroso». Das diversas leis, formas e práticas vigentes nos outros Estados fez uma só, das muitas muralhas que protegiam cada um deles, fez só uma Grande muralha de dimensões desmesuradas, Wanli changcheng; mandou queimar livros que pudessem pôr em causa o seu pensamento e para alardear o seu vasto poder mandou erigir um fabuloso palácio em Epang no ano 212 a.C.. O destino das várias acções seria desigual. É certo que huangdi passaria a ser a nomeação de todos os futuros poderosos dirigentes a que chamamos «imperadores»; a extensa muralha, sempre acrescentada, permaneceria como um desafio; as ideias que se lhe opunham, pela sua natureza, nunca seriam contidas; o palácio de dimensões exageradas não seria acabado e como clara figuração do seu poder, objecto da ira do rebelde Xiang Yu que acabaria por conquistar Xianyang, a capital do seu reino, situada perto da actual cidade de Xian. Mas o fogo que consumiu o palácio Epang, além das ruínas, deixou intacto o ambicioso sonho de pedra. Muitos anos depois o poeta dos Tang, Du Mu (803-852) que nunca o viu, refez na imaginação a prodigiosa construção (…) «que se estendia por mais de trezentos li, tapando o sol no céu e desde o Norte da montanha Lishan ziguezagueava para Oeste e depois virava direito para Xianyang. Dois rios (Wei e Jing) fluíam no seu curso brando em direcção aos muros do palácio. A cada cinco passos havia uma torre, a cada dez passos, um pavilhão com corredores que serpenteavam como seda ondulando. E as pontas dos beirais eram projectadas como bicos de pássaros. Cada estrutura tirava partido do terreno, mas todos estavam engenhosamente entretecidos, ou cada um aposto ao outro.» (…) Yuan Yao (activo entre 1720-80), o pintor profissional de Yangzhou (Jiangsu), propôs mais de uma vez as formas que poderia ter o palácio que se estendia numa colina entre dois rios. Numa dessas pinturas no Museu de Belas Artes de Boston, a Vista imaginada do palácio Epang (tinta e cor sobre seda, 172,6 x 127 cm), ele utilizou o método jiehua, «pintura de limites» ou feita com réguas, e o estilo gongbi, o pincel minucioso para reproduzir o efeito de espanto que causaria a visão da construção que figurou em harmonia com a paisagem. Adequação entre o estilo e o deslumbramento do objecto pintado que Yuan Yao partilhava com o seu familiar Yuan Jiang (1670?-1755?) outro pintor de Yangzhou com quem foi por vezes confundido. Mas se a impressão de opulência e esplendor do palácio na pintura espelhava a estabilidade política e económica do tempo, isso contrastava fortemente com a era da imensa vontade de Qin Shihuang.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAs Nuvens Sobre a Mesa de Yang Jin Tao Hongjing (456-536), o sábio daoísta multifacetado nascido em Moling, perto da capital Jiankang, a actual Nanquim e que seria autor de estimados textos que esclareceriam o Dao, como o Zhengao, a «Declaração do Aperfeiçoado», teve desde muito cedo a intuição de que o lugar a que pertencia, a sua pátria electiva, era no meio das montanhas Juqu, hoje designadas Maoshan. Para lá se dirigiu desde 492 e apesar da distância e do isolamento, a sua fama de eremita erudito, yinshi, foi-se estendendo sempre ao longo dos mais de oitenta anos da sua vida que decorreu num período especialmente turbulento que viu sucederem-se treze imperadores. O mais memorável de entre eles era também uma personalidade notável capaz de reconhecer a luz que brilhava no escuro no meio das montanhas. Xiao Yan (464-549) que fundaria uma nova dinastia terá consultado Tao Hongjing para escolher um nome auspicioso para o seu reinado. Desde então chamado imperador Wu de Liang (r. 502-549) uma palavra de múltiplos sentidos que incluem a ideia de uma cadeia montanhosa, não cessou de honrar o daoísta a quem atribuiu o título de «chanceler das montanhas» e para quem mandou erigir, onde ele vivia, o eremitério Zhuyang guan, a «Abadia Yang da cor cinábrio». Entre os dois desenvolveu-se uma fecunda relação literária e espiritual nascida da aparente contradição entre um homem que aprofundava o Dao e outro que foi responsável por uma progressiva disseminação e sinização do Budismo, que declarou como religião oficial do Estado. No final ambos reconhecendo os méritos do outro, contribuindo para a heterogénea religião nacional. Da conversação literária entre os dois foi guardado um esclarecedor poema de Tao Hongjing dirigido a Xiao Yan: Perguntou-me o que há de tão interessante nas montanhas, e há tantas nuvens brancas pairando sobre os cumes. Mas só cada um, por si só, as pode admirar. Não as podemos segurar nas mãos para vo-las apresentar, senhor. Yang Jin (1644-1728), um pintor erudito que contribuiu para a exuberante riqueza visual exibida pela dinastia Qing no seu desejo de assumir a herança cultural vinda de dinastias precedentes, colaborando com o seu mestre Wang Hui (1632-1717) na ilustração das Viagens ao Sul do imperador Kangxi, prolongaria aquele inolvidável diálogo através de um poema. Numa pintura feita para o álbum de dezasseis folhas, Paisagens a partir de antigos mestres (tinta e cor sobre papel, 27, 9 x 30,8 cm, no Metmuseum) em que participam outros cinco pintores, sobre uma paisagem enevoada ao estilo de Mi Fu (1051-1107) escreveu: A chuva abandonando as vastas regiões despovoadas faz as cores da madrugada transparecem e surge o azul celeste dos vapores de montanhas distantes. Nuvens brancas enchem a minha mesa ao desenrolar a pintura. Quem pode dizer que elas não podem ser enviadas a um senhor?
Paulo Maia e Carmo Via do MeioLu Wenying, as Cores da Pintura e a Intuição da Chuva Huizong (r.1100-1126), o imperador que cultivou as artes do pincel, terá lançado uma provocação entre os pintores da sua corte que consistia na figuração em pinturas de versos que ele propunha. Um desses versos pode ser traduzido como: «Vai o cavalo galopando pisando flores, os seus cascos exalando fragrâncias.» Houve quem respondesse pintando um cavalo galopando livre numa floresta de flores caídas. Porém o que mereceu o aplauso do monarca mostrava: indícios de tinta vermelha no centro, o perfume, e duas borboletas esvoaçando assustadas, o cavalo acabara de passar. Essa escolha sobre como representar ideias imbuídas do ritmo da vida, o desafio próprio da pintura, foi revelando o engenho dos autores. Um pintor na dinastia Ming mostrou em dois exemplos, uma particular adequação da intenção do criador ao formato da pintura. Juntamente com Lu Ji (act. c. 1439-1510), Lu Wenying (1421-1505) encenou num rolo horizontal a celebração num jardim, como era já então um tema habitual entre eruditos, o sexagésimo aniversário de três altos funcionários. Nesse Encontro no jardim de bambu (Zhuyuan shouji, tinta e cor sobre seda, 33,8 x 395,4 cm, no Museu do Palácio, em Pequim) estão pintados, de maneira ritmada e em etapas como convém a um lento desenrolar, doze literatos sentados, alguns nas sofisticadas cadeiras portáteis de «costas de ferradura», jiaoyi. São reconhecíveis pelas suas cabeças ornadas pelo wushamao, o tipo de chapéu de tecido preto com duas asas exclusivo dos funcionários da corte, e estão acompanhados de sete jovens criados, um dos quais dança com um grou, o pássaro da longevidade. Todos estão identificados com uma espécie de filactério. Entre eles estão retratados os dois autores do rolo, vestidos cada um com uma das duas cores com que por vezes é referida a própria arte da pintura, danqing, o vermelhão do pigmento do cinabre (dansha) e o verde-azul do ciano (qinglu, azurite). Lu Wenying, pintor de Zhejiang, que tal como Lu Ji foi chamado à corte no reinado de Hongzhi (r.1487-1505), também intuiu a vocação do rolo vertical para apreender uma visão única. Na pintura Tempestade numa vila junto do rio (Jiangcun fengyu, tinta e cor sobre seda, 170,5 x 103,4 cm, no Museu de Arte de Cleveland) o olhar, pelo enganoso processo da percepção simultânea, inunda-se com a violência da água precipitando-se, inclemente. Mas se é certo que estão figuradas ondas alterosas, bandas oblíquas de tonalidades da tinta que sugerem bátegas e mesmo dois homens que se protegem com uma cobertura de palha e um guarda-chuva, o olhar descobrirá uma pequena figura que parece sorrir numa janela. Dentro de casa, protegido da intempérie, um rapaz observa o mesmo que nós: está dentro e fora da pintura. Como alguém que esteja diante da pintura, ele olha a chuva que cai mas que não saíu do pincel do pintor.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAs crianças que aguardavam por Tao Yuanming Wang Qihan (act. 950-75), autor de uma célebre pintura de um Literato que limpava os ouvidos ao lado da qual Yongcheng, o quarto filho do imperador Qianlong, escreveu que aquela era uma obra que «circulara, deliciando muitos olhares», também concebeu outra representação que mostra uma fina sensibilidade capaz de provocar a mesma sensação de inesperado deleite. Numa folha de álbum (tinta e cor sobre seda, 43 x 33,2 cm, no Museu de Belas Artes de Boston) de Mulheres e crianças junto de um lago com lótus diante de um salgueiro (simbolizando a ausência do pai?) apresenta uma cena íntima e familiar: junto de um bebé, uma mãe que cultiva as artes e as letras, como se vê nos rolos de pinturas e caligrafias e um qin atrás dela. O que explicará o gesto leve e o olhar brando com que levanta o braço para acalmar as brincadeiras mais irrequietas de outras crianças que estão num pátio à sua frente. Se bem que invulgar entre as obras dos literatos, esse género de figuração de mulheres e crianças, ou apenas crianças, tornar-se-ia uma característica única da pintura das seguintes dinastias Song e Yuan, depois repetida em obras impressas e artes decorativas, como espelho exemplar da harmonia familiar nas dinastias seguintes. Porém, de modo típico, nessa altura a atenção ao espaço da intimidade familiar estava ancorada na sublimidade literária das palavras de poetas como Tao Yuanming (365-427). Em Regresso a casa (Guiqu laici, poema IV) o poeta recorda com alegria os que o esperavam ao chegar ao seu refúgio campestre: «(…) E então vi a minha casa de família, Cheio de alegria pus-me a correr, Um rapaz meu criado veio receber-me Meus filhinhos esperavam-me à porta (…) Os três caminhos quase não se distinguiam mas os pinheiros e os crisântemos ainda lá estavam. Segurando as crianças pela mão, entrei na minha morada (…)» A descrição, feita com tal detalhe inspiraria inúmeros pintores. He Cheng (1224-depois de 1315) foi um dos autores de vários rolos horizontais que recriam essa situação como o anónimo, dos mesmos anos de 1300, que está no Museu de Arte de Cleveland ou o feito a partir de um original de Qian Xuan (1239-1301), que está no Metmuseum (tinta e cor sobre papel, 106,7 x 26 cm), que se tornariam um tema querido por pintores, sobretudo depois do rolo horizontal de Li Gonglin (c. 1049-1106) que está no Smithonian (tinta e cor sobre seda, 37 x 521,5 cm). Deles faz parte a encenação desse encontro com as crianças, que torna visíveis os sentimentos do poeta ao regressar. Um pediatra da dinastia Song, Qian Yi (c.1032-1113) escreveu sobre esse olhar de ternura do poeta e da mãe, na pintura de Wang Qihan: «Acredito que disseminar o afecto é uma responsabilidade das pessoas de bem. Cuidar dos mais novos é uma instrução que nos foi passada pelos sábios. Como poderemos não propagar essa protecção?»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioWang Qihan e o Literato Que Limpava os Ouvidos Cai Yong (132-192) o erudito calígrafo e entendido na música do qin, certo dia foi convidado para o serão em casa de um amigo que o quis obsequiar povoando o ambiente sonoro com uma melodia suave, para o que dispôs um músico tocando o qin discretamente atrás de um biombo. Subitamente porém Cai Yong levantou-se e saiu exasperado. Quando o anfitrião perplexo quis saber a razão de tal procedimento, a resposta terá sido ainda mais assombrosa; o ilustre convidado alegou que notara na música que escutava um «sentimento assassino». Procurando uma explicação, o anfitrião interrogou o músico. Este, revendo as ideias e os sentimentos que lhe atravessaram o espírito enquanto tocava, lembrou-se que estava observando os movimentos de um louva-a-deus que se aproximava de uma cigarra, cujo chilrear o incomodava e como desejava que o primeiro acabasse com o ruído da outra. Ao ouvir a explicação, Cai Yong respondeu bem-humorado: «Ah, então foi isso.» A anedota, contada para enaltecer a fina sensibilidade do erudito da dinastia Han Oriental, coloca também em evidência o biombo, essa peça de mobiliário que serve para separar mas também para capturar anonimamente os mais escondidos segredos, os mais leves sussurros e ardis. Na dinastia Tang do Sul (937-960) pintores como Zhou Wenju ou Gu Hongzhong usaram em pinturas esse dispositivo referido comummente como pingfeng, «guarda-ventos», para encenar visualmente vias para descobrir e encobrir verdades. Outro caso exemplar foi imaginado pelo pintor da actual Nanquim, Wang Qihan (act. c. 950-75). Numa pintura conhecida pelo gesto inesperadamente privado da sua figura principal que, diante de três biombos, levanta a mão direita para limpar o ouvido, o imperador Song Huizong (1082-1135) que foi uma das eminentes personalidades que a possuiram, escreveu na margem direita da representação, na sua distinta e elegante caligrafia designada shoujin duas palavras, Kanshu, Examinando livros, que passaria a ser o seu nome formal. Wang Qihan, que no catálogo de pinturas Xuanhe huapu (1120) do tempo de Huizong, é referido no capítulo IV como pintor de temas budistas e daoístas, de que será exemplo a obra que lhe é atribuída de um Imortal (presumivelmente Lu Dongbin) montado num dragão (folha de álbum, tinta e cor sobre seda, 40 x 37,5 cm, na Galeria de arte da Universidade de Yale) seria porém objecto de uma persistente admiração devida à figuração de um gesto íntimo. Examinando livros, rolo horizontal guardado na Biblioteca da Universidade de Nanquim (Kanshu tu, tinta e cor sobre seda, 284 x 65,7 cm) mostra uma cena dominada por três biombos pintados com paisagens harmoniosas, em frente deles, uma cama e em cima dela, um qin. À direita, diante de uma mesa com livros o literato repousa descalço, o dedo no ouvido, confiante, numa manifestação da sua longanimidade.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO vento nas ameixieiras de Wang Shishen Shitao (1642-1707), o pintor peripatético, vagueando pela região de Jiangnan, «a Sul do grande rio Changjiang» figurou um poeta erguendo-se num barco, olhando impressionado para uma enorme massa rochosa e escreveu os versos: Enquanto o vento vai soprando na Ravina Ocidental quem permitiu que o poema se completasse sozinho? Tanta pena da ameixieira, a solitária do frio, que não tem companhia. Daqui apenas se avistam os poucos ramos que sobraram, Flores caídas enchem já o chão e a Primavera ainda não terminou. Um coração amargurado, apertado como uma semente, consegue persistir em tais pensamentos constantes A pintura numa folha de álbum (Reminiscências de Qinhuai, tinta e cor sobre papel, 25,5 x 20,2 cm, no Museu de Arte de Cleveand) é exemplar do seu processo como pintor literato individualista para quem o crescente simbolismo da pintura como que pedia o contraste dinâmico com a palavra poética. Essa figura do indivíduo solitário no meio da paisagem está presente em muitas das suas pinturas e até foi assim que ele fez o seu Auto-retrato supevisionando a plantação de pinheiros. Um outro pintor, seu contemporâneo e da mesma região de Jiangnan, habitante da cidade de Yangzhou, também figurou esse sujeito sensível que da natureza recebe sinais de lentas ou delicadas mutações. Wang Shishen (1686-1759) faria uma rara pintura de um homem caminhando ao frio com um jarro de barro, que se presume cheio de neve para ser derretida e feita água, quem sabe se para o chá, aproximando-se da vedação de uma habitação coberta com um telhado de palha, a que chamou Pedindo água de neve (rolo vertical, tinta sobre papel, 91 x 26,8 cm, no Museu de Arte da Universidade de Princeton). Wang Shishen, o pintor de Anhui que escolheu o nome artístico de Chaolin, «aninhado na floresta», ficaria conhecido pelas suas pinturas de ameixieiras. Um álbum de oito pinturas de Paisagens e flores no Metmuseum (tinta e cor sobre papel, 20,3 x 25,1 cm) será um modelo a mostrar a potenciais compradores a sua habilidade de pintor profissional na rica região comercial ao longo do Grande Canal. Mas noutras pinturas, como Flores de ameixieira, no Museu de Arte de Cleveland (rolo vertical, tinta sobre papel, 144,4 x 75,7 cm) descreve uma situação típica das actividades dos literatos: «Em busca de flores de ameixieira com amigos, Aproveitamos a frescura de um dia claro, Sinto leves os meus sapatos pretos e as meias de algodão, Que belos os bosques diante da porta deste antigo templo, Caminho para a frente e para trás, como se habitasse numa pintura.» Noutro poema diz: «O distinto badalar de um sino rompe o silêncio nas montanhas, Mil anos depois todos os heróis das Seis dinastias estão esquecidos, Sob uma janela budista apreciamos os dias ociosos, Ramos e flores de ameixieira guardam para si todo o vento Leste.»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioCheng Xiuji, um Pintor, um Imperador e o Livro das Odes Tang Wenzong (809-840), o monarca que percebeu o grandeza do exemplo, mandou emitir um decreto apontando como Três maravilhas do grande império dos Tang, Sanjue webian, a poesia de Li Bai, a caligrafia de Zhang Xu e a arte da espada de Pei Min. Como que confirmando essa intuição imperial sobre o valor da poesia, Wang Yinglin (1223-96), o filósofo e ensaísta os Song do Sul, guardou em Kunxue Jiwen a memória de uma relação entre o imperador Wenzong, um pintor e o grande texto clássico Shijing, que reúne poemas e canções de várias tradições, cuja compilação é tradicionalmente atribuída a Confúcio (551-479 a. C.) e é traduzido entre outros, como Livro dos Cantares ou Clássico da Poesia. Aí se diz que, não estando satisfeito com a figuração «da vegetação, dos animais silvestres e dos retratos de antigas dignidades» de ilustrações anteriores, Wenzong pediu que fossem refeitas as pinturas relativas aos trezentos e cinco poemas. O pintor escolhido foi Cheng Xiuji (804-63) e, se o celebrado poeta dos Tang Du Mu (803-52) o menciona num Encómio como alguém que se distinguiu pelo modo admirável como refez as pinturas que ilustram o célebre texto e que lhe valeriam a promoção a Hanlin daizhao, «talento às ordens», parte do grupo criado pelos imperadores dos Tang como conselheiros eruditos, outras fontes referem-no primeiro como um alto funcionário militar, detentor de títulos de nobreza. É o caso, raro para um pintor, de um Epitáfio que detalha o seu percurso na hierarquia oficial desde que passou o Exame sobre a compreensão dos clássicos, em 826. Uma terceira fonte, que se interessa mais pela sua qualidade como artista, lê-se no texto de biografias de mais de cem pintores, Tangchao minghualu, que o descreve como «aluno durante vinte anos» do preclaro pintor Zhou Fang (c.730-800). Zhu Jingxuan (activo entre 806-46), o seu autor, escreve: «Desde a era Zhenyuan (785-805) ele foi o único indivíduo na capital cujo avanço [na hierarquia] se deveu apenas à sua mestria como pintor e foi continuamente agraciado pelo favor imperial.» O caso de Cheng Xiuji, com um imperador e o Shijing repetir-se-ia. Na dinastia Song do Sul, o imperador Gaozong (r.1127-62) ordenou que a sua própria caligrafia fosse utilizada para reescrever os poemas do Shijing e solicitou ao ilustre pintor Ma Hezhi (activo entre 1131-89) que fizesse as ilustrações, de que uma parte se pode ver no Museu do Palácio, em Pequim (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 27 x 383,8 cm). Qianlong (r.1736-95) também mandou que pintores da sua corte fizessem ilustrações para o texto, que ele próprio reescreveu. De modo característico, foi um projecto grandioso de trinta álbuns, um dos quais se pode ver no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, que demoraram seis anos a ser terminados e brilhariam como uma das maravilhas do seu reinado.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAs Dez Etapas do Chan e os Cinco Bois de Han Huang Chen Hongshou (1598/9-1652), com a linha livre e caprichosa do seu pincel, fez uma pintura representando o momento em que Laozi (571-471 a. C.) está na iminência de passar um curso de água, uma fronteira em direcção ao Ocidente, a partir da qual mais ninguém tornaria a ver aquele que o historiador Sima Qian afirma ter sido incumbido de preservar documentos históricos. O sábio é representado na pintura (folha de álbum, tinta e cor sobre seda, 30,2 x 26,7 cm, no Museu de Arte de Cleveland) seguindo vagarosamente montado num boi e já cumpriu a sua missão, deixando para trás o clássico do daoísmo, o Daodejing que através dos tempos iria assegurar a sua fama e glória, como indicam as flores de híbisco que na pintura estão atrás dele. O animal lento, paciente, confiável e obstinado que o transporta também teria um lugar na memória dos vindouros, com um vínculo particular ao budismo chan. Num dos instrumentos experimentais do chan, o gong’an, mais conhecido com o nome japonês koan, há um que conta como um monge que trabalhava na cozinha do mosteiro foi interpelado pelo mestre àcerca do que estava fazendo. «Nada de mais», respondeu o monge «apenas pastoreando o boi». O mestre perguntou-lhe então «como» o estava fazendo. O monge respondeu: «Cada vez que o boi se afasta para ir comer erva, levo-o de volta ao trabalho.» No século XII o mestre do chan, Kuoan Shiyuan (activo c.1150) propôs uma série de dez etapas de meditação, para o que escreveu dez poemas e dez ilustrações, que o praticante devia seguir para purificar o corpo e o espírito, que tem no centro a figura do boi, antiga analogia referida no Sutra do Lótus como o «boi branco», metáfora para a transcendência do samsara, o ciclo contínuo da morte e da vida. Em Shiniu tu, o mestre começa com o poema Em busca do boi, cujo primeiro verso diz: «Na grande vastidão afastando os matos, vou procurando, perseguindo-o». Nessa dinastia Song (960-1279) a figuração da figura do boi alcançaria grande popularidade mas antes já fora objecto de uma pintura excepcional. Han Huang (723-787), um alto funcionário da dinastia Tang (618-907), é o autor do rolo horizontal Cinco bois (Wuniu tu, tinta e cor, 101,5 x 55,3 cm, no Museu do Palácio, em Pequim), considerada a mais antiga pintura sobre papel. A representação não possuía nenhum carimbo ou palavras a acompanhá-la mas tem hoje as marcas de poemas e carimbos dos coleccionadores, como imperadores, que a possuiram. Mas dir-se-ia que a expressividade do traço gracioso e seguro de Han Huang herdara a mestria de pintores e calígrafos que o precederam, cada boi surgindo inteiramente eloquente só no risco. No final do processo proposto por Kuoan Shiyuan, o praticante, encontrado o boi, está de Regresso ao Mundo e, acompanhando o poema, o mestre mostrou-o radiante de alegria diante do Budai, o buda que ri.