Paulo Maia e Carmo Via do MeioWang Qihan e o Literato Que Limpava os Ouvidos Cai Yong (132-192) o erudito calígrafo e entendido na música do qin, certo dia foi convidado para o serão em casa de um amigo que o quis obsequiar povoando o ambiente sonoro com uma melodia suave, para o que dispôs um músico tocando o qin discretamente atrás de um biombo. Subitamente porém Cai Yong levantou-se e saiu exasperado. Quando o anfitrião perplexo quis saber a razão de tal procedimento, a resposta terá sido ainda mais assombrosa; o ilustre convidado alegou que notara na música que escutava um «sentimento assassino». Procurando uma explicação, o anfitrião interrogou o músico. Este, revendo as ideias e os sentimentos que lhe atravessaram o espírito enquanto tocava, lembrou-se que estava observando os movimentos de um louva-a-deus que se aproximava de uma cigarra, cujo chilrear o incomodava e como desejava que o primeiro acabasse com o ruído da outra. Ao ouvir a explicação, Cai Yong respondeu bem-humorado: «Ah, então foi isso.» A anedota, contada para enaltecer a fina sensibilidade do erudito da dinastia Han Oriental, coloca também em evidência o biombo, essa peça de mobiliário que serve para separar mas também para capturar anonimamente os mais escondidos segredos, os mais leves sussurros e ardis. Na dinastia Tang do Sul (937-960) pintores como Zhou Wenju ou Gu Hongzhong usaram em pinturas esse dispositivo referido comummente como pingfeng, «guarda-ventos», para encenar visualmente vias para descobrir e encobrir verdades. Outro caso exemplar foi imaginado pelo pintor da actual Nanquim, Wang Qihan (act. c. 950-75). Numa pintura conhecida pelo gesto inesperadamente privado da sua figura principal que, diante de três biombos, levanta a mão direita para limpar o ouvido, o imperador Song Huizong (1082-1135) que foi uma das eminentes personalidades que a possuiram, escreveu na margem direita da representação, na sua distinta e elegante caligrafia designada shoujin duas palavras, Kanshu, Examinando livros, que passaria a ser o seu nome formal. Wang Qihan, que no catálogo de pinturas Xuanhe huapu (1120) do tempo de Huizong, é referido no capítulo IV como pintor de temas budistas e daoístas, de que será exemplo a obra que lhe é atribuída de um Imortal (presumivelmente Lu Dongbin) montado num dragão (folha de álbum, tinta e cor sobre seda, 40 x 37,5 cm, na Galeria de arte da Universidade de Yale) seria porém objecto de uma persistente admiração devida à figuração de um gesto íntimo. Examinando livros, rolo horizontal guardado na Biblioteca da Universidade de Nanquim (Kanshu tu, tinta e cor sobre seda, 284 x 65,7 cm) mostra uma cena dominada por três biombos pintados com paisagens harmoniosas, em frente deles, uma cama e em cima dela, um qin. À direita, diante de uma mesa com livros o literato repousa descalço, o dedo no ouvido, confiante, numa manifestação da sua longanimidade.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO vento nas ameixieiras de Wang Shishen Shitao (1642-1707), o pintor peripatético, vagueando pela região de Jiangnan, «a Sul do grande rio Changjiang» figurou um poeta erguendo-se num barco, olhando impressionado para uma enorme massa rochosa e escreveu os versos: Enquanto o vento vai soprando na Ravina Ocidental quem permitiu que o poema se completasse sozinho? Tanta pena da ameixieira, a solitária do frio, que não tem companhia. Daqui apenas se avistam os poucos ramos que sobraram, Flores caídas enchem já o chão e a Primavera ainda não terminou. Um coração amargurado, apertado como uma semente, consegue persistir em tais pensamentos constantes A pintura numa folha de álbum (Reminiscências de Qinhuai, tinta e cor sobre papel, 25,5 x 20,2 cm, no Museu de Arte de Cleveand) é exemplar do seu processo como pintor literato individualista para quem o crescente simbolismo da pintura como que pedia o contraste dinâmico com a palavra poética. Essa figura do indivíduo solitário no meio da paisagem está presente em muitas das suas pinturas e até foi assim que ele fez o seu Auto-retrato supevisionando a plantação de pinheiros. Um outro pintor, seu contemporâneo e da mesma região de Jiangnan, habitante da cidade de Yangzhou, também figurou esse sujeito sensível que da natureza recebe sinais de lentas ou delicadas mutações. Wang Shishen (1686-1759) faria uma rara pintura de um homem caminhando ao frio com um jarro de barro, que se presume cheio de neve para ser derretida e feita água, quem sabe se para o chá, aproximando-se da vedação de uma habitação coberta com um telhado de palha, a que chamou Pedindo água de neve (rolo vertical, tinta sobre papel, 91 x 26,8 cm, no Museu de Arte da Universidade de Princeton). Wang Shishen, o pintor de Anhui que escolheu o nome artístico de Chaolin, «aninhado na floresta», ficaria conhecido pelas suas pinturas de ameixieiras. Um álbum de oito pinturas de Paisagens e flores no Metmuseum (tinta e cor sobre papel, 20,3 x 25,1 cm) será um modelo a mostrar a potenciais compradores a sua habilidade de pintor profissional na rica região comercial ao longo do Grande Canal. Mas noutras pinturas, como Flores de ameixieira, no Museu de Arte de Cleveland (rolo vertical, tinta sobre papel, 144,4 x 75,7 cm) descreve uma situação típica das actividades dos literatos: «Em busca de flores de ameixieira com amigos, Aproveitamos a frescura de um dia claro, Sinto leves os meus sapatos pretos e as meias de algodão, Que belos os bosques diante da porta deste antigo templo, Caminho para a frente e para trás, como se habitasse numa pintura.» Noutro poema diz: «O distinto badalar de um sino rompe o silêncio nas montanhas, Mil anos depois todos os heróis das Seis dinastias estão esquecidos, Sob uma janela budista apreciamos os dias ociosos, Ramos e flores de ameixieira guardam para si todo o vento Leste.»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioCheng Xiuji, um Pintor, um Imperador e o Livro das Odes Tang Wenzong (809-840), o monarca que percebeu o grandeza do exemplo, mandou emitir um decreto apontando como Três maravilhas do grande império dos Tang, Sanjue webian, a poesia de Li Bai, a caligrafia de Zhang Xu e a arte da espada de Pei Min. Como que confirmando essa intuição imperial sobre o valor da poesia, Wang Yinglin (1223-96), o filósofo e ensaísta os Song do Sul, guardou em Kunxue Jiwen a memória de uma relação entre o imperador Wenzong, um pintor e o grande texto clássico Shijing, que reúne poemas e canções de várias tradições, cuja compilação é tradicionalmente atribuída a Confúcio (551-479 a. C.) e é traduzido entre outros, como Livro dos Cantares ou Clássico da Poesia. Aí se diz que, não estando satisfeito com a figuração «da vegetação, dos animais silvestres e dos retratos de antigas dignidades» de ilustrações anteriores, Wenzong pediu que fossem refeitas as pinturas relativas aos trezentos e cinco poemas. O pintor escolhido foi Cheng Xiuji (804-63) e, se o celebrado poeta dos Tang Du Mu (803-52) o menciona num Encómio como alguém que se distinguiu pelo modo admirável como refez as pinturas que ilustram o célebre texto e que lhe valeriam a promoção a Hanlin daizhao, «talento às ordens», parte do grupo criado pelos imperadores dos Tang como conselheiros eruditos, outras fontes referem-no primeiro como um alto funcionário militar, detentor de títulos de nobreza. É o caso, raro para um pintor, de um Epitáfio que detalha o seu percurso na hierarquia oficial desde que passou o Exame sobre a compreensão dos clássicos, em 826. Uma terceira fonte, que se interessa mais pela sua qualidade como artista, lê-se no texto de biografias de mais de cem pintores, Tangchao minghualu, que o descreve como «aluno durante vinte anos» do preclaro pintor Zhou Fang (c.730-800). Zhu Jingxuan (activo entre 806-46), o seu autor, escreve: «Desde a era Zhenyuan (785-805) ele foi o único indivíduo na capital cujo avanço [na hierarquia] se deveu apenas à sua mestria como pintor e foi continuamente agraciado pelo favor imperial.» O caso de Cheng Xiuji, com um imperador e o Shijing repetir-se-ia. Na dinastia Song do Sul, o imperador Gaozong (r.1127-62) ordenou que a sua própria caligrafia fosse utilizada para reescrever os poemas do Shijing e solicitou ao ilustre pintor Ma Hezhi (activo entre 1131-89) que fizesse as ilustrações, de que uma parte se pode ver no Museu do Palácio, em Pequim (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 27 x 383,8 cm). Qianlong (r.1736-95) também mandou que pintores da sua corte fizessem ilustrações para o texto, que ele próprio reescreveu. De modo característico, foi um projecto grandioso de trinta álbuns, um dos quais se pode ver no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, que demoraram seis anos a ser terminados e brilhariam como uma das maravilhas do seu reinado.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAs Dez Etapas do Chan e os Cinco Bois de Han Huang Chen Hongshou (1598/9-1652), com a linha livre e caprichosa do seu pincel, fez uma pintura representando o momento em que Laozi (571-471 a. C.) está na iminência de passar um curso de água, uma fronteira em direcção ao Ocidente, a partir da qual mais ninguém tornaria a ver aquele que o historiador Sima Qian afirma ter sido incumbido de preservar documentos históricos. O sábio é representado na pintura (folha de álbum, tinta e cor sobre seda, 30,2 x 26,7 cm, no Museu de Arte de Cleveland) seguindo vagarosamente montado num boi e já cumpriu a sua missão, deixando para trás o clássico do daoísmo, o Daodejing que através dos tempos iria assegurar a sua fama e glória, como indicam as flores de híbisco que na pintura estão atrás dele. O animal lento, paciente, confiável e obstinado que o transporta também teria um lugar na memória dos vindouros, com um vínculo particular ao budismo chan. Num dos instrumentos experimentais do chan, o gong’an, mais conhecido com o nome japonês koan, há um que conta como um monge que trabalhava na cozinha do mosteiro foi interpelado pelo mestre àcerca do que estava fazendo. «Nada de mais», respondeu o monge «apenas pastoreando o boi». O mestre perguntou-lhe então «como» o estava fazendo. O monge respondeu: «Cada vez que o boi se afasta para ir comer erva, levo-o de volta ao trabalho.» No século XII o mestre do chan, Kuoan Shiyuan (activo c.1150) propôs uma série de dez etapas de meditação, para o que escreveu dez poemas e dez ilustrações, que o praticante devia seguir para purificar o corpo e o espírito, que tem no centro a figura do boi, antiga analogia referida no Sutra do Lótus como o «boi branco», metáfora para a transcendência do samsara, o ciclo contínuo da morte e da vida. Em Shiniu tu, o mestre começa com o poema Em busca do boi, cujo primeiro verso diz: «Na grande vastidão afastando os matos, vou procurando, perseguindo-o». Nessa dinastia Song (960-1279) a figuração da figura do boi alcançaria grande popularidade mas antes já fora objecto de uma pintura excepcional. Han Huang (723-787), um alto funcionário da dinastia Tang (618-907), é o autor do rolo horizontal Cinco bois (Wuniu tu, tinta e cor, 101,5 x 55,3 cm, no Museu do Palácio, em Pequim), considerada a mais antiga pintura sobre papel. A representação não possuía nenhum carimbo ou palavras a acompanhá-la mas tem hoje as marcas de poemas e carimbos dos coleccionadores, como imperadores, que a possuiram. Mas dir-se-ia que a expressividade do traço gracioso e seguro de Han Huang herdara a mestria de pintores e calígrafos que o precederam, cada boi surgindo inteiramente eloquente só no risco. No final do processo proposto por Kuoan Shiyuan, o praticante, encontrado o boi, está de Regresso ao Mundo e, acompanhando o poema, o mestre mostrou-o radiante de alegria diante do Budai, o buda que ri.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO vento nas ameixieiras de Wang Shishen Shitao (1642-1707), o pintor peripatético, vagueando pela região de Jiangnan, «a Sul do grande rio Changjiang» figurou um poeta erguendo-se num barco, olhando impressionado para uma enorme massa rochosa e escreveu os versos: Enquanto o vento vai soprando na Ravina Ocidental quem permitiu que o poema se completasse sozinho? Tanta pena da ameixieira, a solitária do frio, que não tem companhia. Daqui apenas se avistam os poucos ramos que sobraram, Flores caídas enchem já o chão e a Primavera ainda não terminou. Um coração amargurado, apertado como uma semente, consegue persistir em tais pensamentos constantes (…) A pintura numa folha de álbum (Reminiscências de Qinhuai, tinta e cor sobre papel, 25,5 x 20,2 cm, no Museu de Arte de Cleveland) é exemplar do seu processo como pintor literato individualista para quem o crescente simbolismo da pintura como que pedia o contraste dinâmico com a palavra poética. Essa figura do indivíduo solitário no meio da paisagem está presente em muitas das suas pinturas e até foi assim que ele fez o seu Auto-retrato supevisionando a plantação de pinheiros. Um outro pintor, seu contemporâneo e da mesma região de Jiangnan, habitante da cidade de Yangzhou, também figurou esse sujeito sensível que da natureza recebe sinais de lentas ou delicadas mutações. Wang Shishen (1686-1759) faria uma rara pintura de um homem caminhando ao frio com um jarro de barro, que se presume cheio de neve para ser derretida e feita água, quem sabe se para o chá, aproximando-se da vedação de uma habitação coberta com um telhado de palha, a que chamou Pedindo água de neve (rolo vertical, tinta sobre papel, 91 x 26,8 cm, no Museu de Arte da Universidade de Princeton). Wang Shishen, o pintor de Anhui que escolheu o nome artístico de Chaolin, «aninhado na floresta», ficaria conhecido pelas suas pinturas de ameixieiras. Um álbum de oito pinturas de Paisagens e flores no Metmuseum (tinta e cor sobre papel, 20,3 x 25,1 cm) será um modelo a mostrar a potenciais compradores a sua habilidade de pintor profissional na rica região comercial ao longo do Grande Canal. Mas noutras pinturas, como Flores de ameixieira, no Museu de Arte de Cleveland (rolo vertical, tinta sobre papel, 144,4 x 75,7 cm) descreve uma situação típica das actividades dos literatos: « Em busca de flores de ameixieira com amigos, Aproveitamos a frescura de um dia claro, Sinto leves os meus sapatos pretos e as meias de algodão, Que belos os bosques diante da porta deste antigo templo, Caminho para a frente e para trás, como se habitasse numa pintura. Noutro poema diz: O distinto badalar de um sino rompe o silêncio nas montanhas, Mil anos depois todos os heróis das Seis dinastias estão esquecidos, Sob uma janela budista apreciamos os dias ociosos, Ramos e flores de ameixieira guardam para si todo o vento Leste.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA Face Inescrutável de Meng Haoran e Wang Wei Ding Gao (?-1761), o autor do tratado Xiezhen mijue, «A fórmula secreta para pintar retratos» tinha bem claro que o escrevia numa demonstração de xiao, «amor filial», não apenas como forma de estimar os seus antepassados mas também para servir de exemplo de comportamento moral a quem se quisesse dedicar à arte e à técnica dos retratos pintados. Como ele explica no texto original escrito em 1766, com o título Chuanzhen xinling, «Compreensão da transmissão da verdadeira semelhança», foi o seu bisavô Ding Yuchen quem primeiro desenvolveu o interesse da pesquisa dos segredos da arte que depois foram transmitidos ao seu avô, e depois a seu pai e que ele mesmo transmite ao seu filho. O tratado só seria publicado pela primeira vez em 1818, pelo seu filho Ding Yicheng (1743-depois de 1823) que também acrescenta um apêndice, Xuxinling, com oito questões, e mostra como uma série de diferenças se foram esbatendo durante a dinastia Qing. Entre a maneira de pintar os retratos dos vivos, comemorativos ou de dignitários, muitas vezes executados por autores famosos por vezes designados yintu, «pintura das sombras», ou os de familiares falecidos, feitos geralmente por autores anónimos, que celebravam a alma dos antepassados, também chamados fushen «representação da alma». Mas também se tornava mais ambígua a distinção entre pintores literatos e profissionais. A linguagem utilizada pelos autores junta aspectos da fisionomia popular que via na face um espelho da ordem cósmica mas também se apropria do vocabulário erudito da pintura de paisagens. Como ao dividir o rosto em Cinco Montanhas – a testa, o queixo, o nariz, a maçã do rosto direita e a esquerda; e Cinco rios – as orelhas, os olhos, a boca e as narinas. Mas uma outra categoria, a de retratos imaginados, que possuíam o prestígio da tradição como o Retrato de Fu Sheng sentado no chão, descontraído (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 25,4 x 44,7 cm, no Museu de Belas Artes de Osaka) atribuído a Wang Wei (701-761) adquiriram grande popularidade na dinastia Qing. Shangguan Zhou (1665-1750), na obra Wanxiaotang huazhuan onde figurou heróis de Estado e da cultura ao longo da História, não terá tido dificuldade em utilizar as feições convencionais de homens corajosos que exibem um excesso de energia ou as clássicas formas de mulheres belas (meiren) em retratos de corpo inteiro, a três quartos, numa linha clara que os torna leves e facilmente reproduziveis. Há, porém, no seu álbum, dois retratos de poetas que são um desafio à representação do rosto. Meng Haoran (689-91-740), o poeta que despertou preocupado com as pétalas que caíram durante a tempestade, é representado sentado, de tal modo envolto nas suas vestes que do seu rosto só são visíveis os olhos, o nariz e o bigode. Wang Wei está sentado, relaxado, a cabeça voltada, dela apenas se vê a nuca.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Jardim de Qian Weicheng – Era um Retrato de Qianlong Weize (1286-1354) o monge chan budista que assumiria o nome Tianru, criou em 1342 um jardim em Suzhou (Jiangsu) ocupando uma área vizinha a um mosteiro, em memória do seu mestre, o abade Ben Zhongfeng, a que deu o nome de Shizilin, «O bosque dos leões», leões budistas que aludiam ao poder e à virtude do Buda. Entre as várias justificações para a escolha do nome do sítio, referido como um bosque pela densidade dos bambus ali existentes, incluíam-se: o lugar onde o mestre Zhongfeng atingiu o nirvana, o Pico do leão do monte Tianmu em Lin’an (Hangzhou, Zhejiang), a caprichosa forma das porosas pedras do lago Tai, que eram parte da composição do jardim e lembravam esse animal, e o eloquente Sutra da raínha Srimala do rugido do leão. O jardim tornar-se-ia um lugar de culto atraindo homens de cultura, entre os quais o pintor Nizan (1301-74) que o recriou numa pintura em 1373, executada na forma que ele definiu; «os traços transcendentais do meu pincel têm uma aparência rústica; não buscam a semelhança com as formas» e que faria parte das colecções imperiais. Kangxi (1654-1722) numa das suas Visitas de inspecção ao Sul, em 1703, visitou o jardim o que, como muitas outras coisas que fez, muito impressionou o seu neto Qianlong (1711-99) que repetiu a visita seis vezes, na terceira das quais em 1765, lá deixou uma placa com dois caracteres zhenqu, «deleite verdadeiro», escrito pela sua própria mão. O que foi apenas uma das inúmeras manifestações do seu imenso apreço pelo jardim. Na sua primeira visita escreveu um poema onde se nota o olhar previamente cativado pelo rolo de Nizan: «Conheço o Bosque do leão há muito tempo,/ Diz-se que foi criado pelo mestre Nizan./ De início supus que se escondia num vale remoto,/ Depois percebi que se encontrava numa cidade buliçosa. (…) A colina artificial parece uma montanha verdadeira,/ Mortais e imortais estão separados por uma curta distância.» E Qianlong encarregaria um pintor de recriar a forte adesão espritual que sentia ao lugar. Qian Weicheng (1720-72) que não pertenceu à Academia imperial, viajou com o imperador em duas das visitas imperiais ao Sul e delas fez várias pinturas, confirmando a sua intimidade com Qianlong. Em Vista total do Bosque dos leões (rolo horizontal, tinta e cor sobre papel, 38,1 x 187,3 cm, na Universidade de Alberta) o jardim é reconhecível através da representação das suas feições mais proeminentes e vistas cénicas mas é sobretudo um espaço tranquilo, ao lado de Suzhou, que por metonímia funcionava como um retrato do seu dono, que nele podia passear e agir de modo privado através do olhar e do espírito. Qianlong mandaria repetir o jardim em duas propriedades suas; no Palácio de Verão e no Retiro de montanha para escapar ao calor, em Chengde (Hebei) mas com a pintura bastava desenrolá-la, estender o braço e ver.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA versão de Shen Yuan do rolo que evoca Bianjing Meng Yuanlao (c.1090-1150), um funcionário governamental que viveu em Bianjing (actual Kaifeng, Henan) dos treze aos vinte e sete anos, sendo depois forçado a abandonar a cidade capital dos Song do Norte, partindo para o exílio em Hangzhou, escreveu uma nostálgica recordação desse lugar. Que se lê como uma ilustração da expressão «menghua», um sonho projectado no passado de um paraíso perdido, por vezes referido como a utopia do imperador Amarelo sobre Huaxu, a terra da harmonia e felicidade perfeitas. Em Dongjing menghua lu, «Sonho do esplendor da capital oriental», editado pela primeira vez em 1187, a cidade é descrita como um lugar onde “A paz se prolongava dia após dia: viviam lá muitas pessoas e havia de tudo em abundância, jovens com longas tranças não se entretinham senão com danças e tambores, os mais velhos com os cabelos salpicados de branco não ligavam a escudos ou lanças. As estações e os festivais seguiam-se uns aos outros cada um com as respectivas situações para apreciar. Noites iluminadas por candeeiros e madrugadas ao luar, períodos de neve e tempos de floração, clamando habilidades e subindo alturas, formando reservatórios e jardins onde se pode passear. Erga-se o olhar e lá estão pérgolas verdes e quartos pintados, entradas bordadas e sombras preciosas. Carruagens decoradas competiam pelo estacionamento na Avenida Celestial e cavalos ajaezados lutavam para passar nas ruas imperiais. (…)” Mas a mais comum evocação de Bianjiang é uma pintura intitulada Qingming shanghe tu, que se pode traduzir como «Sobre a margens do rio durante o festival Qingming» (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 28,2 x 528,7 cm, no Museu do Palácio em Pequim) cuja autoria, no rolo, é atribuída a Zhang Zeduan (1085-1145) e mostra a buliçosa vida em torno do rio Bian. O seu singular fascínio originou inúmeras cópias e recriações das quais cerca de cem estão hoje em vários museus e colecções. Shen Yuan (act. 1728-48) é autor de uma das mais intrigantes recriações (rolo horizontal, tinta sobre papel, 34,8 x 1185 cm, no Museu do Palácio, em Taipé) que se diz ter sido apenas um guia para outra versão colorida executada por cinco pintores da corte de Qianlong. No entanto ela exibe um domínio do desenho, da perspectiva e certos pormenores que a tornam ímpar. Nela está a única confirmação de que a cena decorre no festival Qingming, «o dia de varrer as sepulturas», através de três figuras que se vêem na primeira parte junto de um túmulo, num gesto evidente de quem chora, a eloquente expressão do pesar. Na parte central que representa a ponte dita «ponte arco-íris» onde no original um navio de grande porte se encontra em risco de bater ao passar criando um grande alvoroço, Shen Yuan resolve o perigo riscando linhas rectas que são os cabos que puxam o navio, guiando-o a partir das margens.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO que Li Shizhuo escreveu nas suas pinturas Gao Qipei (1660-1734), o alto funcionário que se notabilizou pelas suas pinturas que dispensavam o pincel e utilizava de maneira bem-humorada as mãos e a ponta de uma unha que deixava crescer para o efeito, fez parte de uma família que, se não prolongou a sua intransmissível bizarria, enriqueceria a arte do pincel. Um seu sobrinho, Li Shizhuo (1687-1770) mostraria um conhecimento invulgar da história da pintura reflectindo o gosto de sistematização e erudição característicos dos pintores ao serviço do imperador Qianlong (r. 1736-95) a quem serviu durante cerca de vinte anos. Filho de um alto funcionário terá sido no decurso de uma viagem com o pai à região de Jiangnan, que entrou em contacto com o eminente pintor Wang Hui (1632-1717) que teria um papel essencial no ressurgir de importância da pintura ortodoxa de paisagens no fim do século dezassete, com quem terá aprendido os fundamentos da arte. E na ausência de um manual de pintura seu, as inscrições que fez em pinturas constituem um corpo crítico revelador de um saber muitas vezes partilhado nos convívios dos literatos. Em Paisagem a partir de Wu Zhen (1289-1354) e Shen Zhou (1427-1509) que está no Instituto de Arte de Minneapolis (rolo vertical, tinta sobre papel, 65,2 x 32,8 cm) ele mostra um à vontade que não é isento de certo tom autobiográfico: « As pessoas gostam das pinturas de Shitian (Shen Zhou) e dizem que alcançou os mistérios ocultos de Mei Daoren (Wu Zhen). No entanto elas não percebem que na realidade isso era uma tradição familiar que recebeu do seu pai, Hengji (Shen Hengji,1409-1477). Ontem passei em Guazhou (Yangzhou, Jiangsu) e sentado numa janela à chuva virada para as águas, pintei e pus os pontos (dian) nesta pintura cuja concepção está entre Wu e Shen.» Na adopção desse «espírito dos antigos», guyi, foi consciente da síntese informada que fizera Zhao Mengfu (1254-1322) como na Paisagem no estilo desse mestre, no Smithonian (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 94,4 x 42 cm). Li Shizhuo ao ler o tratado Bifa Ji, «Notas sobre o método do pincel», escrito em parte como um diálogo, actualizou o que nele se defende sobre a verdade do pintor. Em Paisagem a partir de Jing Hao (c.855-915) e Guan Tong (activo a meio do século X) alude a uma célebre distinção académica sobre o uso da tinta ou o domínio do pincel: «Jing Hao chamava-se a si mesmo Hongguzi. Ele escreveu o Segredo da paisagem, e certa vez proclamou orgulhoso: “Wu Daozi poderá ser excelente com o pincel mas é deficiente com a tinta. Xiang Rong pode ser excelente com a tinta mas falta-lhe o trabalho de pincel”. E assim Honggu podia reclamar ser mestre dos dois. Como resultado Guan Tong procurou-o para seu instrutor. Ele foi realmente uma figura destacada do final da dinastia Tang. Aqui tentei mostrar o melhor de Jing Hao, escondendo os seus defeitos.»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioZhang Ruocheng, a Viela Estreita e o Espírito Livre Zhang Tingyu (1672-1755), o erudito e historiador que dirigiu a compilação da História dos Ming, foi também um político notável ao serviço de três sucessivos imperadores; Kangxi, Yongzheng e Qianlong, num tempo em que em que a grandeza e o poderio do império dos Qing alcançou um ponto alto. E mesmo se, no fim da sua vida as relações com Qianlong se deterioraram, ele seria o único funcionário oficial superior de etnia han durante a dinastia Manchu, a ter uma tabuleta póstuma em sua memória no Templo dos antepassados, Taimiao, junto da Cidade Proíbida. Conhecendo a sua biografia, dir-se-ia que essa capacidade de adaptação a um tempo de grande convulsão interna, apoiada numa facilidade de comunicação pela convergência da elevação dos espíritos, era para ele uma herança familiar. Em Tongcheng (Anhui) onde nasceu e de onde era originária a sua família, é conhecida uma história sintetizada num «provérbio» em que o seu pai é o protagonista. Diz-se que Zhang Ying o seu pai, funcionário na corte, recebeu um dia uma carta dos familiares que estavam na casa de família que lhe pediam para resolver uma disputa com o vizinho do lado acerca dos limites das duas casas, que os tribunais locais não conseguiam solucionar. A resposta de Zhang Ying veio na forma de um poema que dizia: «Escrevem-me uma carta de tão longe, a grande distância só por causa de um muro, Toda uma confusão só por causa de um ou dois metros. Olho para a Grande Muralha, longa de dez mil quilómetros, Passado é já o tempo do seu construtor, o imperador Qinshihuang.» Os familiares entenderam e num gesto de condescendência recuaram o muro, um metro. O vizinho, olhando para o gesto também percebeu e recuou igualmente o seu muro um metro, criando entre as duas propriedades uma congosta com cerca de dois metros de largura. A situação exemplar para a resolução de conflitos seria até hoje referida com os três caracteres liu chi xiang, «ruela apertada, espíritos abertos». Zhang Tingyu teria três filhos que serviriam o imperador e que se distinguiram nas artes do pincel em que a moral e a estética eram padrões que qualificavam os literatos. Ruoting (1726-1802) na caligrafia, Ruoai (1713-46) mostrou agudeza de abservação e domínio da alegoria na pintura de pássaros e plantas, e Ruocheng (1722-70) faria pinturas de paisagens em que a proporção era indiferente à dimensão. Num longo rolo horizontal, Viajando até ao sagrado cume do Sul (34,9 x 632,6 cm, no Museu de Arte do Condado de Los Angeles) os lugares figurados são identificados em pormenor, como num mapa. Noutro pequeníssimo rolo, vendido no mercado (Bonhams) com inscrição de Qianlong (tinta sobre papel, 3,8 x 16,5 cm) feito para ser colocado numa «arca de muitos tesouros», duobao ge, revela intimidade com o imperador esteta que valorizou a sua própria família como um tesouro.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioComo Zhang Ruitu viu o luxo ao entardecer Zhu Youjiao (1605-1627), que reinaria como o imperador Tianqi (r.1620-7), foi retratado na sua pose solene, rodeado de abundantes símbolos do seu poder, o qual segundo se deduz da crónica, o jovem monarca desprezava. Literatos cultos que olhassem para o retrato, de que existem dois exemplares, um no Museu do Palácio, em Taipé (rolo vertical, 203,6 x 156,9 cm, tinta e cor sobre seda) e outro no Museu de Arte de Indianapolis, reconheceriam aquela projecção do luxo. Mas os opulentos e sofisticados têxteis, o minucioso trabalho das vestes bordadas e de todos os outros objectos que o rodeiam, como a cadeira de dragão ou o painel por trás dela, seriam percebidos como indícios da maré luxoriante que o engoliria. Comparando com os retratos imperiais do início dos Ming, que depois Qianlong reuniria em 1748, na sua galeria Nanxun, a «fragrância do Sul» na Cidade Proibida, nota-se que a autoridade é aí projectada de maneira porventura mais humilde, mais centrada na pose e na pessoa do imperador. O curto mandato de Tianqi seria pontuado por uma série de decisões erradas e fenómenos naturais desfavoráveis como cheias e consequentes fomes e descuidos desastrosos, lidos de maneira supersticiosa como sinais de mau agouro. E o poder que o monarca descurava, era delegado no ambicioso eunuco Wei Zhongxian (1568-1627) que, pelo modo subtil como tinha de implementar as decisões que tomava, criou uma rede imperceptível de lealdades e inimizades. Alguns letrados brilhantes próximos do poder, quando Wei cai em desgraça, seriam arrastados nessa vaga de repulsa. Para um letrado de Jinjiang (Fujian) que passara o exame imperial em 1609, essa foi uma oportunidade de exprimir o seu olhar independente. Zhang Ruitu (1570-1641) foi identificado como fiel a Wei Zhongxian e só pagando uma multa escapou à prisão, mas teve que se retirar do serviço público e regressou à sua terra natal, em 1628. Aí, indiferente às teorias de Dong Qichang, recriou a seu modo as paisagens monumentais dos Song do Norte, como o rolo vertical Montanhas ao longo das margens do rio (tinta sobre seda, 167 x 51,4 cm, no Metmuseum) onde, com a sua expressiva caligrafia, escreveu: Embarcações deixam a cidade e entram na floresta, Estando as margens do rio afastadas, elas flutuam no céu. Num rolo vertical da sua caligrafia (no Museu Britânico) anotou a sua versão do luxo: “Sozinho no cume mais alto, sobre camadas de rochas, aprecio a vista do entardecer sobre pinheiros e trepadeiras sinuosas. Vejo pássaros voando ao longe na floresta, encontrando o monge que regressa ao luar. O céu atrás das árvores é baixo um metro, metro e meio; estão longe centenas, milhares de nuvens de contornos nítidos. Sento-me num supedâneo de juncos, tudo está tranquilo e em silêncio, excepto o som cadenciado do sino trazido pelo vento a partir de uma fila de cavernas.”
Paulo Maia e Carmo Via do MeioNi Yuanlu pintou uma pedra ou uma nuvem? Mi Fu (1052-1107), o poeta e pintor dos Song, um dia ao tomar posse como magistrado no distrito de Wuwei (actualmente em Anhui), quando caminhava para a residência oficial, parou admirado diante de uma pedra. Logo envergou as vestes formais e segurando a placa do seu posto nas mãos, inclinou-se numa longa vénia de respeito perante o capricho silencioso da erosão natural e dirigiu-se ao monólito: «Pedra, minha irmã mais velha». Noutra ocasião tomou uma decisão que iria lamentar toda a vida, ao trocar uma das pedras de moer a tinta da sua lendária colecção por uma nova casa que nomeou Retiro de Montanhas e Oceanos. Viver retirado do Mundo era uma ambição dos literatos a exemplo de Tao Qian (365-427) que explicitou em muitos poemas essa utopia, e de modo particular nos vinte que compôs «estando ébrio», de onde deriva uma caracterização que parte dessa situação: yinjiu, a «vida na solidão rural». No fim dos Ming altos funcionários desesperados com o declinar inexorável da dinastia referiam-se a essa quimérica terceira porta, depois da inocência, do conhecimento convencional, a percepção livre e espontânea. Como o poeta e pintor de Shangyu (Zhejiang) Ni Yuanlu (1593-1644) no poema Imprevisto estando ébrio: Não ficarei com os pés atados à janela do Sul mas, com eles desembaraçados, irei dez mil li para onde quer que me guiem. Como ficar indiferente a livros preciosos ou longas espadas? Em pleno dia cantarei alto a cada coisa maravilhosa. Dado que o mestre Yang* só encontrou desprezo ao escrever sobre mistérios, terei Du Fu, que bebia muito, como guia. E não é preciso perguntar o que farei com a minha vida: seguirei adiante, contemplando montanhas, com um bastão de bambu na mão. Ni Yuanlu, na última página de um álbum de 1640 (tinta e cor sobre seda, c.21,5 x 20,1 cm, no Museu de Arte da Universidade de Princeton), escreveu uma nota: Acordei cedo e como não tinha compromissos onde estar, fiz este álbum de pinturas, sinceramente, para o quinto irmão, Xianru. Nessas dez folhas ,intituladas Amizade na Pedra (Shijiao tu), representou sucessivamente dez rochas diversas como personalidades, em que se reconhecem as quatro qualidades das pedras analisadas por Mi Fu: Shou, a estatura elegante e erecta, Tou, os buracos que permitem a passagem do ar e da luz, Lou, os canais e rachas Zhou, a superfície e textura. Noutra pintura invulgar, Nuvem pedra (rolo vertical,tinta sobre seda, 130,8 x 45,4 cm, no Metmuseum) ele dirige-se à figura pintada como se fora um ser ciente: Não é estúpida nem engana, Será uma nuvem, será uma pedra? O último ano da vida de Ni é também o último da dinastia Ming e não é uma coincidência: leal aos nós da amizade, vendo que não podia seguir adiante, ele mesmo se retirou do caminho onde observava a lentidão das nuvens e a ainda maior das pedras. * Wanli (1127-1206)
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO monge peregrino de Chen Xian Liang Kai (c.1140-c.1210), autor de um célebre rolo vertical em que o poeta Li Bai é figurado a caminhar, noutro rolo horizontal representaria Oito monges eminentes (tinta e cor sobre seda, 26,6 x 64,1 cm, no Museu de Xangai), um dos quais é identificado como o monge de Shandong, Xiangyan Zhixian (c.820-89) que descreveu num poema a sua inesperada iluminação quando ao varrer o chão subitamente ouviu uma pedrinha a cair: Um acontecimento e esqueci tudo o que sabia, Não mais confiarei no aperfeiçoamento livresco, Toquei na lição do Buda E não cairei em explicações de segredos mansos. Em mais nenhum lugar se encontrará um traço, Fora do falar e comportamento comum. Aqueles que encontraram a Via, de todos os lados, Todos dizem ter a mais elevada explicação. O pintor Japonês Kano Motonobu (1476-1559) que foi um dos que naquele país demonstraria a sua afeição pelas narrativas e pinturas peregrinas que vinham com mercadores e monges Chineses, representou-o sozinho a varrer o chão entre brumas, como no desejo de divisar um ideal. Essa admiração alcançaria um ponto alto quando anos mais tarde, no turbulento fim da dinastia Ming chegaram a Nagasaki os monges do mosteiro Huangbo, em Fujian, aí designado Obaku. E lá inovariam aspectos do convívio social como na variação da celebração da tradicional cerimónia do chá, o chanoyu, a «água quente para o chá» que exaltava «um acontecimento, um encontro», para o mais informal senchado, «a via do chá de infusão» em que as pequenas folhas eram usadas inteiras e não maceradas, no decurso do qual era apreciado o espírito literário valorizado pela elite dos Ming através da observação de pinturas, caligrafias, poemas e objectos decorativos. Para além da afectação do exotismo havia um genuíno apreço pela cultura levada pelos monges, que deixaram de chegar a partir do ano 1723 e morrendo o último dos que foram para lá em 1784. Arai Hakuseku (1657-1725), o político e erudito confucionista no breve período em que os dirigentes Japoneses abraçaram a lição de Kong Fuzi, deixou claro esse respeito num conselho sobre o modo de expressão em prosa ou poesia: Deve-se tentar escrever de tal maneira que seja facilmente compreensível pelos Chineses. Nem seria preciso dizê-lo já que a escrita teve origem na China, na sua essência ela é chinesa. As pinturas levadas pelos monges de Huangbo incluíam algumas menos conhecidas no seu país, como as do pintor Chen Xian (act. 1634-54). Num rolo horizontal ele figurou Vinte e quatro luohans, Sakyamuni, Guanyin e Xuanzang (tinta e cor sobre seda, 49,5 x 731,3 cm, no Smithonian); todos estão de pé ou sentados menos Xuanzang, que caminha. E, coisa fascinante no monge em trânsito, quando saíu de sua casa, algo buscava mas já no gesto simples do seu caminho de curiosidade se perceberá uma revelação, para si e para os que o viram passar.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Retrato Impossível de Yinyuan Longqi Yiran Xingrong (1601-68), o monge de Hangzhou que foi para Nagasaki e que foi conhecido no Japão como Itsunen Shoyu, terá sido o responsável pelo convite feito ao mestre do mosteiro Huangbo em Fujian Yinyuan Longqi para vir para o Japão em 1654, no tempo da transição Ming-Qing. Num tríptico, Yiran representou os três mestres da Escola do Budismo chan: Linji, Deshan e Damo (Bodhidharma) os dois primeiros a três quartos, voltados para Damo, de frente e no meio (rolos verticais, tinta e cor sobre papel, 124,4 x 39,6 cm, no Museu de Arte da Universidade de Michigan) do modo como tradicionalmente eram representados os monges budistas desde a dinastia Song, cohecido como dingxiang, neologismo budista que foi a tradução fonética da palavra indiana usnisa, o alto na cabeça do Buda significando a sua iluminação, que se diz invisível ao olhar de seres vivos. Sobre o retrato de Deshan, à esquerda, outro monge mestre de caligrafia Muan Xingtao (1611-84) conhecido no Japão como Mokuan Shoto, escreveu: «Um único ponto no grande vazio, uma única gota num grande barranco, Ele queimou o sutra quando lhe surgiu a iluminação. Com o seu bastão, aponta tanto para os sábios como para a gente comum, Neste mundo de Carma, acção e consequência, ele é um verdadeiro buda.» Quando Yinyuan se tornou o venerado mestre do mosteiro Obaku no Japão, também retratos seus foram feitos do mesmo modo. Num deles, feito por um autor desconhecido (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 119,4 x 57,8 cm, no Metmuseum) ele apresenta-se de corpo inteiro; o cabelo e a barba brancos não ocultam um suave sorriso, a sobrepeliz vermelha sobre o ombro esquerdo segura por um anel colocado em cima do lugar exacto do coração e, calçado com sapatos da mesma cor, os pés repousam sobre um escabelo. Na sua mão esquerda um enxota-moscas, na direita um longo bastão irrompe no meio de um poema. Muan Xingtao é também o autor desse poema: «Segurando o bastão ele aponta directamente para a Humanidade, E no entanto, como ele era originalmente sem forma, este retrato não é verdadeiro, A sua forma não pode ser percebida como forma, A sua benevolência é apenas a sua natural benevolência. Se, de repente, conseguires entender esta lei, Então o teu espírito poderá vaguear para além do Mundo.» Muan Xingtao foi reconhecido, com Yinyuan e Jifei Ruyi (no Japão chamado Sokhui Noitsu, 1616-71) como um dos “Três pincéis do mosteiro Obaku”. O último, na pintura Luohan lendo ao luar (no Metmuseum) com um pincel largo desenhou a lenta figura de um monge de costas sentado no chão, segurando um rolo que aparenta ler. Porém, nada dele nem da lua se percebe. E escreveu, com o fulgor ligeiro de uma dança: «A lua e o papel são da mesma cor. A pupila do olho e a tinta são as duas negras. O sentido maravilhoso alojado no círculo, Está para além da compreensão.»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioWang Jianzhang e as «Coisas Dos Tang» Feiyin Tongrong (1593-1661), o segundo abade do mosteiro Huangbo em Fuqing (Fujian), preocupado em preservar a sua interpretação e o modo de transmissão da suave alegria do budismo chan, escreveu num poema: Tenho praticado o chan até ao ponto Em que em mim mesmo o compreendo; E agora entendido com clareza A quem o devo passar? Tudo o que vejo é este luar de Outono, Enchendo todo o céu, Uma roda única, refulgente, Iluminando o riacho aqui à frente. O seu discípulo Yinyuan Longqi, (1592-1673) por razões ainda hoje controversas mas que acabaram na fuga a um território em convulsão e ao encontro com monges que em Kyushu desejavam conhecer a exegese do mosteiro Huangbo, partiria em direcção a Nagasaki onde chegou em 1654, com trinta discípulos e uma bagagem cheia. Para além do budismo animado pelo dao, praticado por Feyin Tongrong, nela vinham objectos que depois encheriam o mosteiro Mampukuji em Uji, na prefeitura de Quioto, criando um simulacro do esplendor da dinastia Ming, ao tempo em que no continente se receava o crepúsculo do seu brilho, fulgor de séculos de cultura ininterrupta. Entre essas peças das artes decorativas e do pincel, que os locais designavam karamono, «coisas da China» uma palavra escrita com os caracteres chineses tangwu, nesse caracter tang aludindo a uma outra cintilante dinastia com que no estrangeiro depois se identificariam os seus descendentes; tangrenjie, «pessoas da rua dos Tang», também vinham naturalmente rolos de pinturas. Algumas delas, obras de autores que não constariam das relações dos catálogos que registavam nomes e obras de pintores locais mas revelavam de maneira admirável essa percepção do homem criador, companheiro da natureza. Foi o caso de obras de um pintor de Quanzhou, em Fujian, que terão sido levadas pelos monges budistas que vinham dessa Província para o Japão. Wang Jianzhang (activo c. 1621-50) refez a sua experiência do Mundo entre a memória e a inquietação, em pinturas que reivindicavam a grandeza das actividades vãs ligadas ao daoísmo, como em Regresso a casa vindo de apanhar cogumelos (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 85,4 x 51,2 cm, na Galeria de Arte de Nova Gales do Sul, em Sydney). Aí escreveu o poema: Árvores na falésia enjaulam nuvens meio húmidas, O portão de madeira junto de um rio foi aberto há pouco, Diante do amanhecer, sozinho, busco um poema, Enquanto recolho cogumelos, o sol põe-se e eu regresso. Na pintura, Cores solitárias nas árvores do Outono (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 117,8 x 51,2 cm, no Museu de Arte de Cleveland) aludiu a um célebre diálogo sobre a felicidade dos peixes e os limites do conhecimento humano: Gelo frio cai sobre as cercas, Cores solitárias espalham os áceres Recitando o capítulo das Águas de Outono1 Não consigo acalmar as emoções no meu velho coração. Zhuangzi,17
Paulo Maia e Carmo Via do MeioLin Tinggui e os Habitantes da Tinta Preta Li Houzhu (c.937-78) que reinaria como Li Yi, o terceiro imperador dos Tang do Sul, ter-se-á agradado tanto da qualidade de uma barra de tinta que chamou o seu criador Xi Chao e o seu filho Xi Tinggui e atribuiu-lhes o seu próprio nome com que ficariam conhecidos: Li Chao e Li Tinggui. Eles que tinham vindo de Henan, no Norte, para a localidade de Shezhou, cujo nome o imperador Song Huizong mudaria para Huizhou e, sendo honrados com o posto de Guardiões da tinta, o seu produto seria celebrizado como «tinta de Huizhou». O apreço dos letrados pela qualidade da tinta, essencial veículo de expressão acompanharia a sua sofisticação. Na dinastia Ming, o influente teórico e pintor Dong Qichang (1555-1636) escreveu sobre outro produtor de tinta de Shexian (Anhui): «Daqui a cem anos já não viverá Cheng Junfang (1541-c.1620) mas a sua tinta persistirá; daqui a mil anos já não existirá a sua tinta mas o seu nome permanecerá.» Outro célebre criador da tinta preta feita com madeira queimada dos pinheiros, a árvore leal que identifica os letrados ao longo da história da pintura, que viveu na dinastia Qing chamado Hu Tianzhu, mudaria o seu nome para Hu Tiankaiwen, ou apenas Hu Kaiwen, para que se pudesse ler nos caracteres do seu nome a expressão «o céu abre o mundo da cultura». O carácter ao mesmo tempo expressivo, nas suas ténues modulações, mas contido da tinta preta não excluiria o uso da cor. Como escreveu Shen Hao na dinastia Qing: «Wang Wei disse que a «tinta esvoaçante» (fengmo) é suprema e está certo. Não se deve iniciar a pintura misturando a fluente tinta preta com as cores. Deve ser alcançada a hamonia da tinta até finalizar o esboço, e então não há objecção a que se pinte com cores.» Um pintor que viveu na cidade portuária que o viajante que atravessou países, Fernão Mendes Pinto, chamou Liampó (Ningbo, Zhejiang) na altura um lugar priviligiado do encontro de culturas, aproveitaria as várias conotações expressivas das cores e da tinta preta para uma estranha representação onde o imanente e o transcendente conviveram. Lin Tinggui (activo c. 1174-89) que partilhava o nome, não a família, com o fabricante de tinta dos Tang do Sul fazia parte do grupo de pintores que em Ningbo pintava temas budistas, trabalhando notoriamente com Zhou Jichang na pintura de cem rolos mostrando Quinhentos luohans (wubai luohan) a pedido do abade do templo Huianyuan. Numa delas, que assinou de modo discreto e a tinta dourada, representou Cinco luohans lavando a roupa (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 111,8 x 53,1 cm, no Smithonian). Só esses primitivos apóstolos que mereceram livrar-se do ciclo da reincarnação, de feições bizarras, um seu grotesco criado e as suas roupas possuem cores; o espaço onde eles se movem, que inclui um majestoso pinheiro, águas correntes e rochas são pintados a tinta preta.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA cadência das flores e dos pássaros de Jiang Tingxi Xiao Baojuan, imperador (r. 498-501) da dinastia Qi e que seria despromovido a marquês Donghun, terá mandado espalhar folhas douradas de lotos pelo chão de um salão para que a sua concubina Pan dançasse sobre elas. Encantado com a expressividade do movimento, teria exclamado: «A cada passo desponta uma flor de loto» (bubu shenglian). A associação da conhecida flor do Budismo à pura expressividade do movimento era só mais um, original, ligame das flores a metáforas culturais numa altura em que chegava do Ocidente o monge Damo (Bodhidharma) na transição dos séculos cinco para o seis, com a mensagem do Chan fazendo florescer de novo as palavras do Buda. Na dinastia Tang (618-907), o loto e outras flores, seriam cantadas por poetas e recriadas em pinturas ao lado de pássaros, produzindo uma míriade de significados, desde a simples enunciação da beleza até a associação a histórias de fenómenos misteriosos como a imortalidade, e um género de pintura novo, huaniao hua, que podia incluir muitos outros elementos como insectos, peixes ou frutos. Eminentes pintores de todas as seguintes dinastas a praticaram. Um homem sábio da dinastia Qing que convivia com o imperador e cujo saber era tão reconhecido que foi chamado para terminar uma monumental enciclopédia, distinguir-se-ia pela delicadeza na pintura das flores. Jiang Tingxi (1669-1732), de Changshu (Jiangsu), será sempre associado a Chen Menglei (1650-1741) como os dois directores da Colecção completa de ilustrações e escritos desde os antigos aos actuais, Gujintushu jicheng, publicada em 1726. Mas as suas pinturas, como Hibiscos e garça (rolo vertical emoldurado, tinta e cor sobre seda,113 x 60,3 cm, no Metmuseum) mereceriam poéticos elogios como o que nela escreveu Jiang Wuyang: «Folhas de loto flutuando na água parecem tão puras, Flores de hibiscos nas margens do entardecer fazem-me sorrir. O espírito entra directamente na morada de Zhao (Mengfu).» Jiang Tingxi faria pinturas para álbuns que acompanham poemas dos três imperadores que conheceu: Kangxi, Yongzheng e Qianlong, cujos reinos possuem tal unidade que são habitualmente referidos como «o avô, o pai e o filho». Essa continuidade manifesta-se também na vontade de coleccionar; rever, comparar, enumerar. O pintor junta-se a essa determinação em Cem pássaros (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 304,8 x 30,48 cm) no Museu de Arte de Indianapolis. Ele terá conhecido a arte da pintura com o seu conterrâneo Yun Shouping (1633-90) e a «escola de Piling», nome antigo da terra dos dois, cujas pinturas se observam hoje em mosteiros budistas do Japão. Na inter-relação das formas que ocupam os espaços na sua pintura vê-se o objectivo expresso na primeira lei da pintura de Xie He (act. c. 500-35) Qiyun, o «movimento do espírito», comparável ao persuasivo dinamismo rítmico da dança.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA Lua sobre a água e os retratos em pares de Yan Hui Li Tieguai, «Li, o da bengala de ferro», um dos Oito imortais (Baxian) da cultura popular, possuía o aspecto andrajoso de um mendigo, que foi o corpo onde reencarnou depois do seu assistente ter queimado o seu corpo inicial julgando que tinha morrido ao encontrá-lo inanimado. Na verdade, ele tinha feito o espírito abandonar a sua forma visível, indo passear junto dos seus campanheiros imortais. A anedota — que pode ser vista como um mecanismo da memória aludindo à célebre lição do Sutra do Coração: «A forma é vazia, o vazio é a forma» — foi adoptada em populares representações que decoravam paredes de mosteiros, no processo de abraçar o Budismo no quotidiano dos dias. Na dinastia Yuan, um pintor profissional originário de Luling (actual Jian, Jiangxi) representou Li Tieguai soprando a alma para fora do seu corpo, numa pintura no Museu de Quioto (rolo vertical, cor sobre seda, 161,3 x 79,7 cm) que faz par com outra de iguais dimensões, mostrando o imortal Liu Haichan. Lado a lado eles parecem conversar. As suas feições exageradas visam provocar o espanto, um efeito emocional que se opõe às pinturas depuradas da dinastia anterior. Esse pintor, Yan Hui (activo c. 1270-1310) faria um outro impressivo retrato de Li Tieguai que está no Museu do Palácio, em Pequim (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 131,8 x 67 cm) onde avulta o olhar sombrio, extravagante e directo ao observador do imortal sentado numa rocha; uma cascata no canto superior esquerdo faz ondular as águas à sua frente. Outra pintura do mesmo autor (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 111,1 x 76,2 cm, no Museu Nelson-Atkins, na cidade do Kansas) reproduz o mesmo cenário mas agora é retratada Guanyin, a bodhisattva da compaixão, no modelo de Guanyin shuiyue. Envolta num grande halo, os olhos fechados na face serena, junto dela, um ramo de salgueiro imerso no orvalho da imortalidade repousa num vaso azul. Yan Hui também conhecido pelo nome Qiuyue, «o luar do Outono», foi como Zhao Mengfu (1254-1322) e outros seus contemporâneos, fascinado pelo «espírito dos Antigos», guyi, em especial os da dinastia Tang (619-960) de tal modo que a sua Guanyin shuiyue que medita diante da lua reflectida na água, parece ilustrar o poema de Bai Juyi (772-846) Apreciando pinturas: «Sobre a água pura, entre a luz branca os meus olhos pousam sobre a figura e tudo se esvazia. O teu discípulo Juyi determinado à conversão: cruzando vitórias e fracassos tu serás o meu mestre.» A atenção de Yan Hui à poesia nota-se também nos retratos idênticos dos poetas Hanshan e Shide no Museu de Tóquio (rolo vertical, tinta, cor sobre seda, 127,6 x 41,8 cm) sorrindo confiantes como quem sabe um segredo e de cuja existência histórica alguns duvidam, julgando tratar-se da mera compilação de ecos da alma humana, instáveis como o reflexo da lua sobre a água.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioUm tesouro da colecção de Xiang Yuanbian Huaisu (activo 730-80), o monge budista e poeta que partilhava o gosto de Li Bai de beber o vinho como veículo de inspiração e facilitador da confraternização, teria, segundo a lenda, plantado um bananal na sua terra natal para aproveitar as suas grandes folhas na ausência de papel para escrever. O seu carácter rebelde, engenhoso e excessivo seria figurado em pinturas, como no leque montado como folha de álbum de Gu Yun (tinta e cor sobre papel, 17,1 x 51,1 cm, no Metmuseum) onde ele está com ar displicente, de olhos fechados com um afastador de moscas na mão, semi-deitado nesse bananal que ele chamou Lutian an, «templo do céu verde» em que as folhas ocupam o espaço do céu e abanando com o vento tornam sensível pelo som o sopro do espírito. A Autobiografia que escreveu em 777, quando tinha quarenta anos, de que existe uma cópia modelar no Museu do Palácio, em Taipé (tinta sobre papel, 28,3 x 755 cm), tornar-se-ia numa das mais estimadas obras da arte da caligrafia no estilo cursivo (caoshu) espontâneo, dito «selvagem». No início do relato, ele refere a dificuldade que teve para satisfazer o desejo de conhecer aquelas obras de arte com que sentia afinidade e «infelizmente lamentava não ter oportunidade de olhar para as maravilhosas obras-primas escritas pelos antigos mestres» (linha 3) então decide ir até à capital num esforço e dedicação que compensou: «Então, achava amiúde textos raros e livros preciosos. O meu espírito abriu-se e iluminou-se nessa altura e senti-me livre e sem constrangimentos.» (linhas 8,9) Mas o seu próprio texto entraria nesse patamar exemplar e a sua posse cobiçada. Na dinastia Ming encontrava-se numa colecção excepcional cuja grandeza se pode deduzir da afirmação orgulhosa do erudito e influente teórico e pintor Dong Qichang (1555-1636): «Tive oportunidade de observar todas as obras originais das dinastias Jin (1115-1234) e Tang (618-906) na colecção do erudito universal Xiang Zijing.» Xiang Yuanbian (1525-90), referido pelo seu nome literário Zijing, «Filho ou mestre da capital», nascera em Jiaxing (Zhejiang) mas seria à sua casa em Suzhou que afluiriam pintores e outros visitantes curiosos de estudar pinturas e caligrafias raras. Alguns, como Qiu Ying (1494-1552), lá viveriam durante anos. Wen Jia (1501-83) dedicou-lhe uma Paisagem em 1578, como um presente (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 117,5 x 39,8 cm, no Metmuseum) quando Xiang fazia cinquenta e quatro anos. A pintura foi muito bem recebida como provam os quinze carimbos de Xiang Yuanbian. Nela estão representados entre altas montanhas dois literatos sentados no chão, conversando, e um terceiro vem chegando numa ponte. Entender-se-á; o autor da obra de arte, o coleccionador e o visitante observador e a razão da colecção: dar a ver o que o coleccionador valorizava, como a «escrita selvagem» de Huaisu.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioLuo Qilan, a vida e a arte nos aposentos interiores Cao Zhenxiu (1762-c.1822) recordou de modo admirável num conjunto de dezasseis poemas, que coligiu com a sua elegante caligrafia num álbum, acompanhados de pinturas de Gai Qi (tinta sobre papel, 24,8 x 16,8 cm, no Metmuseum), exemplos de mulheres inspiradoras. Num desses poemas ela lembrou a extraordinária calígrafa Wu Cailuan (activa em 830-845) que cuidadosamente executou cópias do famoso Dicionário de Rimas, e cujo deslumbrante talento só poderia ser explicado pelo facto de ela ser uma imortal exilada na terra para ajudar um jovem estudante pobre, com quem partiria para um mundo frio onde passariam a habitar no orvalho. O exemplo de Wu Cailuan era singularmente adequado ao tempo em que Cao Zhenxiu viveu e em que nos aposentos interiores dos palácios outras mulheres se descobriam, apesar das contrariedades do mundo dominado por homens, parte de uma insigne tradição. Uma dessas mulheres iluminadas pela arte no interior do gineceu descreveria com precisão esses obstáculos. Luo Qilan (1755-1813?), a poeta e pintora de Jiangnan, interrogou-se: «Por que é assim? Escondidas nos seus aposentos, são muito poucas as pessoas que elas vêem e escutam. Não têm amigos com quem falar ou estudar para desenvolver os seus conhecimentos. Nem têm oportunidade de explorar as montanhas e os rios para observar a paisagem e assim inspirar o seu talento literário e virtuosidade. Sem um pai valoroso ou irmãos que as ajudem a encontrar as origens e a distinguir o verdadeiro do falso, elas não conseguem cumprir a sua vocação na vida. Depois de casadas, o tempo gasto em cuidar dos pais do marido e a tratar das insignificantes questões da lida da casa, deixam-nas tantas vezes sem oportunidades de escrever poesias.» Luo Qilan, também conhecida pelo nome literário Qiu Ting (Um pavilhão no Outono», iria contrariar esse fado, tal como as carpas nadando contra a corrente até saltar a Porta de Jade e alcançando a promessa do Imperador de Jade, tornando-se ela mesma assinalável no seu mistério, como um dragão. Viúva quando tinha cerca de trinta anos, editou em 1797 a antologia Tingqiuxuan guizhongtongren ji (Poemas para o Estúdio onde se escutam os sons do Outono das minhas companheiras nos aposentos das mulheres), que recolhe poemas de dezassete autoras. Cinco pinturas como Peónia lactifora (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 87, 5 x 39 cm) e um álbum feitos por ela estão no Museu do Palácio, em Pequim. Entre os retratos dela, feitos por quem a conheceu, nota-se o rolo horizontal de Ding Yicheng, Olhando o monte Ping na Primavera, onde ela está de pé, solícita ao gesto de uma jovem à sua frente, a mão direita pousada numa grande rocha de literatos, ela observa para ser vista: «Não é fácil que os talentos dos aposentos interiores sejam conhecidos, Jogar com a tinta à luz das velas é diversão suficiente.»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO rolo de You Qiu onde vai a bagagem de um imortal Ge Hong, também conhecido como Ge Zhichuan (283-343), autor do dicionário Ziyuan “Jardim de caracteres”, é também autor de um conjunto de textos designados Baopuzi “Mestre que abraça a simplicidade”, divididos em duas partes que recolhem: de um lado, Capítulos exteriores, Weipian – entre outros os fundamentos do humanismo confuciano que designou como «o ramo» (mo); e do outro Capítulos interiores, Neipian – a filosofia e a incontida imaginação no relato de ocultas práticas daoístas que designou «o tronco» ou «origem» (ben) tal como circulavam no seu tempo, na região de Jiangnan. De si mesmo escreveu (Capítulos exteriores, 50): «Sou uma pessoa simples, aborrecido por natureza e gaguejo. Minha aparência física é desagradável e nem sou suficientemente competente para me gabar ou polir os meus defeitos. Meus chapéus e sapatos andam sujos; e as roupas, por vezes ainda piores, nem podem ser remendadas. Mas isto nem sempre me incomoda. Estilos de roupas mudam muito depressa e muitas vezes. Num momento são largas no pescoço e o cinto é largo; noutra altura são ajustadas e com mangas largas; mas de novo compridas, varrem o chão ou tão curtas que nem cobrem os pés. Sendo um homem simples, o meu plano é preservar a regularidade e não seguir as modas do dia. O meu discurso é franco e sincero, não me entrego à galhofa. Se não encontrar o interlocutor certo, sou capaz de ficar o dia todo em silêncio. Esta é a razão por que os meus vizinhos me chamam ‘o que abraça a simplicidade’, Baopu, nome que uso como pseudónimo naquilo que escrevo.» Demonstrava assim que os antigos imperadores, Qin Shihuang ou Han Wudi na sua aspiração à imortalidade – xian, se iludiam ao não cultivarem o Dao. Wang Meng (1308-85) figurou-o a caminho de atingir esse objectivo (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 139 x 58 cm, no Museu do Palácio em Pequim). Diante de densas e agitadas montanhas, ele vai sobre uma ponte, ao lado mas ainda não sentado sobre um veado, conhecida montada de deuses. Também a sua esposa com um filho ao colo, vem sentada numa vaca e outros criados em redor transportam objectos da sua casa em mudança. Mas a constante republicação do Cânone Daoísta (Daozang) de que os seus escritos faziam parte, inspiraram outros como You Qiu (c. 1525-80) que no rolo horizontal (tinta sobre papel, 533,4 x29,5 cm, no Museu Britânico) o mostra sentado numa mula, nesse trânsito a caminho do Monte Luofu (Guangdong), onde terá alcançado a imortalidade. Seis criados acompaham-no, carregados de toda a espécie de objectos associados a um erudito funcionário, cujas vestes enverga sob um casaco de pêlo aos ombros. Como mestre do Dao é identificado por objectos como ceptros ruyi ou bastões em crú. De modo subtil toda a natureza se parece inclinar para trás à passagem da caravana que mostrava doméstica a vida do imortal.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA princesa que admirou pinturas de Liu Songnian Xiangge Ciji (c. 1283-1331), a princesa, neta e irmã de imperadores da dinastia Yuan deu, de forma inédita para uma mulher, uma festa literária no dia vinte e oito de Abril de 1323 no templo Tianqing, nos arredores da capital, Dadu. Como era habitual nessas reuniões, pessoas educadas na já então milenar cultura poética e visual dos Han, liam, escreviam e examinavam caligrafias e pinturas, reconhecendo-se nessa memória, descobrindo-se eles mesmos parte desse desenrolar significante do tempo. A partir do mítico Encontro do Pavilhão das orquídeas promovido pelo preclaro calígrafo Wang Xizhi, outros encontros seriam evocados na imaginação, um deles, seria tipificado com o nome de Reunião elegante no jardim do Oeste, Xiyuan Yaji. Uma festa que teria ocorrido no período Yuanyou (1066-93) do imperador Zhezong, à qual compareceram dezasseis ilustres figuras da literatura e da pintura como Mi Fu (1052-1107), que a terá registado por escrito, ou Li Gonglin (1049-1106), que a teria reconstituído numa pintura. Uma dessas recrições da famosa reunião elegante, possivelmente feita na dinastia Ming, é atribuída de maneira espúria, ao pintor da corte dos Song do Sul, Liu Songnian (1174-1224). Desenrolando esse rolo horizontal (tinta e cor sobre seda, 24,5 x 203 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé) desvelam-se uma série de emoções ligadas a cada uma das personagens retratadas, desde Su Shi, com o seu distintivo chapéu preto alto (Dongpo jin) escrevendo, passando por Mi Fu escrevendo sobre uma pedra até, no fim do rolo, o grande monge Fayun Faxiu, também conhecido como Yuantong (1027-1090) conversando sobre Wushenglun, o conceito budista de «não ter nascido». A plausibilidade da atribuição resulta de certas impressivas pinturas do mesmo autor. Liu Songnian, o pintor da corte de Hangzhou onde se encontrava a Academia imperial a que pertenceu, primeiro como estudante e depois como «pintor às ordens» daizhao, seria por essa razão intérprete priviligiado da cultura dos Song do Sul, a quem seriam atribuídas tantas outras pinturas que correspondem a esse gosto. Entre elas, os três retratos de luohans (sânscrito; arhat) datados de 1207 em formato de rolo vertical a tinta e cor sobre seda, que se encontram no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, e que revelam como estava a ser acolhido o Budismo na pintura. Num deles, diante de grandes folhas de bananeira que quando o vento passa produzem um som que torna sensível o seu sopro, e de um biombo, a figura nimbada de um luohan sentado, de dimensão exagerada em relação à pessoa que à sua frente desenrola um escrito, que por não ser identificado sugere o indizível. O olhar da princesa Xiangge que queria pertencer a essa herança deteve-se diante dessa pintura, compreendeu, e apôs o seu carimbo Huangjietushu, «Da biblioteca da irmã mais velha do imperador».
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA missão diplomática aos Jin recriada por Yang Bangji Wang Hui (1632-1717), que foi convocado para a capital para dirigir uma das maiores e mais complexas pinturas feitas sobre um rolo de seda (67,8 x 2227, cm, tinta e cor, no Museu do Palácio Nacional, em Pequim) para ilustrar o alardo da corte na primeira Viagem ao Sul do imperador Kangxi realizada em 1689, imprimiu o seu prestigiante carimbo numa outra antiga pintura cuja não menor complexidade é de outra natureza. Esta pintura onde também figura, entre outros, o ilustre carimbo do mestre de Suzhou Wen Zhengming (1470-1559) é um objecto raro da pintura narrativa de paisagens, resultado de um tempo e uma conjuntura histórica invulgar. O rolo a que, na ausência de qualquer inscrição contemporânea, é conferido o título Missão diplomática ao território dos Jin (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 26,7 x 142,2 cm, no Metmuseum) mostrando um lugar aprazível entre montanhas envoltas em névoas, num estilo que suaviza as monumentais paisagens dos Song do Norte, ilustra afinal uma situação trágica. Que o coleccionador Chen Rentao (1906-1968) esclarece, num comentário colado no rolo: «Estendendo esta pintura sente-se vivamente a humilhação do derrotado regime dos Song e a arrogância dos Jin, através do silêncio da tinta e do pincel.» A sua autoria, na ausência de assinatura ou carimbo do autor, é atribuída a Yang Bangji (c.1110-1181), o filho de um alto funcionário de origem Han da dinastia Song que quando ela foi derrotada em 1127, e a corte foi de Kaifeng para o Sul estabelecendo a nova capital em Hangzhou, e a sua família executada, escapou escondido num mosteiro budista. Nascido em Huayin (Shaanxi) foi também funcionário, agora ao serviço dos Jin (Jurchens) e beneficiou como se percebe na pintura, do acesso a colecções privadas e às que ficaram guardadas em palácios imperiais, deixadas atrás pela dinastia em fuga. Yang Bangji retrata um breve evento num posto de descanso no caminho que os diplomatas da dinastia Song do Sul faziam até à corte dos Jin, além da fronteira constituída pelo rio Huai, entre os dois grandes rios Huanghe e Changjiang. Três altos pinheiros crescem ao lado de uma construção com uma mesa no meio, já vazia, diante da qual quatro homens a cavalo, com as vestes e as cores que distinguem os graus que possuem os funcionários dos Song, como o púrpura do mais graduado ao verde ou branco, preparam-se para partir. Um homem de pé levanta o braço em despedida. À sua frente, do lado esquerdo dois cavaleiros com chapéus dos Jin vão enérgicos, um deles com um rolo às costas; do lado direito, músicos cujos instrumentos como as flautas típicas dos Jurchen mas também o qin dos Han, o que faz datar a pintura dos anos de 1141-61 quando os soberanos Xizong e Hailing que reinaram entre 1135 e 1161 adoptaram a complexa e fascinante cultura dos Song que Wang Hui continuou.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAs Deslumbrantes Montanhas de Verão de Qu Ding Hongli, que reinaria como o imperador Qianlong (r.1736-95), estudioso atento da cultura que desejava preservar e restaurar, sabia de um outro imperador coleccionador e apreciador das artes cujos traços, em pinturas, caligrafias ou em carimbos, que testemunhavam o seu olhar arrebatado diante de rolos de pinturas, reconhecia e anotava como inolvidáveis. Fê-lo, por exemplo, numa minuciosa e deslumbrante pintura que pertencera à sua colecção e à qual se quis vivamente associar, escrevendo sobre ela no ano de 1748 numa rara grelha de linhas brancas, o texto: «Elegante antiguidade cujo fragrante perfume ainda se sente, tantos anos depois. Os carimbos Xuanhe, do imperador Huizong, fazem-na ainda mais preciosa. As figuras nela aparecem cheias de vida, Como se as árvores e as pedras fossem retiradas da própria natureza, Sente-se a humidade da luxuriante vegetação das montanhas de Verão; Dos desfiladeiros vem o murmúrio do ritmo repetitivo das ondas ao sol. Empoleirados lá nas alturas, surgem amplos pavilhões. Como nos sentiriamos debruçados na vedação apreciando semelhante panorama?» Essa pintura, Montanhas de Verão (Xia Shan tu, rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 45,4 x 115,3 cm, no Metmuseum), que não tem nenhuma inscrição, carimbo ou assinatura do seu autor é atribuída a Qu Ding (c. 1023-c. 1056), um discípulo de Yan Wengui (c.967-1044) cujo nome consta do rolo, e será uma de três com o mesmo título no Catálogo de pinturas da era Xuanhe, «Afirmação da harmonia», de Huizong (Xuanhe Huapu), de 1120, que regista cerca de 6396 pinturas de 231 artistas. E nela se pode observar aquela atenção ao aspecto mutante das montanhas ao longo do ano que os tratados da dinastia Song do Norte recomendavam, «para perceber o misterioso sopro dos próprios princípios da Criação» (Han Zhuo em 1121). Qu Ding vai pacientemente figurando, sob altivas montanhas de «árvores luxuriantes, abundantes e cheias de sombras», um dia de Verão, com a sua «coloração azul-verde que parece derramar-se por todo o lado» e as «nuvens e vapores ricos e densos» como Guo Xi (1020?-1090?) descreve no Linquan Gaozhi, a Grande Mensagem sobre Florestas e Nascentes. Da direita para a esquerda, numa progressão em que o observador se vai apercebendo de detalhes, há pássaros voando em bandos, pescadores com as suas armadilhas, aldeias, palácios e mosteiros surgindo das brumas. E ligando tudo, pontes, em número de cinco que no Yijing corresponde a Esperando, «é favorável atravessar um grande rio». Sobre uma dessas pontes, sentado numa mula, a reconhecível figura de um homem de cultura disponível para se deixar assombrar pelas mutações da natureza, tão exuberante e assertiva no Verão, como fizeram poetas como Su Shi que notou: «É bem verdade que estas montanhas são encantadoras, e como nos agradam ao mudar a sua face.»