A cadência das flores e dos pássaros de Jiang Tingxi

Xiao Baojuan, imperador (r. 498-501) da dinastia Qi e que seria despromovido a marquês Donghun, terá mandado espalhar folhas douradas de lotos pelo chão de um salão para que a sua concubina Pan dançasse sobre elas. Encantado com a expressividade do movimento, teria exclamado: «A cada passo desponta uma flor de loto» (bubu shenglian).

A associação da conhecida flor do Budismo à pura expressividade do movimento era só mais um, original, ligame das flores a metáforas culturais numa altura em que chegava do Ocidente o monge Damo (Bodhidharma) na transição dos séculos cinco para o seis, com a mensagem do Chan fazendo florescer de novo as palavras do Buda.

Na dinastia Tang (618-907), o loto e outras flores, seriam cantadas por poetas e recriadas em pinturas ao lado de pássaros, produzindo uma míriade de significados, desde a simples enunciação da beleza até a associação a histórias de fenómenos misteriosos como a imortalidade, e um género de pintura novo, huaniao hua, que podia incluir muitos outros elementos como insectos, peixes ou frutos.

Eminentes pintores de todas as seguintes dinastas a praticaram. Um homem sábio da dinastia Qing que convivia com o imperador e cujo saber era tão reconhecido que foi chamado para terminar uma monumental enciclopédia, distinguir-se-ia pela delicadeza na pintura das flores. Jiang Tingxi (1669-1732), de Changshu (Jiangsu), será sempre associado a Chen Menglei (1650-1741) como os dois directores da Colecção completa de ilustrações e escritos desde os antigos aos actuais, Gujintushu jicheng, publicada em 1726. Mas as suas pinturas, como Hibiscos e garça (rolo vertical emoldurado, tinta e cor sobre seda,113 x 60,3 cm, no Metmuseum) mereceriam poéticos elogios como o que nela escreveu Jiang Wuyang:

«Folhas de loto flutuando

na água parecem tão puras,

Flores de hibiscos nas margens

do entardecer fazem-me sorrir.

O espírito entra directamente

na morada de Zhao (Mengfu).»

Jiang Tingxi faria pinturas para álbuns que acompanham poemas dos três imperadores que conheceu: Kangxi, Yongzheng e Qianlong, cujos reinos possuem tal unidade que são habitualmente referidos como «o avô, o pai e o filho». Essa continuidade manifesta-se também na vontade de coleccionar; rever, comparar, enumerar. O pintor junta-se a essa determinação em Cem pássaros (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 304,8 x 30,48 cm) no Museu de Arte de Indianapolis. Ele terá conhecido a arte da pintura com o seu conterrâneo Yun Shouping (1633-90) e a «escola de Piling», nome antigo da terra dos dois, cujas pinturas se observam hoje em mosteiros budistas do Japão. Na inter-relação das formas que ocupam os espaços na sua pintura vê-se o objectivo expresso na primeira lei da pintura de Xie He (act. c. 500-35) Qiyun, o «movimento do espírito», comparável ao persuasivo dinamismo rítmico da dança.

15 Mai 2023

A Lua sobre a água e os retratos em pares de Yan Hui

Li Tieguai, «Li, o da bengala de ferro», um dos Oito imortais (Baxian) da cultura popular, possuía o aspecto andrajoso de um mendigo, que foi o corpo onde reencarnou depois do seu assistente ter queimado o seu corpo inicial julgando que tinha morrido ao encontrá-lo inanimado. Na verdade, ele tinha feito o espírito abandonar a sua forma visível, indo passear junto dos seus campanheiros imortais. A anedota — que pode ser vista como um mecanismo da memória aludindo à célebre lição do Sutra do Coração: «A forma é vazia, o vazio é a forma» — foi adoptada em populares representações que decoravam paredes de mosteiros, no processo de abraçar o Budismo no quotidiano dos dias.

Na dinastia Yuan, um pintor profissional originário de Luling (actual Jian, Jiangxi) representou Li Tieguai soprando a alma para fora do seu corpo, numa pintura no Museu de Quioto (rolo vertical, cor sobre seda, 161,3 x 79,7 cm) que faz par com outra de iguais dimensões, mostrando o imortal Liu Haichan. Lado a lado eles parecem conversar. As suas feições exageradas visam provocar o espanto, um efeito emocional que se opõe às pinturas depuradas da dinastia anterior.

Esse pintor, Yan Hui (activo c. 1270-1310) faria um outro impressivo retrato de Li Tieguai que está no Museu do Palácio, em Pequim (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 131,8 x 67 cm) onde avulta o olhar sombrio, extravagante e directo ao observador do imortal sentado numa rocha; uma cascata no canto superior esquerdo faz ondular as águas à sua frente. Outra pintura do mesmo autor (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 111,1 x 76,2 cm, no Museu Nelson-Atkins, na cidade do Kansas) reproduz o mesmo cenário mas agora é retratada Guanyin, a bodhisattva da compaixão, no modelo de Guanyin shuiyue. Envolta num grande halo, os olhos fechados na face serena, junto dela, um ramo de salgueiro imerso no orvalho da imortalidade repousa num vaso azul.

Yan Hui também conhecido pelo nome Qiuyue, «o luar do Outono», foi como Zhao Mengfu (1254-1322) e outros seus contemporâneos, fascinado pelo «espírito dos Antigos», guyi, em especial os da dinastia Tang (619-960) de tal modo que a sua Guanyin shuiyue que medita diante da lua reflectida na água, parece ilustrar o poema de Bai Juyi (772-846) Apreciando pinturas:

«Sobre a água pura,

entre a luz branca

os meus olhos pousam

sobre a figura

e tudo se esvazia.

O teu discípulo Juyi

determinado à conversão:

cruzando vitórias e fracassos

tu serás o meu mestre.»

A atenção de Yan Hui à poesia nota-se também nos retratos idênticos dos poetas Hanshan e Shide no Museu de Tóquio (rolo vertical, tinta, cor sobre seda, 127,6 x 41,8 cm) sorrindo confiantes como quem sabe um segredo e de cuja existência histórica alguns duvidam, julgando tratar-se da mera compilação de ecos da alma humana, instáveis como o reflexo da lua sobre a água.

11 Mai 2023

Um tesouro da colecção de Xiang Yuanbian

Huaisu (activo 730-80), o monge budista e poeta que partilhava o gosto de Li Bai de beber o vinho como veículo de inspiração e facilitador da confraternização, teria, segundo a lenda, plantado um bananal na sua terra natal para aproveitar as suas grandes folhas na ausência de papel para escrever. O seu carácter rebelde, engenhoso e excessivo seria figurado em pinturas, como no leque montado como folha de álbum de Gu Yun (tinta e cor sobre papel, 17,1 x 51,1 cm, no Metmuseum) onde ele está com ar displicente, de olhos fechados com um afastador de moscas na mão, semi-deitado nesse bananal que ele chamou Lutian an, «templo do céu verde» em que as folhas ocupam o espaço do céu e abanando com o vento tornam sensível pelo som o sopro do espírito.

A Autobiografia que escreveu em 777, quando tinha quarenta anos, de que existe uma cópia modelar no Museu do Palácio, em Taipé (tinta sobre papel, 28,3 x 755 cm), tornar-se-ia numa das mais estimadas obras da arte da caligrafia no estilo cursivo (caoshu) espontâneo, dito «selvagem». No início do relato, ele refere a dificuldade que teve para satisfazer o desejo de conhecer aquelas obras de arte com que sentia afinidade e «infelizmente lamentava não ter oportunidade de olhar para as maravilhosas obras-primas escritas pelos antigos mestres» (linha 3) então decide ir até à capital num esforço e dedicação que compensou: «Então, achava amiúde textos raros e livros preciosos. O meu espírito abriu-se e iluminou-se nessa altura e senti-me livre e sem constrangimentos.» (linhas 8,9)

Mas o seu próprio texto entraria nesse patamar exemplar e a sua posse cobiçada. Na dinastia Ming encontrava-se numa colecção excepcional cuja grandeza se pode deduzir da afirmação orgulhosa do erudito e influente teórico e pintor Dong Qichang (1555-1636): «Tive oportunidade de observar todas as obras originais das dinastias Jin (1115-1234) e Tang (618-906) na colecção do erudito universal Xiang Zijing.»

Xiang Yuanbian (1525-90), referido pelo seu nome literário Zijing, «Filho ou mestre da capital», nascera em Jiaxing (Zhejiang) mas seria à sua casa em Suzhou que afluiriam pintores e outros visitantes curiosos de estudar pinturas e caligrafias raras. Alguns, como Qiu Ying (1494-1552), lá viveriam durante anos. Wen Jia (1501-83) dedicou-lhe uma Paisagem em 1578, como um presente (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 117,5 x 39,8 cm, no Metmuseum) quando Xiang fazia cinquenta e quatro anos. A pintura foi muito bem recebida como provam os quinze carimbos de Xiang Yuanbian. Nela estão representados entre altas montanhas dois literatos sentados no chão, conversando, e um terceiro vem chegando numa ponte. Entender-se-á; o autor da obra de arte, o coleccionador e o visitante observador e a razão da colecção: dar a ver o que o coleccionador valorizava, como a «escrita selvagem» de Huaisu.

2 Mai 2023

Luo Qilan, a vida e a arte nos aposentos interiores

Cao Zhenxiu (1762-c.1822) recordou de modo admirável num conjunto de dezasseis poemas, que coligiu com a sua elegante caligrafia num álbum, acompanhados de pinturas de Gai Qi (tinta sobre papel, 24,8 x 16,8 cm, no Metmuseum), exemplos de mulheres inspiradoras.

Num desses poemas ela lembrou a extraordinária calígrafa Wu Cailuan (activa em 830-845) que cuidadosamente executou cópias do famoso Dicionário de Rimas, e cujo deslumbrante talento só poderia ser explicado pelo facto de ela ser uma imortal exilada na terra para ajudar um jovem estudante pobre, com quem partiria para um mundo frio onde passariam a habitar no orvalho.

O exemplo de Wu Cailuan era singularmente adequado ao tempo em que Cao Zhenxiu viveu e em que nos aposentos interiores dos palácios outras mulheres se descobriam, apesar das contrariedades do mundo dominado por homens, parte de uma insigne tradição. Uma dessas mulheres iluminadas pela arte no interior do gineceu descreveria com precisão esses obstáculos. Luo Qilan (1755-1813?), a poeta e pintora de Jiangnan, interrogou-se:

«Por que é assim? Escondidas nos seus aposentos, são muito poucas as pessoas que elas vêem e escutam. Não têm amigos com quem falar ou estudar para desenvolver os seus conhecimentos. Nem têm oportunidade de explorar as montanhas e os rios para observar a paisagem e assim inspirar o seu talento literário e virtuosidade. Sem um pai valoroso ou irmãos que as ajudem a encontrar as origens e a distinguir o verdadeiro do falso, elas não conseguem cumprir a sua vocação na vida. Depois de casadas, o tempo gasto em cuidar dos pais do marido e a tratar das insignificantes questões da lida da casa, deixam-nas tantas vezes sem oportunidades de escrever poesias.»

Luo Qilan, também conhecida pelo nome literário Qiu Ting (Um pavilhão no Outono», iria contrariar esse fado, tal como as carpas nadando contra a corrente até saltar a Porta de Jade e alcançando a promessa do Imperador de Jade, tornando-se ela mesma assinalável no seu mistério, como um dragão.

Viúva quando tinha cerca de trinta anos, editou em 1797 a antologia Tingqiuxuan guizhongtongren ji (Poemas para o Estúdio onde se escutam os sons do Outono das minhas companheiras nos aposentos das mulheres), que recolhe poemas de dezassete autoras. Cinco pinturas como Peónia lactifora (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 87, 5 x 39 cm) e um álbum feitos por ela estão no Museu do Palácio, em Pequim. Entre os retratos dela, feitos por quem a conheceu, nota-se o rolo horizontal de Ding Yicheng, Olhando o monte Ping na Primavera, onde ela está de pé, solícita ao gesto de uma jovem à sua frente, a mão direita pousada numa grande rocha de literatos, ela observa para ser vista:

«Não é fácil que os talentos
dos aposentos interiores sejam conhecidos,
Jogar com a tinta à luz das velas
é diversão suficiente.»

24 Abr 2023

O rolo de You Qiu onde vai a bagagem de um imortal

Ge Hong, também conhecido como Ge Zhichuan (283-343), autor do dicionário Ziyuan “Jardim de caracteres”, é também autor de um conjunto de textos designados Baopuzi “Mestre que abraça a simplicidade”, divididos em duas partes que recolhem: de um lado, Capítulos exteriores, Weipian – entre outros os fundamentos do humanismo confuciano que designou como «o ramo» (mo); e do outro Capítulos interiores, Neipian – a filosofia e a incontida imaginação no relato de ocultas práticas daoístas que designou «o tronco» ou «origem» (ben) tal como circulavam no seu tempo, na região de Jiangnan. De si mesmo escreveu (Capítulos exteriores, 50):

«Sou uma pessoa simples, aborrecido por natureza e gaguejo. Minha aparência física é desagradável e nem sou suficientemente competente para me gabar ou polir os meus defeitos. Meus chapéus e sapatos andam sujos; e as roupas, por vezes ainda piores, nem podem ser remendadas. Mas isto nem sempre me incomoda. Estilos de roupas mudam muito depressa e muitas vezes. Num momento são largas no pescoço e o cinto é largo; noutra altura são ajustadas e com mangas largas; mas de novo compridas, varrem o chão ou tão curtas que nem cobrem os pés. Sendo um homem simples, o meu plano é preservar a regularidade e não seguir as modas do dia. O meu discurso é franco e sincero, não me entrego à galhofa. Se não encontrar o interlocutor certo, sou capaz de ficar o dia todo em silêncio. Esta é a razão por que os meus vizinhos me chamam ‘o que abraça a simplicidade’, Baopu, nome que uso como pseudónimo naquilo que escrevo.»

Demonstrava assim que os antigos imperadores, Qin Shihuang ou Han Wudi na sua aspiração à imortalidade – xian, se iludiam ao não cultivarem o Dao.

Wang Meng (1308-85) figurou-o a caminho de atingir esse objectivo (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 139 x 58 cm, no Museu do Palácio em Pequim). Diante de densas e agitadas montanhas, ele vai sobre uma ponte, ao lado mas ainda não sentado sobre um veado, conhecida montada de deuses. Também a sua esposa com um filho ao colo, vem sentada numa vaca e outros criados em redor transportam objectos da sua casa em mudança.

Mas a constante republicação do Cânone Daoísta (Daozang) de que os seus escritos faziam parte, inspiraram outros como You Qiu (c. 1525-80) que no rolo horizontal (tinta sobre papel, 533,4 x29,5 cm, no Museu Britânico) o mostra sentado numa mula, nesse trânsito a caminho do Monte Luofu (Guangdong), onde terá alcançado a imortalidade.

Seis criados acompaham-no, carregados de toda a espécie de objectos associados a um erudito funcionário, cujas vestes enverga sob um casaco de pêlo aos ombros. Como mestre do Dao é identificado por objectos como ceptros ruyi ou bastões em crú. De modo subtil toda a natureza se parece inclinar para trás à passagem da caravana que mostrava doméstica a vida do imortal.

18 Abr 2023

A princesa que admirou pinturas de Liu Songnian

Xiangge Ciji (c. 1283-1331), a princesa, neta e irmã de imperadores da dinastia Yuan deu, de forma inédita para uma mulher, uma festa literária no dia vinte e oito de Abril de 1323 no templo Tianqing, nos arredores da capital, Dadu. Como era habitual nessas reuniões, pessoas educadas na já então milenar cultura poética e visual dos Han, liam, escreviam e examinavam caligrafias e pinturas, reconhecendo-se nessa memória, descobrindo-se eles mesmos parte desse desenrolar significante do tempo.

A partir do mítico Encontro do Pavilhão das orquídeas promovido pelo preclaro calígrafo Wang Xizhi, outros encontros seriam evocados na imaginação, um deles, seria tipificado com o nome de Reunião elegante no jardim do Oeste, Xiyuan Yaji. Uma festa que teria ocorrido no período Yuanyou (1066-93) do imperador Zhezong, à qual compareceram dezasseis ilustres figuras da literatura e da pintura como Mi Fu (1052-1107), que a terá registado por escrito, ou Li Gonglin (1049-1106), que a teria reconstituído numa pintura.

Uma dessas recrições da famosa reunião elegante, possivelmente feita na dinastia Ming, é atribuída de maneira espúria, ao pintor da corte dos Song do Sul, Liu Songnian (1174-1224). Desenrolando esse rolo horizontal (tinta e cor sobre seda, 24,5 x 203 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé) desvelam-se uma série de emoções ligadas a cada uma das personagens retratadas, desde Su Shi, com o seu distintivo chapéu preto alto (Dongpo jin) escrevendo, passando por Mi Fu escrevendo sobre uma pedra até, no fim do rolo, o grande monge Fayun Faxiu, também conhecido como Yuantong (1027-1090) conversando sobre Wushenglun, o conceito budista de «não ter nascido». A plausibilidade da atribuição resulta de certas impressivas pinturas do mesmo autor.

Liu Songnian, o pintor da corte de Hangzhou onde se encontrava a Academia imperial a que pertenceu, primeiro como estudante e depois como «pintor às ordens» daizhao, seria por essa razão intérprete priviligiado da cultura dos Song do Sul, a quem seriam atribuídas tantas outras pinturas que correspondem a esse gosto. Entre elas, os três retratos de luohans (sânscrito; arhat) datados de 1207 em formato de rolo vertical a tinta e cor sobre seda, que se encontram no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, e que revelam como estava a ser acolhido o Budismo na pintura.

Num deles, diante de grandes folhas de bananeira que quando o vento passa produzem um som que torna sensível o seu sopro, e de um biombo, a figura nimbada de um luohan sentado, de dimensão exagerada em relação à pessoa que à sua frente desenrola um escrito, que por não ser identificado sugere o indizível. O olhar da princesa Xiangge que queria pertencer a essa herança deteve-se diante dessa pintura, compreendeu, e apôs o seu carimbo Huangjietushu, «Da biblioteca da irmã mais velha do imperador».

13 Abr 2023

A missão diplomática aos Jin recriada por Yang Bangji

Wang Hui (1632-1717), que foi convocado para a capital para dirigir uma das maiores e mais complexas pinturas feitas sobre um rolo de seda (67,8 x 2227, cm, tinta e cor, no Museu do Palácio Nacional, em Pequim) para ilustrar o alardo da corte na primeira Viagem ao Sul do imperador Kangxi realizada em 1689, imprimiu o seu prestigiante carimbo numa outra antiga pintura cuja não menor complexidade é de outra natureza.

Esta pintura onde também figura, entre outros, o ilustre carimbo do mestre de Suzhou Wen Zhengming (1470-1559) é um objecto raro da pintura narrativa de paisagens, resultado de um tempo e uma conjuntura histórica invulgar. O rolo a que, na ausência de qualquer inscrição contemporânea, é conferido o título Missão diplomática ao território dos Jin (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 26,7 x 142,2 cm, no Metmuseum) mostrando um lugar aprazível entre montanhas envoltas em névoas, num estilo que suaviza as monumentais paisagens dos Song do Norte, ilustra afinal uma situação trágica. Que o coleccionador Chen Rentao (1906-1968) esclarece, num comentário colado no rolo:

«Estendendo esta pintura sente-se vivamente a humilhação do derrotado regime dos Song e a arrogância dos Jin, através do silêncio da tinta e do pincel.»

A sua autoria, na ausência de assinatura ou carimbo do autor, é atribuída a Yang Bangji (c.1110-1181), o filho de um alto funcionário de origem Han da dinastia Song que quando ela foi derrotada em 1127, e a corte foi de Kaifeng para o Sul estabelecendo a nova capital em Hangzhou, e a sua família executada, escapou escondido num mosteiro budista. Nascido em Huayin (Shaanxi) foi também funcionário, agora ao serviço dos Jin (Jurchens) e beneficiou como se percebe na pintura, do acesso a colecções privadas e às que ficaram guardadas em palácios imperiais, deixadas atrás pela dinastia em fuga.

Yang Bangji retrata um breve evento num posto de descanso no caminho que os diplomatas da dinastia Song do Sul faziam até à corte dos Jin, além da fronteira constituída pelo rio Huai, entre os dois grandes rios Huanghe e Changjiang.

Três altos pinheiros crescem ao lado de uma construção com uma mesa no meio, já vazia, diante da qual quatro homens a cavalo, com as vestes e as cores que distinguem os graus que possuem os funcionários dos Song, como o púrpura do mais graduado ao verde ou branco, preparam-se para partir.

Um homem de pé levanta o braço em despedida. À sua frente, do lado esquerdo dois cavaleiros com chapéus dos Jin vão enérgicos, um deles com um rolo às costas; do lado direito, músicos cujos instrumentos como as flautas típicas dos Jurchen mas também o qin dos Han, o que faz datar a pintura dos anos de 1141-61 quando os soberanos Xizong e Hailing que reinaram entre 1135 e 1161 adoptaram a complexa e fascinante cultura dos Song que Wang Hui continuou.

27 Mar 2023

As Deslumbrantes Montanhas de Verão de Qu Ding

Hongli, que reinaria como o imperador Qianlong (r.1736-95), estudioso atento da cultura que desejava preservar e restaurar, sabia de um outro imperador coleccionador e apreciador das artes cujos traços, em pinturas, caligrafias ou em carimbos, que testemunhavam o seu olhar arrebatado diante de rolos de pinturas, reconhecia e anotava como inolvidáveis.

Fê-lo, por exemplo, numa minuciosa e deslumbrante pintura que pertencera à sua colecção e à qual se quis vivamente associar, escrevendo sobre ela no ano de 1748 numa rara grelha de linhas brancas, o texto:

«Elegante antiguidade cujo fragrante perfume
ainda se sente, tantos anos depois.
Os carimbos Xuanhe, do imperador Huizong,
fazem-na ainda mais preciosa.
As figuras nela aparecem cheias de vida,
Como se as árvores e as pedras
fossem retiradas da própria natureza,
Sente-se a humidade da luxuriante vegetação
das montanhas de Verão;
Dos desfiladeiros vem o murmúrio
do ritmo repetitivo das ondas ao sol.
Empoleirados lá nas alturas, surgem amplos pavilhões.
Como nos sentiriamos debruçados na vedação
apreciando semelhante panorama?»

Essa pintura, Montanhas de Verão (Xia Shan tu, rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 45,4 x 115,3 cm, no Metmuseum), que não tem nenhuma inscrição, carimbo ou assinatura do seu autor é atribuída a Qu Ding (c. 1023-c. 1056), um discípulo de Yan Wengui (c.967-1044) cujo nome consta do rolo, e será uma de três com o mesmo título no Catálogo de pinturas da era Xuanhe, «Afirmação da harmonia», de Huizong (Xuanhe Huapu), de 1120, que regista cerca de 6396 pinturas de 231 artistas.

E nela se pode observar aquela atenção ao aspecto mutante das montanhas ao longo do ano que os tratados da dinastia Song do Norte recomendavam, «para perceber o misterioso sopro dos próprios princípios da Criação» (Han Zhuo em 1121).

Qu Ding vai pacientemente figurando, sob altivas montanhas de «árvores luxuriantes, abundantes e cheias de sombras», um dia de Verão, com a sua «coloração azul-verde que parece derramar-se por todo o lado» e as «nuvens e vapores ricos e densos» como Guo Xi (1020?-1090?) descreve no Linquan Gaozhi, a Grande Mensagem sobre Florestas e Nascentes.

Da direita para a esquerda, numa progressão em que o observador se vai apercebendo de detalhes, há pássaros voando em bandos, pescadores com as suas armadilhas, aldeias, palácios e mosteiros surgindo das brumas. E ligando tudo, pontes, em número de cinco que no Yijing corresponde a Esperando, «é favorável atravessar um grande rio».

Sobre uma dessas pontes, sentado numa mula, a reconhecível figura de um homem de cultura disponível para se deixar assombrar pelas mutações da natureza, tão exuberante e assertiva no Verão, como fizeram poetas como Su Shi que notou: «É bem verdade que estas montanhas são encantadoras, e como nos agradam ao mudar a sua face.»

23 Mar 2023

O lugar onde Li Gongnian viu a chegada do Inverno

Wang Wei (701-761) concebeu uma situação descrita em dois versos cujo poder de sugestão perduraria como um desafio que se desdobrava na imaginação dos leitores, que podem ser traduzidos como:

Caminho até onde as águas terminam,
E sento-me a observar as nuvens surgindo.

Song Lizong (1205-1264), o imperador poeta dos Song do Sul, interpretaria esses versos, com os traços fluentes da sua caligrafia em cursivo (xingshu) de caracteres angulares bem espaçados, como solicitação de uma pintura que Ma Lin (1180-1256) executaria na página em frente de um álbum que se encontra no Museu de Arte de Cleveland (tinta sobre seda, 25,1 x 25,3 cm) com o título; Erudito reclinado a observar as nuvens surgindo.

A sugestiva suavidade e economia da reelaboração mental de cenários realmente vistos, além de característica do pintor, estão presentes noutras pinturas da mesma época, em particular em figurações que dialogavam com visões utópicas que se integravam no debate sobre a natureza do poema Fonte dos pessegueiros (Taoyuan) de Tao Yuanming (365-427). Se alguns privilegiaram representações fantásticas de aspecto invulgar, outros preferiam a serenidade despojada de lugares desertos.

Foi o caso de um pintor activo no início do século XII, de quem hoje só se conhece uma pintura; Paisagem de Inverno ao entardecer (c. 1120, rolo vertical, tinta e cor sobre seda,129,6 x 48,3 cm no Museu de Arte da Universidade de Princeton) chamado Li Gongnian. No tratado Xuanhe Huapu do tempo do imperador Huizong (r. 1100-1126) as suas pinturas são descritas como «semelhantes a formas de objectos que aparecem e desaparecem num vasto vazio, pairando entre a existência e o nada.» Entre altas montanhas, as minúsculas figuras de um pescador com o seu barco e um literato sentado com um criado junto dele serão meras alusões porque quem está realmente mergulhado naquela visão é o observador da pintura.

Li Gongnian consegue nessa pintura alcançar a sensação de imponderável leveza semelhante à que, como se diz no clássico Zhuangzi, Liezi experimentou ao viajar no vento e que no texto atribuído a Lie Yukou (c. séc V a. C.) diz:

Vadiei no vento Leste ou Oeste como uma folha de árvore ou uma casca seca sem nunca saber se era o vento que me levava ou era eu que arrastava o vento.

É possível que essa nova percepção dos pintores dos Song do Sul tenha sido influenciada pelo abandono forçado da antiga capital Kaifeng e o estabelecimento da dinastia em Hangzhou, onde o céu espelhado no Lago do Oeste rodeia o atento observador por todos os lados. Mas nem todos estavam atentos. No Xuanhe Huapu vem um aviso aos pintores eremitas e eruditos «perigosamente apaixonados por nascentes e pedras, com uma incurável fraqueza por névoas e nuvens.» As suas pinturas «não se conseguiriam vender na rua; não correspondem ao gosto da gente comum.”

8 Mar 2023

O Traço Único do Pincel – Shitao

Tradução de Paulo Maia e Carmo

Na mais alta Antiguidade não existiam regras; a Suprema Simplicidade ainda não se divisava.
Assim que se divisa a Suprema Simplicidade, a regra estabelece-se. Em que se fundamenta a regra? A regra fundamenta-se no Traço Único do Pincel.
O Traço Único do Pincel é a origem de todas as coisas, a raiz de todos os fenómenos; a sua função é manifesta para o espírito, e escondida no homem mas o vulgo ignora-o.
É por si própria que se deve estabelecer a regra do Traço Único do Pincel.
O fundamento da regra do Traço Único do Pincel reside na ausência de regras que engendra a Regra; e a Regra que assim se obtém abraça a multiplicidade das regras.
A pintura emana do intelecto; quer se trate da beleza dos montes, rios, personagens e coisas, ou se trate da essência e do carácter dos pássaros, dos bichos, das ervas e das árvores, ou se trate das medidas e proporções dos viveiros, dos pavilhões, dos edifícios e das esplanadas, não se poderá penetrar as razões nem esgotar os aspectos variados, se no fim de contas não se possuir essa medida imensa do Traço Único do Pincel.
Por mais longe que vás, por mais alto que subas, precisas de começar por um simples passo. Também o Traço Único do Pincel abraça tudo até ao longe mais inacessível e entre dez mil milhões de acções do pincel, não existe uma em que o começo e o acabamento não residam finalmente neste Traço Único do Pincel cujo controle não pertence senão ao homem.
Por meio do Traço Único do Pincel o homem pode restituir em miniatura uma entidade maior sem que nada se perca; a partir do momento em que o espírito se forma uma visão clara, o pincel irá até à raiz das coisas.
Se se pinta com um pulso livre, as falhas de pintura seguir-se-ão; e estas falhas, por sua vez, farão com que o pulso perca todo o seu à vontade. As voltas do pincel devem ser arrebatadas por um movimento, e a untuosidade deve nascer dos movimentos circulares ao mesmo tempo reservando uma margem para o espaço. Os finais do pincel devem ser trincheiras e os ataques incisivos. É preciso ser igualmente hábil nas formas circulares ou angulares, direitas ou curvas, ascendentes e descendentes; o pincel vai à esquerda, à direita, em relevo, em vazio, brusco e decidido, interrompe-se abruptamente, alonga-se, oblíquo, tal como a água, ele desce até às profundezas tão depressa como se levanta em altura tal uma chama e tudo isso com naturalidade e sem forçar o mínimo do mundo.
Que o espírito esteja presente em todo o lado e a regra enformará tudo; que a razão penetre em todo o lado e os aspectos mais variados poderão ser expressos. Abandonando-se à vontade da mão, com um gesto, agarra-se a aparência formal tão bem como o ímpeto interior dos montes e dos rios, de personagens e objectos inanimados, de pássaros e de bichos, das ervas e das árvores, de viveiros e de pavilhões de construções e de esplanadas, pintar-se á a partir da natureza onde se sondará a significação, exprimir-se-á o carácter e reproduzir-se-á a atmosfera, revelar-se-á na sua totalidade ou sugerir-se-á elipticamente.
Mesmo quando o homem não compreender a execução, tal pintura responderá às exigências do espírito.
Porque a Suprema Simplicidade se dissolveu também a Regra do Traço Único do Pincel se estabeleceu. Descobre-se a infinidade das criaturas uma vez estabelecida esta Regra do Traço Único do Pincel. É por isso que já foi dito: “ A minha via é a da Unidade que abraça o Universal”.

8 Mar 2023

Chen Qingbo e as senhoras que esperavam a Lua

Marco Polo (c.1254-1324), regressando das suas viagens entre 1271-95, relatou no terceiro Livro da narrativa Il Milione, o incontido espanto que lhe causou o modo inesperado e admirável como as pessoas desfrutavam de um lago junto de uma metrópole que encontrou no Extremo Oriente:

«O lago está repleto de grande número de navios e barcas, pequenos e grandes, nos quais as pessoas embarcam em agradáveis passeios… Tapados por cima com cobertas sobre as quais homens de pé empurram com varas até ao fundo do lago, fazendo assim mover as barcas de onde elas estão atracadas… E não há dúvida que uma viagem nesse lago é mais repousante e deliciosa do que qualquer outra experiência no Mundo.»

Esse lugar invulgar era o Lago do Oeste (Xihu), junto de Hangzhou, uma paisagem que guarda os sepulcros de beldades como Su Xiaoxiao ou Feng Xiaoqing e foi escolhida para morada de notáveis e acarinhados poetas como Lin Bu ou Zhu Xi e até modificada por alguns deles como Bai Juyi (772-846) ou Su Shi (1037-1101) quando governaram esse território.

E, se pintores Japoneses que nunca lá estiveram, como Kano Sunraku (155-1635) ou Ike Taiga (1723-1776) refizeram o aspecto do lago, reconhecido espelho de civilização, os que lá passaram ou viveram não cessariam de figurar o lugar. Desde o tempo em que Hangzhou foi a capital do império que o seu Lago do Oeste era também um cenário de pinturas feitas para a corte, chegando a ser desde Song Di no século XI, um constante objecto de estudo, dividido em dez panoramas canónicos. E imaginando a exuberante vida que se desenrolava dentro dos palácios, alguns encenariam situações que pareciam querer dizer algo misterioso. Foi o que fez um pintor que tomou o nome de uma das três portas de Hangzhou, quando se chamava Lin’an no tempo dos Song do Sul; Fengyu (actual Yongjin) Qiantang e Qingbo.

Chen Qingbo, cuja actividade é registada entre 1210 e 1260, é referido por Xia Wenyan, no tratado de 1365 Tuhua Baojian (Precioso espelho da pintura) como um pintor que trabalhou fora da corte e que, «nascido em Qiantang, pintou muitas vezes vistas panorâmicas do Lago do Oeste». E é isso que se pode ver em Manhã de Primavera no Lago Oeste, uma pintura para leque montada como folha de álbum (25 x 26,7 cm, tinta e cor sobre seda no Museu do Palácio, em Pequim) uma sua característica representação em ziguezague, semelhante ao caracter zhi, que indica uma pertença ou algo, alguém.

Uma outra pintura também em formato de leque, mostra um encontro nocturno e tem o título No terraço do palácio ao luar (25,6 x26,7 cm, tinta e cor sobre seda, no Museu do Palácio, Pequim) nela cinco mulheres, três senhoras e duas criadas subiram a um terraço para contemplar a lua. Uma das senhoras segura uma bandeja onde estão cinco figuras cónicas, reforçando o número cinco que no Yijing corresponde a «esperar».

28 Fev 2023

Feng Yuan, o urso preto e a cor vermelha

Gu Kaizhi (c.345-c.405) será o autor de uma memorável pintura narrativa que hoje se pode observar através de uma cópia feita a tinta e cor sobre seda, que se encontra no Museu Britânico. No extenso rolo horizontal Advertências para as senhoras da corte (Nushi Zhentu, 329 x 25 cm) estão representadas situações que ilustram um texto do funcionário e poeta Zhang Hua (232-300).

A que seria a quarta cena mas que no rolo preservado é a primeira por dela faltarem as três primeiras, também consta do Livro de história dos antigos Han (Qian Hanshu, do ano 111 A.D., vol. 9) e relata um facto ocorrido no reinado do imperador Han Yuan (75-33 a.C.), que na altura tentava impor no Império a doutrina de Confúcio, mas era visto como indeciso e incapaz de pôr termo aos conflitos internos que minavam a sua administração.

Essa parábola ilustrada no rolo de Gu Kaizhi envolve a Senhora Feng Yuan (?-6 a.C.) e é descrita em quatro linhas de quatro caracteres que podem ser traduzidos:

«Quando um urso preto saltou da jaula,
Feng Yuan correu para a sua frente.
Como é que ela não teve medo?
Sabia que poderia morrer mas não se importou.»

E o que se vê figurado é só o essencial: o urso preto que se aproxima perigosamente da impassível Feng Yuan de saia rosada e de mãos postas que se interpõe entre a fera e o imperador sentado num estrado, acompanhado de outras senhoras da corte. Junto dela, dois guardas, um dos quais de traje vermelho forte, acorrem de lanças em riste e afastando-se vai a Senhora Fu, rival de Feng Yuan.

Da situação se poderia extrair uma plêiade de sentidos, como o simbolismo do urso, percebido como exemplo da audácia masculina ou mais imediatamente a coragem de Feng Yuan, consciente do seu lugar e papel na ordem social, disposta a dar a vida pelo imperador, assegurando a continuidade da harmonia sob o Céu.

Qianlong, o imperador que reconhecia o fascínio da pintura, guardaria cuidadosamente o rolo atribuído ao pintor da dinastia Jin Oriental, dentro de um estojo de brocado com uma tira beje para o título onde escreveu: «Pintura de Gu Kaizhi das Advertências às Senhoras com texto, uma verdadeira relíquia. Preciosa obra de arte do Palácio interior, classe divina.»

Mas a sua admiração ver-se-ia também no modo como, durante o seu reinado (1735-96), pintores ligados à corte recriaram a história de Feng Yuan. Numa dessas pinturas, a de Jin Tingbiao (?-1767) nota-se outra concepção do espaço; num rolo vertical a acção decorre numa linha oblíqua subindo da direita e vê-se a Senhora Feng com uma fita vermelha no cimo de escadas, único indício do palácio. Na versão de Cheng Zhidao (rolo vertical,tinta e cor sobre papel,193 x 130,8 cm, Museu de Arte de Seattle) activo entre 1726- c.1772, o palácio é figurado em pormenor, ela tem os braços bem abertos evidenciando a parte superior do vestido, toda vermelha.

13 Fev 2023

A lentidão no lago de Feng Dayou

Zhao Gou (1107-87), o imperador dos Song Gaozong (r.1127-62), abdicou em 1162, com apenas 55 anos, assumindo o título tradicional de Taishang huang, «o imenso imperador anterior» como já fizera por exemplo o seu pai, o soberano esteta Huizong, com a faculdade de influenciar o futuro exercendo poderes de forma discreta. E a partir daí dedicou-se a cultivar as artes na companhia da esposa, a imperatriz Wu (1115-97).

No retrato oficial que se encontra no Museu do Palácio Nacional em Taipé (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 185,7 x 103,5 cm), ele está sentado com uma simples veste vermelha e o barrete preto utilizado por altos funcionários dito zhanjiao putou, «barrete de chifres estendidos», com longas asas estreitas, estendidas na horizontal que podiam medir até um metro, que se diz ter sido desenhado pelo imperador Taizu (r.960-76) para que em assembleias os burocratas não pudessem dizer segredos aos ouvidos uns dos outros.

Morosos enfeites descobrem o estatuto do retratado; na esquina do espaldar da cadeira, minuciosamente esculpida uma cabeça de dragão, almofadas nas costas e nos pés finamente bordadas a ouro; e o colarinho e os punhos deixam entrever delicadas roupas interiores cor-de-rosa.

Esse jogo de revelar, escondendo, notar-se-á na popularidade que então alcança o uso de leques, em particular o leque rígido circular tuanshan, dito em forma de lua com um pequeno pau para o segurar. Usado de modo expressivo no ritual do casamento, quando a noiva esconde o rosto atrás do leque queshan, aprofundando o mistério, a timidez e exorcisando espíritos malignos, só se destapando quando o noivo a impressiona, escrevendo ou lendo um poema, por exemplo. Na dinastia Song torna-se comum os literatos escreverem poemas e pinturas nesses leques, trocando-os como presentes.

Feng Dayou (1130-69), um pintor de Suzhou, colaboraria com o imperador Gaozong fazendo uma pintura num leque em que o observador se sentirá imerso na minuciosa lentidão da vida de plantas e animais de um lago.

Em Lago Taiye com lótus, que se apresenta como uma folha de álbum (tinta e cor sobre seda,23,8 x 25,1 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé), o pintor representou uma visão consoladora com três pares de patos, símbolos da união do casal; borboletas, as graças do romance mas sobretudo a pintura é um panorama cheio de flores de lótus, as bênçãos da paternidade numerosa, alternando brancas e cor-de-rosa, algumas ainda em botão, embaladas no vento suave onde voa uma andorinha.

O imperador reforça essa impressão de prenúncio do advento da estação mais fria, escrevendo na sua caligrafia um poema de Wang Ya (764-835) Pensamento numa noite de Outono, do outro lado do leque. O nome do lago – Taiye, «a grande piscina líquida», refere um venerável lugar do passado que servirá de referência simbólica em futuras edificações de jardins.

31 Jan 2023

Cao Zhibai – A neve, o céu sombrio e os pinheiros irmãos

Huang Gongwang (1269-1354), o pintor literato da dinastia Yuan, ao criar o extraordinário rolo de pintura horizontal conhecido como Retiro nas montanhas Fuchun alcançou numa síntese de opostos, uma inesperada, intemporal e dinâmica harmonia que resultando do encontro com a natureza, é uma outra compreensão da existência.

Nessa pintura, hoje dividida em duas partes, a mais longa designada como Rolo do mestre Wuyong, no Museu do Palácio Nacional em Taipé (tinta sobre papel, 33 x 636,9 cm) ele escreveu que fez o aspecto geral da pintura numa única ocasião e depois foi realizando os detalhes do cenário ao longo de três ou quatro anos, numa engenhosa manipulação do tempo. No que é apenas um de muitos outros opostos.

Como o próprio tema da pintura que pode ser entendido como um elogio ao destinatário, comparado aos nobres reclusos da antiguidade, que porém nem sequer estão figurados no rolo. Dir-se-ia que o próprio ambiente em que se movimentavam os literatos daquele tempo e lugar a Sul do delta do rio Changjiang provocava essa resposta, ancorada numa longa tradição.

Um pintor literato poderia, por exemplo, numa conhecida proposição de Laozi; Zhiqibai, shouqihei, que se pode ler como; «Conhece a claridade (branco) mas guarda a obscuridade (o negro)» perceber um guia do seu processo.

Um outro pintor dessa área florescente e em cujo nome estavam os mesmos caracteres zhi e bai exemplificaria de maneira original essa síntese de opostos. Cao Zhibai (1272-1355), o pintor de Huating (actual Xangai, Jiangsu), fez-se notar no modo como representou paisagens de neve, como as duas pinturas que estão no Museu do Palácio em Taipé, Neve nas montanhas (rolo vertical, tinta sobre seda, 97,1 x 55,3 cm) ou Picos de montanhas clareando depois da neve (rolo vertical, tinta sobre seda, 129,7 x 56,4 cm), onde a alvura da neve sobressai mas não cancela a obscuridade do céu.

Cao Zhibai, que também usou o nome Yunxi, «a nuvem Ocidental», participou das tradições de amizade e cortesia entre literatos, que trocavam pinturas e poemas como forma de mútuo reconhecimento. Na pintura feita no dia 6 de Fevereiro de 1329, dedicada ao seu amigo de origem khitan (qidan) Shimo Boshan (1281-1347), «como materialização da nossa mútua amizade», representa dois pinheiros irmanados no seu crescimento conjunto.

Nesses Pinheiros gémeos (rolo vertical, tinta sobre seda, 132,1 x 57,4 cm, no mesmo Museu de Taipé) através da sucessiva diminuição da dimensão das árvores, mostra a distância em profundidade (shenyuan) reforçando o simbolismo das duas árvores que resistem verdes aos tempos mais severos. Na folha de álbum Verdejante no frio do anoitecer (tinta sobre seda, 21,1 x 2,2 cm, no Museu de Xangai) uma estranha árvore sem folhas dobra-se diante do homem que viaja numa embarcação, como que saudando quem vem ao seu encontro.

19 Jan 2023

Os Lotos Adormecidos de Sun Junze

Xia Gui (1195-1224), o pintor profissional dos Song do Sul em Qiantang (actual Hangzhou), que não deixou uma obra teórica e que seria alvo de um preconceito na posterior valorização da pintura como uma arte de «amadores esclarecidos», seria no entanto autor de impressivas pinturas apreciadas mesmo por aqueles que o desvalorizaram.

As suas pinceladas largas, que parecem «rugas talhadas com um machado» (fupi cun), são acompanhadas da progressiva diluição da tinta, produzindo uma impressão que se assemelha a paisagens reais, nomeadamente a do Lago do Oeste de Hangzhou. Nas evocativas pinceladas que manipulam a textura da representação, tornando-a gradualmente recessiva e fazendo visível a neblina, dir-se-ia que descrevem formas em risco de desaparecer, passando a memórias de formas. O poeta Su Dongpo (1037-1101) aludiria a esse carácter fugídio da pintura:

«São como nuvens e nevoeiros passando diante de meus olhos, ou a canção de pássaros alcançando os meus ouvidos. Que posso eu senão receber alegria ao meu contacto com estas realidades? Mas quando elas não estão, não penso mais nelas. Assim estas duas coisas, pintura e caligrafia são para mim um constante prazer, nunca uma aflição.»

Visitantes estrangeiros de Hangzhou reconheceriam o cenário a partir de pinturas, como o pintor Japonês sacerdote do Budismo chan, Sesshu Toyo (c. 1420-1506) que nelas percebeu uma maneira de expôr visualmente o conceito mono no aware, a empatia ou sensibilidade para com as coisas do mundo que passa. Mas o próprio lugar continuou depois de Xia Gui, a despertar essa sensibilidade noutros pintores menos conhecidos de Hangzhou.

Sun Junze, profissional activo em Hangzhou na primeira parte do século XIV, na dinastia Yuan quando a maioria dos pintores já abandonara o estilo da academia da antiga capital, utilizou a expressividade das pinturas de Xia Gui de um modo que pareceu agradar sobremaneira a coleccionadores do Japão, onde hoje se encontra uma parte substancial das poucas pinturas que hoje se conhecem do autor.

É o caso das que estão no Museu Nacional de Tóquio, Paisagem de neve (rolo vertical, tinta sobre seda, 126 x 56,5 cm) ou Paisagem (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 102,5 x 83 cm). Nelas se notará a composição concentrada num canto da pintura, o que alguns interpretaram como característica simbólica da diminuição do território nacional ou a minúcia com que são tratados os edifícios e personagens em seu redor.

Como também acontece na Paisagem com edifícios (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 187,9 x 112 cm) no Museu de Arte da Universidade de Berkeley, Califórnia. Nela, observam-se sobre o rio uma quantidade de lírios de água em flor chamados shuilian, «lotos adormecidos» que por só florirem nessa altura e durante o dia, indicam a brevidade e a passagem do tempo, a estação do ano, o Verão.

5 Jan 2023

O Manual do Estúdio Dos Dez Bambus de Hu Zhengyuan 胡正言

Lu Liuliang (1629-1683), o escritor e poeta que se opôs de modo radical à transição dos Ming para a dinastia Qing, resumiu essa recusa em dois versos que de modo engenhoso jogam com as possibilidades da língua:

«O vento fraco, por mais suave,
não soprará sobre mim,
A lua brilhante não cessará de lançar
a sua luz sobre nós.»

No «vento fraco», qingfeng, está o caracter qing que dá nome à nova dinastia; na «lua brilhante», mingyue, o caracter ming da única dinastia que reconhecia como legítima. Mas a mudança foi inexorável e, perante os factos, Lu, cuja avó pertencera à família imperial dos Ming, recusou servir a burocracia governamental, fez erigir longe de sua casa o mosteiro budista do Vento e da Chuva (Fengyu ba) tomou o nome Naike, «resistir é possível», e como já escrevera um livro sobre medicina (Lushi Yiguan) viveu também da medicina, até 1674.

Porque em 1673 abrira uma livraria em Nanquim onde vendeu esse e outros livros que escrevera, como os dedicados aos ensaios designados «oito pernas» (baguwen). Em Nanquim coincidiu durante um ano com outro editor e artista chamado Hu Zhengyan (c.1584-1674) cujo pai e irmão também se dedicaram à medicina e que também ele rejeitara reconhecer aos novos governantes o Mandato celeste.

Hu fora um reputado criador de carimbos e em 1644, durante o ano de resistência Ming em Nanquim, desenhara o carimbo pessoal de Zhu Yousong (1607-46), o imperador Hongguang, «A grande luz». Zhou Lianggong (1612-72) anotaria a popularidade de Hu Zhengyan entre os visitantes de Nanquim, onde ele «criava miniaturas de pedras gravadas com inscrições de antigos carimbos para os viajantes disputarem e estimarem.» Uma ousada publicação, entre 1633-1703, para a qual ele convocara mais de cem artistas, tornaria inesquecível o nome do seu estúdio, em frente do qual cresciam dez bambus.

Hu Zhengyan nomeou o seu inédito álbum de cento e oitenta e cinco impressões à mão em xilografia polícroma Shizhuzhai Shuhuapu, Manual de pintura e caligrafia do Estúdio dos dez bambus (tinta e cor sobre papel, cada folha, c. 24,1 x 27,5 cm, exemplares visíveis em vários museus, como o Britânico, o Huntington ou o Metmuseum) e cento e trinta e nove páginas de poesia. As impressões que reproduzem pinturas mostram oito exemplos de figuras do mundo natural como orquídeas, bambus, ameixieiras, pássaros ou rochas de literatos (gongshi).

Sendo os blocos de madeira aplicados um por um em sobreposição de tons de cor, o seu aspecto assemelha-se ao de uma verdadeira aguarela. Assim, com o contributo de pintores, calígrafos, entalhadores de madeira e impressores, Hu Zhengyan multiplicando símiles de pinturas ao lado de poemas, tornando-as acessíveis a uma larga audiência, foi fiel aos valores que a dinastia Ming recebera e que ele não queria perder; a sua forma ímpar de expressão do espírito.

21 Dez 2022

Os Grous de Bian Jingzhao

Lu Yan, o lendário erudito e poeta, conhecido entre daoístas e na cultura secular como Lu Dongbin, um dos Oito imortais, é o protagonista de incontáveis histórias que tantas vezes roçam o assombro. Uma delas refere um certo dia em que entrou numa estalagem, bebeu quanto quis mas ao sair não pagou e em vez disso, pintou na parede do estabelecimento dois grous.

A pintura atraía muitos clientes e um deles, por admiração ao pintor quis pagar a dívida de Lu Dongbin, quando o fez, porém, os grous soltaram-se da parede e voaram para não mais serem vistos. Os grous, aliás, estão sempre próximos dos Oito imortais com quem partilham a imortalidade, como se pode ver na representação de He Xiangu, a única mulher do grupo dos Oito, no álbum feito por Zhang Lu (1464-1538) que está no Museu de Xangai (tinta e cor sobre papel salpicado de ouro, 31,6 x 59,3 cm), onde ela vai levada no dorso de um desses pássaros.

O avistamento de uma dessas aves mereceria uma comemoração. Num célebre rolo horizontal (tinta e cor sobre seda, no Museu Provincial de Liaoning) o imperador Huizong (1082-1135) guardou uma dessas visões inesquecíveis, quando vinte grous surgiram voando no azul do céu sobre os telhados do palácio imperial, no do dia vinte e seis de Fevereiro do ano de 1112, como ele mesmo escreve. E um poema acompanha a pintura:

«No puro amanhecer
grous de múltiplas tonalidades
acariciam os beirais dos telhados,
Os pássaros imortais, proclamando bons auspícios,
chegam de súbito numa atitude favorável.
Flutuando ao acaso, os habitantes originais
das três ilhas eternas afluem aos pares
exibindo as suas formas milenares.
Parecem espelhar o luan azul
que fez o ninho no alto
dos preciosos pavilhões.
Será que estes são os gansos vermelhos
que se reuniam no Lago celeste?
Demoram-se, chamam e gritam
no Palácio púrpura,
Fazem-se notar até entre
a sempre ocupada gente comum.»

Bian Jingzhao (1354-1428), também conhecido como Bian Wenjin, pintor da corte de Yongle e Xuande daria continuidade à representação das aves acarinhadas por Huizong, que as recriou noutras pinturas, mostrando-as em poses diversas. Nessa altura esses pássaros já se tinham tornado uma presença familiar nos jardins imperiais e nos retiros elegantes dos letrados. Certas qualidades dos grous como a longa vida ou a lealdade, por acasalarem com um só parceiro para a vida, faziam deles um desejado augúrio de mensagens políticas positivas.

Nos dois rolos verticais que estão no Museu do Palácio Nacional em Pequim, Bian juntou bambus e grous para duplicar o simbolismo através de um meticuloso realismo. Como em Dupla claridade (Shuangqing, tinta e cor sobre papel, 109 x 44,6 cm) feito com o mestre da pintura de bambus, Wang Fu (1362-1416). Sofisticados destinatários dessas pinturas sabiam que os grous de Bian Jingzhao eram auspiciosos, sem precisarem de os ver a voar.

15 Dez 2022

Os desterrados de Cai Jia

Zhong Kui, o terrível sufocador de demónios que transita entre a cultura erudita e popular como protector contra o mal, foi sendo sempre representado em pinturas com a sua temível expressão furiosa de olhos protuberantes. No século dezoito nota-se uma intrigante representação da mítica figura, olhando a sua estranha face num espelho. Os espelhos apareciam em muitas pinturas desde a dinastia Song, mas caracterizando a compreensão do lugar da mulher no gineceu: o reconhecimento da beleza e elegância feminina que em excesso revela a vaidade ou apenas a nostálgica percepção da passagem do tempo.
Na história da pintura, pessoas mirando-se ao espelho podem ver-se logo no memorável rolo de Gu Kaizhi (345-406) Advertências da instructora da corte para as senhoras do palácio, que na sua sexta cena é acompanhada das palavras: «Todos sabem como embelezar as suas faces, ninguém sabe como adornar o carácter.» Algo dessa ideia da moldagem do carácter poderá passar para o retrato de Zhong Kui olhando a sua face num espelho. Numa pintura de Cai Jia (1680-1760) que está no Museu de Arte de Santa Bárbara (Califórnia), feita na horizontal mas que se apresenta montada num rolo vertical (tinta e cor sobre papel, 88,9 x 121,9 cm), ele está sentado numa embarcação, a sua cabaça de viajante pendurada negligentemente num mastro evocando o seu trágico destino de condenado à errancia e à sua frente numa jarra, um arranjo de flores, símbolizando empenho na educação, evoca o seu passado de estudante diligente.
Olhando as suas feições grotescas, motivo da sua condenação, o guardião da paz contra demónios inquietantes não parece incomodado. Na sua figura duplicada de cruzador de fronteiras entre o mundo dos vivos e o dos condenados, entre o fantástico popular e a literatura erudita interroga-se um obscuro desígnio na confrontação com o mal.
Cai Jia teve uma formação inicial de ourives, tendo vindo para a grande metrópole de Yangzhou para se dedicar à pintura como pintor profissional sendo por vezes associado ao grupo dos chamados «Oito excêntricos» (Yangzhou baguai) que se distinguia pela sua originalidade e liberdade de atravessar limites entre a pintura dos amadores e dos profissionais. No rolo vertical Visitando um eremita nas montanhas do Outono (tinta e cor sobre papel, 110,8 x 38,8 cm, no Museu de Arte de Indianapolis), ele figura essa ultrapassagem de limites reflectindo sobre a concepção budista do «eu vazio», silencioso e condicionado pelas forças externas do mundo em redor, tal como se pode ler em poemas de Wang Wei (701-761) escrevendo: «A montanha vazia está cheia de árvores, tocada por uma gloriosa luz que vem de longe. Os eremitas encontram-se face a face, esquecendo os problemas mundanos. Agora mesmo se tivessemos a fermentação de xingfeng, soltaríamos um longo grito e completamente ébrios, regressariamos a casa.»

10 Nov 2022

Versos de Du Fu na paisagem desolada de Luo Mu

Du Fu (712-770), o poeta que viveu a itinerância tantas vezes como um descontentamento, encontrou em tudo ocasiões para celebrar o deslumbramento. Uma delas ficou guardada num poema feito diante de uma pintura e que refere o nome de uma divindidade a que se deu o nome Xianwu, o «Obscuro guerreiro misterioso». No poema intitulado «Na parede dos aposentos do mestre do chan do templo de Xianwu», o poeta está diante de uma obra feita por um dos pintores mais reverenciados entre os que estão na origem da arte da pintura executada sobre rolos portáteis, o já então lendário Gu Kaizhi (c.345-c.406). E o templo de Xianwu nas montanhas Wudang (Hebei) foi o lugar escolhido para evocar uma outra figura lendária, associada a uma conversa que aconteceu no decurso de um passeio e tão entretida que ignorou uma ravina infestada de tigres, cuja história é conhecida como «as três gargalhadas», o monge Huiyuan (334-416):

«Quando é que o audacioso Gu Kaizhi
colocou aqui esta obra?
A parede está toda repleta de pinturas
do paraíso da montanha utópica Yingzhou.
Vapores quentes exalam
das rochas sob o sol inclemente,
Sobre as correntes de lagos
e rios, o céu azul.
Um monge mendicante voa
na bengala de latão perto dos grous,
Outro, cruza a água na taça de madeira
sem alarmar as gaivotas.
Parece que estou diante
de um caminho para o Monte Lu,
Ou estou na verdade vadiando
com o monge Huiyuan?»

Não foi a única ocasião em que o olhar do poeta se fixou diante de uma pintura, iluminando-a. Uma relação dinâmica entre o poeta e os pintores que se prolongou. Na dinastia Qing, um pintor de Ningdu (Jiangxi) mas que viveria quase sempre na capital da Província, Nanchang, lembrá-lo-ia numa estrofe extraída desse poema.
Luo Mu (1622-1706) escreveu na pintura de 1685, Paisagem com árvores e rochas (rolo vertical, tinta sobre papel, 175,2 x 73,6 cm, no Museu Ashmolean da Universidade de Oxford) os dois versos de Du Fu que aludem aos «Vapores quentes exalam das rochas sob o sol inclemente,/ Sobre as correntes de lagos e rios, o céu azul», numa escolha que exclui todas as circunstâncias do poema e contrasta de modo complementar com o carácter abstracto da pintura, que se concretiza nos poucos elementos descritos no título, criando uma nova cadeia de sentidos. No longo rolo horizontal de pintura de 1661, que lhe é atribuído no Metmuseum, Paisagem de rio no Outono (tinta sobre papel, 32,7 x 665,5 cm) essa sobriedade é reforçada pela figuração de um panorama ribeirinho em que a presença humana está apenas indiciada através das casas de telhados de colmo onde se não vêem pessoas, à excepção de um pescador com o seu chapéu largo. Um cenário onde o olhar do observador, tocado pelas palavras de Du Fu, podia habitar; quem sabe se o pescador não era Huiyuan, alguém com quem iniciar uma conversa que termina numa gargalhada?

4 Nov 2022

A Paisagem Ressonante de Ma Wan

Yang Weizhen (1296-1370) dedicaria a sua vida às palavras que escreveu muitas vezes como uma homenagem ao cenário da área de Jiangnan, porém não seriam só as palavras enformadas pela nostalgia, que o haveriam de recordar após a sua eloquente passagem por essa paisagem. Song Lian (1310-81) um ministro e conselheiro de Taizu, o fundador da dinastia Ming, recordou-o na «Inscrição para o mestre Yang, o falecido supervisor da erudição confuciana em Jiangxi»: «A meio da dinastia Yuan um grande mestre da literatura surgiu na área de Zhejiang e ele era o mestre Tieyai.
A sua voz ressonante e o seu brilho luzente subiram ao alto e penetraram no céu. Jovens de Wu e Yue aproximavam-se dele em grande número, do mesmo modo que as montanhas prestam homenagem ao Monte Tai e todos os rios fluem para o mar. Uma situação que só terminou ao fim de mais de quarenta anos.» O sobrenome Tieyai «Penhasco de ferro» com que foi conhecido resulta de um episódio biográfico: o seu pai Yang Hong, vendo que ele não estudava, mandou encerrá-lo numa torre no cimo da colina do mesmo nome onde durante cinco anos viveu isolado a estudar os clássicos.
Quando fez o exame jinshi em 1327 provou como os conhecia, em particular os Anais das Primaveras e Outonos (Chunqiu) e os seus comentários. E apesar de ter exercido funções oficiais em Tiantai ou Qianqing (perto da actual Shaoxing) a sua vocação cumpriu-se na área da literatura. Song Lian: «Com um turbante de Huayang e um casaco de penas, Yang partia num barco-casa na Piscina do dragão ao longo da ilha da Fénix, segurando a fauta de ferro a seu lado e quando a tocava, o som subia a pique, penetrando as nuvens. Os que observavam suspeitavam estar perante um imortal exilado.» Ver-se-ia em pinturas a tradução visual do som da flauta de Yang.
Ma Wan (c.1310-78) o poeta e pintor da actual Nanquim, que terá aprendido a arte com Yang Weizhen, pintou paisagens que respondiam a essa animação dos sentidos em Jiangnan. Em Paisagem de Primavera (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 83,2 x 27,5 cm, no Smithonian) que lhe é atribuída, nota-se a caligrafia de Tieyai, celebrando a alegria de navegar no rio Changjiang. Dois eruditos a cavalo prestes a passar uma ponte de madeira ecoam dois barcos no meio do rio.
Em Intenção poética de nuvens ao entardecer (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 95,6 x 56,3 cm, no Museu de Xangai) quase se pode escutar a flauta de Yang. Song Lian: «Com a idade ele foi-se tornando cada vez mais descomedido. Construiu um jardim isolado e um «terraço de Penglai» a norte do rio Song e não passava um dia que não recebesse convidados e ficasse profundamente embriagado. Depois ordenava cantoras que cantassem a «Neve branca» acompanhando-as na pipa de fénix. Alguns convidados dançavam rodopiando livre e graciosamente. Parecia mesmo o porte dos nobres da dinastia Jin.»

26 Out 2022

Zhang Wo dançando com a sua sombra

Su Dongpo (1037-1101), que viveu dolorosamente o exílio, escreveu um célebre poema recordado no Festival do Meio-Outono, e conhecido como «Prelúdio à melodia da água» (Xuidiao getou) onde constam os versos que sublinham a saudade e alertam para os perigos do isolamento:

Como gostaria de voltar cavalgando o vento,
Mas receio o Palácio de cristal
e a Torre de jade lá no alto
onde poderei não conseguir suportar o frio.
Levanto-me e danço com a minha sombra clara:
ainda estou no Mundo dos homens?

O exílio poderia ser entendido como a condição do poeta como a viveu Qu Yuan (339-298 a.C) e identificou no Li Sao, Encontrando a tristeza, que consta da antologia Chu ci, as Elegias de Chu. A figura do poeta unia-se assim aos versos de origem xamânica, escritos para serem cantados em forma de antífonas no decurso de cerimónias rituais e, fazendo uma ponte para o mundo dos seres sobrenaturais, facilitavam a transmissão de objectivos morais, métodos estilísticos do passado e à exposição expressiva do trabalho do pincel.
Foi o que na dinastia Yuan um pintor literato de Hangzhou chamado 張渥 Zhang Wo (activo entre 1336-64) fez e mostrou no rolo horizontal Nove Cantos (Jiu ge) de que existem três versões. Duas de 1346, uma no Museu de Xangai, outra no Museu Provincial de Jilin (tinta sobre papel, 29 x 523,5 cm). Outra de 1361 está no Museu de Arte de Cleveland (tinta sobre papel, 28 x 438,2 cm) contendo o texto original na caligrafia de Chu Huan (activo 1361- c.1450), que acompanha as onze representações.
Entre elas, uma das mais antigas figurações do poeta Qu Yuan e mais dez seres imortais que constam das Elegias. Executadas sem cor ou diluição de tinta (baimiao) mostram, no esplendor das suas linhas claras e ondulantes, a cadência do movimento de ondas e nuvens, particularmente nas etéreas figuras dos dois poemas mais conhecidos, dedicados à Divindade e à Dama do rio Xiang.
Zhang Wo recriou nessa pintura um tema e um método já usado por Li Gonglin (1049-1106), que aperfeiçoou e que vinha já do pioneiro Gu Kaizhi (345-406) e do seu rolo Ninfa do rio Luo, que também se apoiava num poema narrativo de Cao Zhi (192-232), que descreve encontros e desencontros com uma ninfa desse rio cujo original se perdera, mas fora recriado várias vezes durante a dinastia Song. Um género de pintura em que os seus amigos literatos gostavam de se rever.
Da biografia de Zhang Wo consta uma breve carreira de funcionário imperial, abandonada por desencorajamento ou perseguição baseada em preconceitos regionalistas. Mas desde que abandonara a burocracia, encontrara o mecenas Gu Ying (ou Gu Dehui, 1310-69) que lhe proporcionou a possibilidade de viver da arte da pintura. Achará nela um lugar de exílio oposto ao destino funesto de Qu Yuan. Como escrevera Su Dongpo: «Se o meu coração encontra aqui a paz, aqui será a minha aldeia natal.»

18 Out 2022

Wang Jun e as Pedras de Sonho

Ruan Yuan (1764-1849) cumprindo as suas funções de funcionário imperial iria desde a sua terra natal de Yizheng perto da grande cidade de Yangzhou (Jiangsu) até às mais díspares regiões, algumas tocando as fronteiras do Império Qing, criando no espaço e no tempo uma intrigante figura luzente. Desenhada a partir das suas origens humildes ao Grande Secretariado em Pequim, escorada na convicção confuciana do homem justo e da sua virtude, também vislumbrou o indizível da arte.

Governador da Província de Guandong entre 1817 e 1826 tomou acções decisivas no combate ao comércio do ópio tendo estendido a sua acção até Macau onde, em 1821, terá ordenado a prisão de vários traficantes. Mas a sua curiosidade estendeu-se aos conhecimentos dos estrangeiros, ao publicar um estudo biográfico sobre astrónomos e matemáticos da dinastia que incluiu trinta e sete missionários Europeus que viveram no Império e escreveram sobre o assunto.

Em 1820 em Cantão, fundou a notória Academia do Oceano da Erudição (Xuehai Tang). O pintor Wang Jun (1816- depois de 1883) interrogou o seu enigma vital nos locais por onde ele caminhou. No álbum Legado dos feitos de Ruan Yuan em dez cenários pintados (tinta e cor sobre papel, 27,9 x 33,7 cm, no Metmuseum) escreveu na última folha: «No meio do Inverno de 1883 o neto do mestre, Jingcen, trouxe-me um álbum para pintar, assim reuni passagens das “Notas do barco de um imortal” (Yingzhou Bitan) que ele compilou e que poderiam ser representadas em pinturas e apresentei-as nas páginas precedentes para sua instrução.» Essas passagens referem lugares como a Torre Wenxuan onde «o mestre não apenas erigiu uma torre a Oeste do templo da sua família, exclusivamente para guardar os seus livros mas também escreveu um ensaio sobre ela.»

Wang Jun referia assim o apego de Ruan Yuan aos livros, sendo inéditas as bibliotecas que ele promoveu bem como as reuniões de objectos artísticos que prolongavam a sua colecção pessoal e que foram pioneiras da ideia de um «museu» em templos célebres. Deles faziam parte as «pedras de pintura» (huashi) ou «pedras de sonho» (mengshi) da montanha Cangshan, na área de Dali, que ele coleccionava desde que fora governador de Yunnan (1826-35).

Nessas pedras cortadas em fatias, conservando os veios, o observador podia recriar na sua imaginação o aspecto de uma paisagem e escrever na margem uma anotação. Num rolo vertical (tinta sobre papel salpicado de ouro, 164,5 x 40,7 cm, no Smithonian) ele caligrafou um poema evocando Su Shi, que começa: «Pedras de pintura de Taicang assemelham-se a multidões de nuvens,/ O engenho humano não alcançaria a majestade da arte do Céu./

As caravanas de flores e pedras terminaram e o rio Bian congelou,/ O estúdio do Lago de neve foi destruído, as nuvens escureceram, o mestre Su há muito partiu e a sua pedra também.»

6 Out 2022

Retratos Que Gu Jianlong Fez na Horizontal e na Vertical

«Os lotos murchos, as pétalas dobrando-se para se proteger da chuva,/ Os crisântemos despidos ainda orgulhosos nos seus ramos estendidos atravessando a geada./ Há que lembrar que este é o tempo oportuno para a paisagem ser observada,/ Se as laranjas estão amarelas e os cunquates verdes, é esta a estação adequada.»

Wu Weye (1609-72) o poeta, pintor e literato atento e celebrado que viveu num desconfortável tempo de desencontros foi representado na pose habitual dos retratos de ancestrais, sentado de face virada para a frente como se olhando o tempo que passou e o que virá. Observando o rolo vertical (tinta e cor sobre seda, 149,7 x 89,8 cm, no Museu de Nanquim) como que se pressente a verdade sobre os seus arrependimentos no olhar desolado, debaixo da cabeça coberta com um tradicional barrete de tecido preto do tipo fujin, que já se usava na dinastia Han. E que contrasta com as vestes claras acinzentadas, mais escuras perto dos pés, calçados de vermelho tal como a espécie de almofada confortável que cobre a inesperada cadeira grosseira onde está sentado, construída com ramos nodosos de madeira não tratada. Uma peça de mobiliário cujo significado foi evoluindo em pinturas, desde iconografia característica de personalidades budistas até caracterizar agora a elegância espiritual de personalidades cultas. Que se reconheciam em palavras do Daodejing: «Bloqueia as aberturas, fecha as portas, amacia as arestas, desfaz os nós, abranda o teu olhar; deixa que as tuas rodas se movam apenas em antigos sulcos. Isto é conhecido como a misteriosa paridade.» (Cap.56) O autor da pintura, que em algum momento certamente se espelhou no olhar humilde do retratado, era um pintor de Suzhou chamado Gu Jianlong (1606-depois de 1687) que se relacionou com essas distintas figuras de literatos tendo acompanhado o poeta Qian Qianyi (1582-1644) a Pequim onde esteve nos anos de 1660-70 e realizou pinturas e retratos nos mais diversos estilos para outras relevantes personalidades da corte e da cultura, afirmando a sua vocação de apreender o olhar do outro. No retrato horizontal de Wang Shimin (1592-1680) que está no Instituto de Arte de Minneapolis (rolo, tinta e cor sobre seda,35,2 x 119,7 cm) ele moldaria o conteúdo da representação ao formato do suporte.

Gu Jianlong faz nessa pintura um retrato que é a detalhada descrição da morada organizada de um homem de letras, que se vê no centro na única divisão que abre para a rua, numa pose descontraída de perna traçada. Está rodeado de álbuns perfeitamente arrumados dispostos sobre mesas e armários. Separados dele, em corredores, quartos e outras divisões da mansão aninhada entre nevoeiros e árvores, como pinheiros, salgueiros e canas de bambu, encontram-se mulheres, criados e até crianças. Num desses quartos, o mais sumptuoso, diante de um tieluo está na sua pose digna, a esposa do pintor e numa janela velada ao seu lado, percebe-se ainda uma outra senhora. É um retrato da vida habitual muito diferente do de 1616, que o mostra isolado, feito por Zeng Jing (1564-1647) quando Wang Shimin tinha pouco mais de vinte anos e que o mostra sério, concentrado no futuro.

8 Ago 2022

Como Li Song Viu a Onda Sob o Luar

«Montanhas verdes atrás de montanhas, mansões atrás de mansões,/ Quando terminarão as canções e as danças no Lago do Oeste?/ Um vento quente aquece os visitantes, tornando-os desnorteados,/ Parece que a justa Hangzhou se vai assemelhando à velha capital, Bianzhou.»

Su Shi (1036-1101) preservou em emocionantes poemas a árdua experiência de estar no meio de tempestades embarcado no meio de um rio. Quando em 1082 escreveu as suas reflexões sobre o passado e as guerras no Penhasco Vermelho (Qianchibi fu) após uma viagem com amigos no rio Changjiang, foi esta situação que o poeta descreveu como «pairávamos livres como se tivéssemos deixado o mundo para trás, nos tivessem nascido asas e voássemos como os imortais», que se tornou de tal modo visual que os pintores repetidamente a evocariam. Como no caso de uma notável pintura feita alguns anos após a morte do poeta e que o mostra nessa embarcação com amigos no meio das ondas e rochedos sem margens e, o único vestido de vermelho é o poeta que volta a cabeça para um penhasco. Essa memória visual (folha de álbum montada como rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 24,7 x26,3 cm, no Museu Nelson-Atkins) é atribuída a um pintor de Hangzhou, que estava ao serviço da corte, num tempo em que era fluida a fronteira entre os pintores literatos e académicos, e se notabilizaria por ilustrações da irrupção do incomum no habitual da vida quotidiana, chamado Li Song (1166-1243). Existiria uma afinidade do pintor com o poeta atento às mudanças e que anotava as permanências, como ele escreve no poema da Lua do meio-Outono (…) «A Via Láctea está silenciosa, volto-me para o prato de jade,/ O bem desta vida não durará muito tempo./ No próximo ano onde observarei a lua brilhando?» Essa mesma velha lua do meio-Outono cuja claridade na disponibilidade da noite, permite reconhecer os amigos foi observada por Li Song através de um espantoso fenómeno natural que ocorre anualmente perto de Hangzhou. Em Observando a onda numa noite de luar (folha de álbum, tinta e cor sobre seda, 22,3 x 22 cm, no Museu do Palácio em Taipé) o pintor alcança uma memorável síntese poética.

Li Song dispôs os poucos elementos da sua pintura num cuidadoso equilíbrio. Uma mansão construída à beira das águas colocada entre duas árvores nuas, com um pátio onde estão rochas e pinheiros, dentro da casa pequenas personagens deixadas em branco, parecem fantasmas, como se adquirindo a cor da lua, que na pintura tem uma coloração que dir-se-ia humana. Só algumas estão na varanda a assistir a essa violenta maré que empurra as águas do rio Qiantang no equinócio do Outono, fazendo-as correr ao contrário e é um acontecimento raro no mundo (no Brasil designado pororoca) e é o que ocupa o centro da pintura. Está alinhada debaixo da lua e de uma inscrição que refere que é preciso abrir a porta e «observar a onda nocturna sob o luar» e é acompanhada pelo vistoso carimbo da Senhora Gongsheng (1162-1233) a imperatriz Yang dos Song, que nas suas três linhas cortadas é o trigrama kun, da terra, o receptivo, que dialoga com a onda dita localmente do «dragão de prata», yinlong.

1 Ago 2022