Os bambus de Ke Jiusi que se cruzam ao crescer juntos

Wu Zhen (1280-1354), um dos «Quatro mestres da dinastia Yuan», viveu em Jiaxing (Zhejiang) como muitos outros literatos desprezados pela burocracia da dinastia Mongol, da forma que se vê em muitas das suas pinturas: isolado como um eremita numa embarcação de pesca «Movendo lentamente o remo, pensando na casa para onde queria voltar, Pondo de lado a cana de pesca, como quem já não quer mais pescar.»

Um seu vizinho e pintor chamado Sheng Mao (1313-1362), de Lin’an (actual Hangzhou), que se mudara para Jiaxing, vivendo como profissional dessa arte, tinha sempre em mente o ideal dos pintores literatos. Em duas pinturas no Museu Britânico que lhe são atribuídas vê-se numa um serviçal no meio da floresta, levando um livro na mão (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 99,6 x 29,2 cm), noutra um literato com as mãos escondidas pelo frio caminhando numa ponte coberta de neve em direcção a um pavilhão.

O nome dado à pintura é: Lendo, alumiado no reflexo da neve. Em conjunto, o título e as duas pinturas parecem aludir a uma história referida por Liu Yiqing (403-444) em Shishuo Xinyu, «Novo relato das lendas do Mundo», sobre a figura histórica de Sun Sheng (c.302-373) que desde a mais tenra infância até à velhice sempre foi visto com um livro na mão e tão pobre que de noite, no Inverno, aproveitava o reflexo do luar sobre a neve para iluminar a sua leitura.

Um exemplo de persistência da vontade de conhecer certamente apreciado pelos literatos, mas também de modo notável por um imperador da dinastia Yuan que reinou por duas vezes, chamado Tugh Temur (1304-1332) conhecido como Wenzong. E que, sendo estrangeiro, cultivou as artes, os costumes e tradições locais. Dos seus esforços para impôr a cultura local aos governantes mongóis destacar-se-ia a criação, na Primavera de 1329, da Kuizhang ge, a «Academia do pavilhão da estrela da literatura», que entre outras actividades como a compilação de textos clássicos também nomeou literatos capazes de reconhecer, estudar e comentar obras de arte. Alguns foram pintores, como um letrado de Zhejiang.

Ke Jiusi (1290-1343) foi um desses eruditos (boshi) do Pavilhão Kuizhang de quem hoje se podem ler os comentários sobre pinturas e caligrafias de mestres antigos como Jing Hao (c.855-915) ou Jiang Shen (c.1090-1138). Nas suas próprias pinturas é notória a intuição na composição da paisagem, de que se vê um exemplo no Manual do jardim da mostarda.

Ou num rolo vertical onde pintou dois altos caules cruzados de Bambus para o «Pavilhão da Virtude oculta» (Qingbige, tinta sobre papel, 58,5 x 132,8 cm, no Museu do Palácio em Pequim). Nessas duas hastes que crescem junto de sólidas pedras e que ao subir se cruzam, e em que aplicou o rigor da disciplina da caligrafia, terá espelhado a vontade da corte em acompanhar os grandes mestres solitários como Wu Zhen.

30 Jun 2025

O Tempo de Cozedura do Sorgo Amarelo

Lu Dongbin, o imortal, esperava sentado numa estalagem em Handan, a cidade de Hebei no termo de Hanshan, a montanha púrpura-avermelhada. Trazia uma almofada de porcelana e esperava, saber-se-ia depois, para fazer uma demonstração das possibilidades oferecidas na finitude do fluir dos dias.

Sem saber que vinha para um encontro luminoso, Lu Sheng estava imerso em pensamentos obscuros suscitados por repetidos reveses da fortuna, mas chegaria com a precisão da estrada que o colocaria face a face com o paciente imortal. Entabulando uma breve troca de palavras, Lu Sheng percebeu que o homem amável, que estava à sua frente com as vestes de um sacerdote daoísta, se disponibilizava para escutar as suas queixas. E o desiludido viajante contou como tinha, por pouco, reprovado o exame jinshi que lhe permitiria uma vida tranquila ao serviço do Império e que agora nem sequer admitia imaginar um futuro.

Depois de o escutar, Lu Dongbin estendeu-lhe a almofada que trazia e disse-lhe para descansar um momento enquanto uma reconfortante papa de sorgo amarelo cozia ao lume. Logo o viajante adormeceu. E sonhou o sonho mais consolador: que passava o exame imperial, conhecia a mais bela e inteligente esposa, que lhe daria muitos filhos, com quem viveria muitos anos num bem remunerado e tranquilo posto imperial. Subitamente porém despertou do sonho que lhe parecia ter durado uma vida inteira. Perguntando ao mestre daoísta quanto tempo tinha dormido, este respondeu-lhe que a papa de sorgo ainda não tinha acabado de cozer.

O antigo relato em que um imortal permite a um mortal viver, de facto, uma outra vida durante um curto espaço de tempo para lhe mostrar o carácter ilusório e transitório das ambições para ele próprio deduzir um outro caminho, seria retomado em 1601 pelo dramaturgo Tang Xianzu (1550-1616). Mas era há muito conhecido como um dos muitos provérbios de Handan, reduzido a quatro breves caracteres: 黄粱美梦 huangliang meimeng, «um sonho bom, o sorgo amarelo».

Huang Ding (c.1650-1730), um pintor de Changzhou, fez uma série de pinturas «à maneira de» augustos pintores do passado como Wang Meng, Dong Yuan ou mesmo paisagens no estilo inconfundível de Nizan (rolo vertical, tinta sobre papel, 92,7 x 35,1 cm, no Instituto de Arte de Minneapolis) como querendo abarcar sob o seu pincel a longa história da pintura feita durante um tempo largo.

Nesse tempo circulava um pequeno álbum com anotações do influente Dong Qichang, mas que é atribuído a Wang Shimin (1592-1680) intitulado Xiaozhong xianda, «Revelação de coisas grandes em pequenas», que continha, num formato reduzido, recriações de obras de grandes mestres. Dar a ver algo muito grande pode ser feito num formato pequeno, mas uma vida inteira em pouco tempo? Porque o que viaja é o espírito, Lu Dongbin fê-lo em menos de uma hora, o tempo que demora a cozer o sorgo amarelo.

16 Jun 2025

A Guanyin de branco feita no traço preto de Fang Weiye

Du Mu (803-852), o poeta de Chang’an que na sua carreira de funcionário imperial foi sendo enviado em sucessivas missões para postos distantes da capital, mostrou muitas vezes a sua incomodidade face às repetidas separações. Num dos seus mais admirados poemas ele olhou para a antiga narrativa contada desde a dinastia Han, que explica um tradicional festival celebrado no sétimo dia da sétima lua, em que uma vez por ano se actualiza a reunião de um casal, do vaqueiro Niulang e da tecelã Zhinu, identificados com duas estrelas brilhantes separadas pela Via Láctea ao longo do resto do ano.

Esse festival, Qixi jie, «A noite dos setes», é conhecido por ser uma ocasião para relevar publicamente as virtudes e os trabalhos de senhoras, então habitualmente confinadas ao gineceu. Numa noite dessas o poeta reparou numa rapariga solitária:

«Uma vela prateada brilha no Outono

diante do frio painel pintado,

Segurando um pequeno leque de gaze

leve de seda, afasta as traças.

Das escadas chega uma aragem

fresca como a água,

Ela senta-se e contemplando

e entre as estrelas

descobre Niulang e Zhinu.»

As outras mulheres celebrando em grupos, dedicavam-se a variadas actividades. Além da contemplação das estrelas, faziam ofertas aos deuses, recitavam orações ou dedicavam-se à tecelagem.

Tudo isso num ambiente de reverência e alegria que se pode observar, por exemplo, num rolo horizontal de Ding Guanpeng (1708-1771), Senhoras na noite dos setes apelando aos seus talentos (tinta sobre papel, 28,7 x 386,5 cm, no Museu de Xangai). De entre as tecelãs haveria porventura algumas, em especial as de famílias educadas que estariam tecendo quem sabe até com cabelos humanos, uma amada figura do budismo, a bodhisattva Guanyin.

De tal forma as adeptas se sentiam próximas daquela que «contempla os sons» dos que lhe dirigem pedidos, adiando a sua libertação para ajudar a iluminação dos outros, que refaziam a sua figura como uma forma de ascese.

Fang Weiyi (1585-1668) foi uma literata, poeta e pintora que fazia parte desses literatos que, com a sua erudição artística, permeavam o budismo chan. Nascera numa família de altos funcionários e casara cedo em 1602 mas no mesmo ano ficara viúva e perdera a filha desse casamento.

É possível que esses «desgostos do coração» tenham aprofundado a sua fé budista, vivida na reserva do ambiente doméstico. Entre os inúmeros exemplos dessa devoção contam-se poemas e pinturas figurando luohans e um retrato de Guanyin vestida de branco (rolo vertical, tinta sobre papel, 56 x 26,6 cm, no Museu do Palácio, em Pequim). Figurada num contraste entre grossos e ondulantes traços de tinta preta para mostrar as suas largas vestes brancas e a minúcia leve com que retrata a sua face acolhedora. E o rosto tão humano, tanto como o gesto livre das vestes, revela uma estranha transcendência.

9 Jun 2025

Os bambus acompanhados de Tan Zhirui

Guan Daosheng (1262-1319), a pintora e poeta da dinastia Yuan, esposa do não menos célebre pintor Zhao Mengfu (1254-1322), chegou a fazer pinturas murais em paredes de templos budistas porém não seriam essas figuras desenhadas em fortes pedras que resistiriam à passagem do tempo mas aquelas que fez sobre frágeis folhas de papel ou seda que, enrolados e atados com uma fita de cetim foram passados de mão em mão.

E com uma mão, desenrolados, frequentemente no formato intímo como um segredo designado shoujuan, o «rolo horizontal», em que uma pintura ou uma caligrafia se destina ao olhar de um único observador. Dessa maneira subtil contribuiu para a criação e fiel transmisão da preciosa cultura literária e visual acarinhada durante séculos pelo uso do pincel.

A sua mais comentada pintura «Floresta de bambus entre chuva e nevoeiro» (rolo horizontal, tinta sobre papel, 23,1 x 113,7 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé) em que se vê um bosque de bambus na margem de um rio, devido a uma alusão à lenda das fiéis viúvas do lendário rei-sábio Shun que se afogaram no rio Xiang, depois de ele aí ter morrido, manchando os bambus das margens com as suas lágrimas de sangue, viria a ser entendida como uma figuração de uma outra fidelidade, a do amor conjugal.

E no modo único como pintava grupos de bambus inseridos na paisagem, um tema recorrente nas suas obras, houve quem reparasse na análoga motivação que pareciam ter os de um singular pintor chamado Tan Zhirui (c. de 1275- activo entre o fim do século XIII, início do XIV), não inscrito em registos tradicionais de pintores mas que no Japão seria percebido como um mestre genuíno da centenária arte do pincel.

Esse reconhecimento seria atestado através das palavras inscritas nas suas pinturas pelo prestigiado mestre do budismo Chan, conhecido pelo seu nome monástico Yishan Yining (1247-1317) que pode ser traduzido como «De preferência, uma montanha».

Tan Zhirui é o autor de uma invulgar pequena pintura que mostra Bambus na neve (tinta sobre papel, 31,5 x 20,6 cm, no Smithonian) em que Yishan Yining escreveu o poema:

«Na neve gelada, escassamente espalhados,

Uma míriade de jades verticais e compactos.

Durante todo o período do Inverno,

O bosque denso brilha, cintilante.»

Ao contrário da clássica representação de bambus isolados crescendo agarrados a rochas, uma fórmula que se refere à recta personalidade do junzi, o «homem justo», aqui os bambus referir-se-ão à anelada vida em comum em mosteiros.

Guan Daosheng evocaria os seus próprios filhos ao escrever, junto de uma sua pintura: «No dia em que foste embora, bambus tinham acabado de ser plantados,/ Os bambus crescendo tornaram-se num bosque, tu ainda não voltaste./ A minha face de jade desvanecendo dificilmente poderá ser restaurada,/ Ao contrário das flores que caem para de novo florescer.»

3 Jun 2025

Fang Wanyi e a Importância da Flor do Loto Branco

Luo Ping (1733-1799), o inclassificável pintor de Yangzhou, no fim da sua vida já viúvo, monge budista e envelhecido, fez-se retratar segurando na mão uma flor branca de um loto. Nessa altura vivendo num mosteiro, ele já assinaria pinturas com o nome Huazhisi seng, «o monge do templo das flores». E de todas as flores foi o loto branco, bailian que o acompanhou como se fora um veículo que lhe abria a capacidade de se comover com a beleza das coisas do Mundo, com as pessoas.

Porque Bailian era o nome de pincel da mulher com quem se casara aos dezanove anos. Zhu Shuzhen, a poeta do século doze escrevendo sobre a trágica história da concubina Yang Guifei, falou desse olhar iluminado sobre a beleza que é uma fresta para o espírito: «Flautas e instrumentos de cordas faziam levantar por momentos a sua saia de brocados,/ O seu corpo cheio e leve ao mesmo tempo revelava suas pernas prontas para voar./ E se o luminoso imperador Minghuang a tivesse visto nessse dia,/ Os bárbaros não teriam sido capazes de matar Yang Guifei.»

Um olhar iluminado terá sido o que Fang Wanyi (1732-1779), com o seu nome Bailian, terá dado a Luo Ping, o que se viu nas suas ousadas pinturas. Ela era, como ele, poeta e pintora e os dois fizeram muitas pinturas em comum.

Nas pinturas que ela fez sozinha destacava-se como motivo preferido a flor meihua, da árvore prunus mume traduzida habitualmente como ameixieira que, porque florescem ainda no fim do Inverno, era um exemplo de longanimidade. De resto, toda a família, o casal e os três filhos se dedicaram à pintura dessa outra flor branca.

Fang Wanyi e o seu marido Luo Ping participavam nos habituais encontros sociais entre pintores, poetas e escritores com os ricos mercadores de sal de Yangzhou. Foi o caso de uma festa que ocorreu na Primavera de 1775 na propriedade do comerciante Ye Yongting. O nome escolhido para a sua residência Shuizhuang, «a quinta de alguém», possuía o carácter de uma pergunta e uma alusão à doutrina budista.

Como o dono escreve numa nota autobiográfica, queria colocar em evidência a constância do espaço da quinta com a impermanência do seu ocupante. Dessa reunião seria feita uma memória escrita que neste caso resultou em dois álbuns com vinte pinturas e trinta e oito caligrafias de vários convidados e entre eles Luo Ping e Fang Wanyi (tinta e cor sobre papel, 19 x 24,5 cm cada um, vendidos na plataforma Bonhams).

Alguns dos que escreveram, reforçando a ideia de transitoriedade expressa pelo anfitrião, usaram a expressão canghai sangtian, «mar azul tornando-se um campo de amoreiras», o provérbio que alude às grandes mudanças que ocorrem no decurso do tempo. Quem sabe se foi aquilo que permanece no tempo que levou Luo Ping a segurar na mão uma flor de loto branca ou foi ele que quis distinguir a palavra que na vida breve lhe iluminou o olhar.

26 Mai 2025

As andorinhas suspensas no ramo frágil de Li Shan

Liu Yuxi (772-842), o poeta de Luoyang (Henan), contemplando os céus reparou em certos pássaros que gostavam de habitar junto das famílias e indiciavam uma permanência dentro da constante mudança das estações. Observando os hábitos das andorinhas e a decadência das classes altas em Jinling, escreveu nos dois últimos versos do poema A rua das mansões das vestes negras:

Sob os beirais dos poderosos Wang e Xie

antes encontravam-se andorinhas,

Agora voando, buscam tantas vezes

as nossas humildes moradas.

Há muito que era reconhecida essa proximidade de que fala, por exemplo, a lenda fundadora da primeira dinastia de que há registos escritos e que está na origem da linhagem dos Shang (c. 1500-1050 a. C.) com a capital em Yin (actual Anyang, Henan).

Aí, segundo o historiador Sima Qian, uma mulher chamada Jiandi teria comido um ovo de andorinha (yan), antes chamada simplesmente xuanniao, «pássaro negro», dando depois à luz um varão chamado Xie, que foi o antepassado dos fundadores da dinastia. Ao longo do tempo, em diversas artes como a arquitectura, a pintura ou a poesia, desdobraram-se repetidas referências a essa relação de percebida amizade com os pássaros negros.

Em tempos de inquietação, como os que se seguiram à transição dinástica Ming-Qing em que pintores identificados com os perdedores e pertencentes à anterior família reinante, como Zhu Da (1626-1705) conhecido como Bada Shanren, encontraram novas, expressivas, formas de representação aproveitando a fluidez do traço do pincel caligráfico apurado ao longo das dinastias Tang e Song e que nos Ming Dong Qichang tornaria um ideal.

No epítome da sua velocidade, esse traço era designado feiba, o «branco voador», o que deixava no papel apenas os vestígios da passagem do pincel. Um pintor de Xinghua (Yangzhou, Jiangsu) admirador de Bada Shanren mostrou em várias pinturas a mesma atitude independente de cânones que levaria a que fosse considerado como um dos Yangzhou baguai, «os oito excêntricos de Yangzhou».

Li Shan (1686- c.1756) que usaria o nome artístico Futang, que se pode traduzir como «recuperador de relações familiares», no rolo vertical Andorinhas (tinta e cor sobre papel, 134,9 x 33 cm, no Metmuseum) pintou devagar, com cuidado duas andorinhas pousadas num ramo feito com a espontaneidade da rapidez do traço usado para escrever com o pincel.

E tal como em muitas pinturas de Bada Shanren, as palavras que nele estão escritas operam em harmonia com a figuração, e tal como as andorinhas no ramo dependem uma da outra. Neste rolo Li Shan escreveu: «Assim que chega o Outono os salgueirais começam a murchar, cruelmente,/ Como é que eles se comparam à brisa primaveril e ao canto das andorinhas?/ Não irei pintar de novo a dor das andorinhas pelo regresso do Outono;/ Neste mundo as separações e as partidas são o mais dificíl.»

12 Mai 2025

Fang Cong e o que está dentro e fora do portão

Bai Juyi (772-846), o poeta da dinastia Tang atento às mais pequenas alterações da vida quotidiana, no poema em que celebra a renovação da casa que acabara de comprar, na Primavera, termina com os versos:

«Se há uma coisa que convém ao meu espírito,

São dez mil complicações parecerem esquecidas.

Supondo que para lá do portão da minha residência,

Algo acontece – nada saberei sobre isso.»

E esse portão de uma casa ou de um mosteiro, muitas vezes enclaustrando um jardim, um espaço mentalmente ordenado, mais do que um limite fisíco marcava uma fronteira espiritual.

Ao longo dos séculos do regime imperial esse ideal de sentir-se longe estando perto, perduraria na vida de literatos que gostariam de viver livres como eremitas, mas que não se podiam retirar das cidades devido às suas obrigações com o governo imperial.

Foi esse também o caso do seu contemporâneo Pei Du (765-839), que escreveu num poema;:

«No caminho para o meu portão

avista-se um rio límpido,

Velhas árvores crescem uniformes

em redor dos beirais de telhados de colmo.

A poeira vermelha voa

mas não chega tão longe,

E de vez em quando escuta-se

o chilrear de um passarinho.»

O eminente pintor e teórico Dong Qichang (1555-1636), citou muitos anos depois os versos de Pei Du no rolo vertical Paisagem (tinta sobre papel, 130,5 x 39,2 cm, no Smithonian) feito para um amigo que o visitou em Xangai, pouco depois do Ano novo de 1617.

Nele, não se vê nem um portão nem qualquer pessoa mas nas margens do rio que domina a representação, em primeiro plano, um salgueiro-chorão assinala a presença de uma ausência. Esse mesmo salgueiro que se encontrará mais tarde em várias pinturas de um dos pintores da corte de Qianlong.

Como na Paisagem de 1770 (tinta sobre papel, 26,3 x 33,3 cm, no Museu Cernuschi) em que o uso do pincel com pouca tinta e uma habitação vazia evocam a aparente simplicidade da pintura de Dong Qichang, executada porém com uma calculada disposição geométrica dos vários planos.

Fang Cong (c.1749-1790) de Zhejiang chegara à corte em 1736 com outros pintores que se destacariam como Zhang Zhongchang ou Ding Guanpeng e mereceria a aprovação de Qianlong, notada em poemas que o imperador escreveu sobre as suas pinturas.

Sobre uma sua Paisagem de neve, feita numa folha de álbum (tinta e cor sobre papel, 26 x 32,8 cm, no Museu Cernuschi) percebe-se a vantagem de estar abrigado atrás do portão mas a beleza do cenário branco provoca uma inquietante indecisão.

Tal como o salgueiro-chorão designado liu, que era usado em despedidas, dada a homofonia com uma palavra que significa «fica», embora a pessoa vá partir. Mesmo protegidos dentro de casas, por vezes enclausurando um pátio pelos quatro lados (siheyuan), por trás do portão o espírito voa pressentindo que há algo lá fora que é importante e não deve ser perdido.

6 Mai 2025

Shen Quan, o Pintor Itinerante, Erudito e Popular

Kumashiro Yuhi (1712-1772), o Japonês que viveu em Nagasaki no tempo do sakoku «o país acorrentado», a política de auto-isolamento imposta pelos shoguns Tokugawa do período Edo (1603-1867), deixou-se impressionar pelas poucas pinturas estrangeiras que só pelo porto da sua cidade eram permitidas entrar.

Nascido numa família de intérpretes da língua chinesa (totsuji), função a que também ele estava destinado, cedo pecebeu que a sua afinidade, além das palavras do grande país do outro lado mar, estava com essa arte visual. Com a sua imensa riqueza de sentidos, histórias e possibilidades de expressão das mais sensíveis emoções despertadas pela vida que passava diante dos seus olhos.

Apesar da política de fechamento, já antes tinham chegado os monges pintores do chan que em 1661 haviam fundado o templo de Manpukuji, transmitindo o seu particular e sofisticado entendimento da pintura. Nesse tempo e a pedido das autoridades locais, veio para a sua cidade um pintor de Deqing /Zhejiang) chamado Shen Quan (1682-1760) cuja singular abordagem à arte se situava num inesperado cruzamento entre o conhecimento histórico, científico e uma representação artística que integrava aspectos decorativos e elementos da liberdade da pintura dos literatos.

Exemplar da adesão de Kumashiro à cultura aprendida com Shen Quan é a pintura horizontal montada num rolo vertical, Xiwangmu, a «Rainha Mãe do Oeste em voo» (tinta e cor sobre seda,64 x 99,3 cm, no Museu Britânico) onde se citam modos de fazer ligados a tempos diversos e codificados elementos visuais dessa mitologia estrangeira.

Sob um pinheiro, árvore dos literatos, abraçada por um pessegueiro ligado à ideia da longa vida, uma serviçal junto de um veado que, porque as suas hastes renascem depois de cair, símbololiza a perseverança, estende um pêssego à raínha mãe que paira entre nuvens etéreas sobre as águas. E na maneira diversa como são representados nota-se, entre outros, o estilo vigente no fim da dinastia Yuan.

Shen Quan chegou a Nagasaki, de acordo com os minuciosos relatos locais, no dia três de Dezembro de 1731 e partiu a dezoito de Setembro de 1733, mas esse curto espaço de tempo foi suficiente para deixar o seu legado na forma de uma «escola» designada Nanping, a partir do seu nome artístico. Pintores que adoptaram a sua exigente concepção da pintura que equilibrava o naturalismo com o artificialismo.

No seu rolo vertical Macieira brava em flor, rosas da China e um par de pássaros (tinta e cor sobre seda, 94 x 107,3 cm, no Metmuseum) estão figurados elementos cujos nomes formam uma homofonia num ideograma para desejar «longa vida para os teus pais». Nele avulta a elegante rosa chinensis que não se distingue pelo perfume mas pelo seu sedutor florescimento incessante. Renovando a sua beleza desde a Primavera tardia até às primeiras geadas.

28 Abr 2025

Liu Cai e as flores de pessegueiro caídas na água

Shen Zhou (1427-1509), o influente mestre das artes do pincel de Suzhou, num rolo de caligrafia aponta um facto para a origem de um famoso intercâmbio de cerca de noventa poemas entre literatos, despertados pela observação das flores caídas, luohua shi:

«Na Primavera do ano de 1505 estive doente um mês inteiro. Quando recuperei, as flores das árvores tinham todas caído cobrindo o chão de pétalas vermelhas e brancas. Olhando a sua decadência sem ter presenciado o seu desabrochar, não podia deixar de me sentir triste. Esse encontro com as flores caídas inspirou-me na composição de versos.»

E não apenas versos como se pode ver numa página de álbum intitulada Sentimento poético sobre as flores caídas (tinta e cor sobre papel, 35,9 x 60,1 cm, no Museu de Nanquim) onde surpreendemos um literato num promontório de olhar suspenso em distantes montanhas azuis e no chão à sua volta pontos cor-de-rosa, indicando flores que ele já não está a contemplar.

Os dez poemas, que iniciaram a longa e florescente conversa, resultado da percepção das pétalas ao vento como uma silenciosa procissão escoltando a partida da Primavera, inseriam-se numa corrente que inspirara, por exemplo, poemas de Du Mu (803-852) e continuaria no paroxismo sentimental da personagem Lin Daiyu do Sonho do quarto vermelho, de Cao Xueqin (1710-1765), que cavou na terra um buraco para sepultar flores mortas.

Um pintor da corte do imperador Huizong (r.1100-1125) abrira uma outra perspectiva ao mostrar o que aconteceria quando se, em vez de caírem na terra, as flores caísssem nas águas de um rio. No rolo horizontal Peixes a nadar entre flores caídas (tinta e cor sobre seda, 26,4 x 255,3 cm, no Museu de Arte de St. Louis, Missouri) o pintor inicia essa visão do mundo submerso com um ramo de flores de pessegueiro caído na água. Um literato observando a pintura podia recordar imediatamente a utopia da Fonte das flores de pessegueiro descrita no poema de Tao Yuanming (365-427) e perceber que estava entrando num desconhecido e grato lugar de felicidade.

Liu Cai, a quem é atribuído o rolo, distinguiu-se nessa recriação do mundo marinho habitado por peixes e como tal referido em catálogos imperiais. O seu olhar único perduraria além da sua vida como no rolo horizontal Escola de peixes a brincar alegres entre plantas aquáticas (tinta e cor sobre seda, 29,7 x 231,7 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé) que datará já da dinastia Ming.

De ambos os rolos, no entanto, se desprende a mesma sensação de leveza na facilidade dos peixes deslocando-se na água. No rolo de St Louis, depois do ramo de pessegueiro, nota-se um peixe prateado que apanhou na boca uma pétala cor-de-rosa e parece fugir para o fundo, atraindo logo um cardume dos seus iguais que trigosamente o perseguem. Figuras que recuperam a alegria perdida quando as flores caíram.

23 Abr 2025

Para fazer um retrato, Gao Jian pensou num jardim

Zhu Shuzhen (c.1135-1180), a preclara poeta da dinastia Song cuja biografia é conhecida apenas através do prefácio escrito por Wei Duanli (1130- c. 1184) na recolha dos seus poemas Duanchang shiji, «Coração partido», onde mesmo aí diz que a não conheceu pessoalmente citando apenas uma biografia dela feita por um tal Wang Tanzuo. E para confirmar a veracidade da sua existência, acrescenta que ouviu recitar os seus poemas em estalagens na área de Hangzhou.

Alguns chegaram a sugerir que a poetisa seria uma fabricação de um ou vários literatos justificando assim o inexplicável desconhecimento da vida daquela que viveu num tempo que justamente celebraria Li Qingzhao (1084 – c. 1155), a inspirada literata de Jinan (Shandong).

Entre as várias razões que explicariam uma tão diferente recepção tem sido referido o evidente ambiente literário e de conhecimentos pessoais de que beneficiava Li Qingzhao e que claramente não foi o caso de Zhu Shuzhen.

Para lá das dúvidas biográficas, as palavras dela persistem mostrando um olhar surpreso da mutante e fugaz beleza que encontrou diante dos seus olhos. Como escreve no poema, Flores caídas: «Suspensas no alto dos ramos as primeiras flores despontam, puras,/ Invejando as flores, o vento e a chuva aceleram-se mutuamente, como lhes convém.»

E, se nesse contar do seu olhar sobre a natureza se insinua uma personalidade sensível, quando um pintor da dinastia Qing quis fazer o retrato de um proeminente literato que ocupou importantes funções no governo imperial, pensou numa paisagem eleita num jardim. No rolo horizontal (tinta sobre papel, 34,8 x 90 cm, no Metmuseum) onde está trancrito o Discurso sobre a poesia de Song Luo pelo seu filho Song Zhi, o pintor fez a figura de um literato sentado num pavilhão aberto rodeado por duas pessoas, representando alguém que vive em comunidade. Mas são os altos pinheiros, um regato brando, uma profusão de bambus, metáforas de um carácter elevado e íntegro que ocupam a maior parte do espaço pintado.

Gao Jian (1634-1707), o pintor de Maoyuan (Suzhou), mostra nessa pintura do Outono de 1698, o estilo que caracterizava a sua cidade, evocando nomeadamente Shen Zhou (1427-1509), o respeitado mestre da chamada «escola de Wu», nome alternativo da região de Suzhou. Numa outra pintura Gao Jian referiu-o pelo nome fazendo, como ele fazia, uma pintura de uma paisagem «à maneira de». No rolo vertical (tinta e cor sobre papel, 208,9 x 93,9 cm, no Museu de Arte de Indianapolis) escreveu «Em Maio o rio é profundo e o pavilhão é frio», citando um verso de Du Fu. Afinal inscrevendo a sua obra num contínuo de vozes singulares que se sucedem no tempo e às quais o leitor-observador é convidado a escutar, mesmo desconhecendo pormenores da biografia dos autores que se perdem como flores impelidas pelo vento e a chuva em plena Primavera.

15 Abr 2025

O Dragão e a Alegria dos Peixes de Yu Xing

Zhong Kui, o patrono dos estudantes é muitas vezes representado de pé sobre uma estranha criatura que, observada desde a cauda, apresenta um rabo de peixe que se vai transformando num dragão, um compósito designado ao.

Nos exames imperiais, desde a dinastia Tang até à dos Song, entre 618 e 1279, os candidatos que estudaram para o exame imperial, depois de o completarem aguardavam o resultado numa escadaria onde estava esculpida a figura de uma dessas criaturas fantásticas. O que ficava em primeiro lugar, o primeiro a pisar a cabeça do ao, originou um ditado para indicar um feito bem-sucedido – duzhan aotou, «apreender a cabeça do ao».

Os descendentes do imperador, durante a dinastia Qing designados em manchu a-ge, não estavam sujeitos a esse exame, mas o seu regime de estudos não era menos exigente. Desde as três da manhã estudando, entre outros os Quatro livros e os Cinco clássicos, sem férias, com apenas cinco dias livres por ano.

Um dos mais brilhantes herdeiros dessa dinastia foi Aisin-Gioro Hongli, que entre 1735-95 ocuparia o trono do filho do dragão com o nome Qianlong. Um episódio da sua biografia confirma-o, quando impressionou o seu poderoso avô, o imperador Kangxi (1654-1722). Tinha então doze anos quando o encontrou pela primeira vez no Pavilhão das peónias do antigo palácio de Verão Yuanmingyuan, o «Jardim do brilho perfeito». Na ocasião ele recitou de cor o poema de Zhou Dunyi (1017-1073) Em louvor do loto, a flor que nasce para a beleza, indiferente ao lodo de onde vem.

Quando por sua vez se tornou imperador, o neto recordou o grato encontro com o avô nomeando dois lugares onde este decorreu; o pavilhão do jardim das peónias passou a «A lua emergindo, as nuvens afastam-se», e o local onde estudou com ele, «Vento e pinheiros entre uma miríade de vales». De modo habitual também lembrou o lugar mandando executar a pintura Manhã gloriosa durante o guxian, o terceiro mês lunar (tinta e cor sobre seda, 179,4 x 106,2 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé).

Yu Xing (1736-1795), nascido na colina Yushan em Changshu (Jiangsu), o autor desse painel, era um pintor da corte de Qianlong que se distinguira em minuciosas pinturas de flores, plantas, insectos e peixes. Num rolo horizontal que fez sob o tema Peixes e algas (tinta e cor sobre papel, 28,5 x 157,8 cm, vendido na Sotheby’s), Qianlong escreveu um poema provando o seu apreço:

Algas verdes como jade

espalhadas por todo o lago

e peixes nadando livres entre as algas.

Esta cena faz-me pensar

na inutilidade da nossa vida.

Observando os peixes divertindo-se

transmite-me uma grande alegria.

O clássico Zhuangzi afirma, sem explicar a razão por palavras, que é mesmo jubilosa a vida dos peixes. E quem sabe se não é essa alegria que está figurada na persistente representação de um peixe que voará, leve e poderoso como um dragão.

7 Abr 2025

Os Áceres Vermelhos de Li Jian

Wang Jian (c.767-c.830), o poeta de Henan de origens humildes que viveu na dinastia Tang, foi muito atento à vida do Palácio, um tema sobre o qual escreveu cerca de uma centena de poemas. Como se lê num deles, que é um desabafo de uma negligenciada senhora do harém do Palácio que com palavras afasta, como abanando, uma contrariedade. Usando a voz dela, escreve:

«Desisti de usar todas as minhas jóias e teci secretamente uma veste daoísta com a intenção de me juntar ao templo de Jinxian. No entanto, recentemente, o soberano descobriu que eu sabia ler. Fui então levada para a sua secretária para ajudar nos trabalhos clericais.»

O poema foi transcrito num tuanshan, o «leque redondo» de seda também designado gongshan, o «leque do palácio», usado pelas senhoras do Palácio da dinastia Tang, acompanhando a pintura Senhora sentada (tinta e cor, 25,9 x 26 cm, no Museu Ashmolean da Universidade de Oxford) atribuída ao pintor do distrito Shunde da cidade de Foshan, no delta do rio das Pérolas, Li Jian (1747-1799).

Além de alardear assim a sua erudição e engenho, o pintor mostrou em várias pinturas uma independência muitas vezes figurada num literato caminhando sozinho na paisagem. Uma liberdade quer face aos materiais visuais da Europa, que desde cerca de 1720 começavam a circular em Cantão (Guangzhou), quer face à ortodoxia inspirada por Dong Qichang (1555-1636) nas cidades mais a Nordeste.

Essa visão original é bem evidente num rolo vertical de 1788 intitulado Nuvens brancas, árvores vermelhas (tinta e cor sobre seda, 126 x 52,7 cm, no Museu de Arte de Cleveland) em que, por entre o surpreendente colorido de rochas verdes e azuis, se vê numa casa elevada por barrotes, um literato sentado à janela a tocar um qin. As folhas vermelhas das copas das árvores indicam que se trata de áceres em plena senescência no Outono, sublinhando a mudança. Dir-se-ia que a pintura rima com as notas da música do qin numa visualização das emoções despertadas pela melodia.

Li Jian escreveu um poema para acompanhar a pintura:

«Nuvens brancas rodeiam árvores vermelhas,

A neblina já regressou ao vale,

porque não descansar

e deixar o espírito em paz com o Mundo.

Com a solidariedade do qin,

sento-me no pavilhão do rio.

Um velho amigo é esperado

mas acaba por não vir.

O dia está frio e vão caindo

as folhas dos áceres.»

No modo como se exprime a pintura revela-se o conhecimento da lição de pintores tornados notáveis pela sua atitude em relação à pintura e a marcaram com a sensibilidade pulsátil da arte da caligrafia. Sobretudo Shitao (1642-1707) que na sua vagabundagem terá deixado na região onde Li Jian vivia, muitos admiradores. Um eco do traço único do pincel que tudo inclui, de que falou o pintor, nota-se em pinturas daquele que assinava por vezes com o nome Kuang Jian, «Jian, o selvagem» livre na forma como reagia ao inesperado.

31 Mar 2025

Yang Jisheng na Montanha Tianhua

Zhu Houcong (1507-67), o imperador Jiajing dedicando muito do seu tempo à sua própria pessoa, descurou os assuntos do Estado, delegando-os no corrupto Yan Song (1480-1567) que, entre outras infâmias, mandaria prender e depois executar um reconhecido homem justo que o denunciou num memorial enviado ao monarca onde propunha a sua demissão.

Chamava-se esse literato poeta e pintor Yang Jisheng (1516-1555). A animadversão que sentia perante a injustiça, arriscando a vida para dizer a verdade, não lhe permitia vacilar. Tarde na noite de 2 de Dezembro de 1553, sentindo-se grato de tantas coisas que a vida lhe dera, numa conversa com a sua esposa, a Senhora Zhang, que o instava a evitar o conflito dada a impossibilidade de contrariar o poder de Yan Song, ele respondeu que essa era a forma que tinha de pagar ao Estado todos os bens que dele recebera, como recordou numa biografia cronológica (nianpu).

E, no entanto, como muitos célebres literatos, também ele sofrera o exílio nas longínquas margens do Império. Terá sido no decurso de uma dessas jornadas em 1551 que, movido pela beleza de uma paisagem, fez a pintura Viajando pela montanha Tianhua (rolo vertical, tinta sobre papel, 147,5 x 39,5 cm, vendido na Sotheby’s) onde revela a sua erudição na arte da pintura dos literatos em que a figura pintada tende à abstração e o poema que a acompanha, concretiza a intenção.

Diante da montanha, cujo nome pode ser traduzido como «a beleza celeste», escreve:

«A montanha Tianhua não é muito distante para Oeste dos muros da cidade provincial,/ Que encanto admirar estas escarpas de um azul de martim-pescador e rochedos de um vermelho-púrpura!/ Torres e pavilhões acomodam-se às formas mutantes das descidas e subidas da montanha,/ Sombras de bandeiras e flâmulas tremelicam para cima e para baixo das árvores./ A partir de uma janela elegante, pendões brilhando contra a visão do céu limpo,/ Nuvens entrando; podia-se apanhar uma com a manga./ Não sei se alguma vez voltarei a este belo lugar,/ Na hora de partir apresso-me passando pelas rochas e desbarato este novo verso.»

Yang Jisheng fez nessa pintura um literato a viajar num rio numa embarcação que de súbito é alertado pelo barqueiro que com um bastão aponta para habitações aninhadas na montanha. Como numa página de álbum que assinou Jiaoshan, «Montanha de pimenta» (tinta sobre papel, 27 x 35 cm, vendido na leiloeira Nagel) representou uma morada pendurada no alto de uma montanha, dir-se-ia a figuração da sua procura por um lugar no mundo, que afinal o recusaria.

Na noite que precedeu a sua execução escreveu um célebre par de versos, numa prática conhecida como juemingshi, «poema de uma vida cortada», que procura fazer uma reflexão breve sobre o sentido da própria vida: «Ombros de ferro, para carregar a rectidão e a Via,/ A mão pungente para escrever engenhosamente».

24 Mar 2025

O rolo primeiro debaixo do céu de Shen Shichong

Chen Jiru (1558-1639), o pintor que se quis livre das amarras dos funcionários da corte para se dedicar a conhecer tudo à sua volta por si próprio e pronunciar-se de forma independente, foi por isso mesmo chamado «grande chanceler das montanhas» (Shanzhong zaixiang), o espaço onde há sempre novas perspectivas para o olhar e não existem os limites das cidades.

Referindo-se às obras que circulavam entre os coleccionadores e apreciadores das pinturas do seu amigo, o influente pensador de Huating (actual Songjiang, Xangai) Dong Qichang (1555-1636) terá dito sem peias que «menos de uma em dez» das pinturas que lhe eram atribuídas seriam efectivamente obras do seu pincel.

O que não será de admirar dada a multiplicidade de tarefas exigidas a um homem de cultura no fim da dinastia Ming e que, no seu caso, incluíam a demonstração das suas teorias em caligrafias e pinturas.

São aliás conhecidos nomes de alguns pintores que o auxiliaram nessa função a partir do conhecimento da história da pintura, estudada na sua valiosa coleccção, como o seu amigo Zhao Zuo (c.1570- depois de 1630) ou Shen Shichong (act.c.1602-41).

Este último também originário de Huating, recriaria num álbum de 1625, doze perspectivas do jardim privado Lejiao yuan, «Prazeres dos subúrbios» do insigne pintor Wang Shimin (1592-1680), onde se terá apercebido da eloquência de certas figuras colocadas em lugares favoráveis.

A criação de jardins, zaoyuan, um espaço privilegiado para o exercício da subjectividade, uma das actividades a que se dedicavam os intelectuais, possuía o prestígio associado às expressões zaowu ou zaohua, o «criador da força» ou da «transformação» usadas no Zhuangzi, com afinidades intrínsecas ao labor do pintor ou do homem de letras.

Como escreveu Qi Baojia (1602-1645) criar um jardim é como «a pintura de um grande artista: nem uma única pincelada desinspirada é permitida; tal como a um autor cuidadoso escrevendo: nem uma palavra destoante é autorizada.»

Shen Shichong faria em seu próprio nome, várias pinturas afirmando a sua relação com o espaço livre para caminhar, num estilo que aproveita a lição das formas abstractas das montanhas de Dong Qichang com a atmosfera nebulosa e a recessão espacial notada entre pintores profissionais.

Longos rolos horizontais, exemplares dessas características são as pinturas Paisagem das quatro estações (Shangao shuifang, Altas montanhas, longos rios, tinta e cor sobre papel, 28,6 x 761 cm, no Museu de Belas Artes de Boston) ou aquela que é considerada a sua obra-prima, Tianxia diyi, «Primeira sob o céu». Hoje conhecida como Retiro de montanha (tinta e cor sobre papel, 33 x 1527 cm, à venda na Christies) nela são visíveis eremitas, pontes sobre os rios, pinheiros e caminhantes destemidos nas fímbrias das montanhas numa figuração da determinação lúdica do tempo próprio.

17 Mar 2025

Os Retratos de Estrangeiros de Xie Sui

Da Yu, Yu o grande, uma figura lendária que se acredita ter sido o fundador da dinastia Xia (2059 – 2025 a. C.) de acordo com a tradição, dirigiu um grande esforço colectivo durante treze anos, conseguindo por fim controlar uma imensa inundação do rio Huanghe (o rio Amarelo) que cobria colinas e arrasava povoados. Uma «pressão excessiva» do bem precioso que é a água, razão da escolha dos lugares para habitar, que quando em excesso causa um desequilíbrio.

Um pintor da corte de Qianlong (r.1735-96) chamado Xie Sui tratou esse tema da luta para viver com a natureza desmedida de um modo notável em vários rolos verticais, como em O grande Yu domestica a inundação (tinta e cor sobre papel, 188,6 x 115,4 cm, vendido na Sothebys) onde ressalta a figuração de uma grande quantidade de trabalhadores pintados de forma genérica.

Mas o seu labor de recriar personagens em pinturas para a corte seria mais detalhado quando realizou uma série de quatro rolos horizontais com trezentas e uma figuras de pessoas, representativas dos mais diversos povos que vinham dos quatro cantos do Mundo prestar tributo ao Filho do Céu.

Inseria-se essa figuração na antiga tradição de Retratos das oferendas períodicas que vinha já da dinastia Tang e explicitada em 1636 pelo cartógrafo Chen Zushou, já em diálogo com conhecimentos que traziam Europeus: «Todos os povos bárbaros dentro dos quatro mares devem vir prestar tributo ao nosso imperador. Embora eles (os jesuítas) possam descrever o Mundo como compreendendo cinco continentes, são no entanto quatro deles que devem rodear o núcleo do Império.»

Uma curiosa influência na figuração desse ceremonial vê-se numa pintura anónima de 1761, existente no Museu do Palácio em Pequim (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 299 x 207 cm) intitulada Dez mil nações chegam para prestar tributo, em que se nota um realismo no tratamento das figuras que as aproxima do estilo exótico, europeu, introduzido na corte pelo missionário jesuíta Italiano Giuseppe Castiglione (1688-1766) que estava ao serviço do imperador.

Xie Sui nos seus quatro rolos (c. 133,9 x 1402,2 cm, cada um,tinta e cor sobre papel, no Museu do Palácio Nacional, Taipé) mostra pares de figuras de estrangeiros, geralmente homem e mulher da mesma proveniência, alguns deles inventados. Entre eles encontra-se um casal que um título acima deles, como acontece com todas as outras figuras, escrito em caracteres sínicos e manchus, indica serem provenientes de Daxiyangguo, como então era designado Portugal. E que um texto descreve:

«Os homens têm corpos longos com narizes proeminentes e bocas como as das corujas», as mulheres «prendem o cabelo para cima, usam ganchos, têm decotes quadrados e corpetes expostos, usam blusas curtas e saias longas com dois ou três arcos por baixo e muitas vezes levam um xaile a cobrir as suas cabeças.»

14 Mar 2025

A Liberdade na Peregrinação de Liu Ji e Leng Qian

Zhu Yuanzhang (1328-1398), quando ainda se não tornara o imperador Hongwu (1368-98), fundador da dinastia Ming e era apenas um rebelde que não pertencia à nobreza, vinha descendo um grande rio quando um vento rijo quebrou o mastro do navio que o transportava.

Olhando a margem, reparou numa grande árvore que se erguia junto de um templo e logo desejou utilizá-la para substituir o mastro quebrado. Quando se aproximou porém, o abade do mosteiro aconselhou-o a que, antes de o fazer, consultasse o espírito do templo retirando uma tabuínha de adivinhação. Ao retirá-la, ele leu: «Tudo sob o céu tem um mestre,/ Um homem honrado não tira nada para si próprio./ Embora as qualidades de um herói sejam conferidas pelo Céu,/ Ele deve, a cada passo, sondar qual o caminho correcto.» Logo desistiu da intenção.

A história ilustra o carácter do futuro monarca que, sendo orfão ainda muito jovem, foi acolhido num mosteiro budista como monge noviço, percebendo desde cedo o valor do acaso que desde então se empenhou em perscrutar. Na escolha dos seus conselheiros, obedecendo a essa preocupação, encontravam-se estrategas empenhados em planear os passos seguintes.

Entre eles destacava-se Liu Ji (1311-1375) também conhecido como Liu Bowen, o «velho sincero» estratega militar, estadista e poeta, a quem são atribuídas obras que respondiam a essa vontade de predizer a sucessão dos dias, como o livro de profecias Shaobing ge quan wen, «A canção completa do bolinho shaobing», ou o tratado filosófico Yulizi, o «Mestre do brilhante trigrama li, o fogo», para esclarecimento do Mundo e dos decisores.

Entre os seus curtos 182 capítulos está o edificante relato de um construtor de um qin, o instrumento musical dos literatos, que sendo apresentado na corte foi recusado por não ter o prestígio de ser antigo. Então ele acrescentou-lhe alguns riscos, enterrou-o por um tempo e de novo o apresentou, sendo agora muito bem recebido. De modo contrário, o conselheiro imperial procurava esclarecer-se na verdade. Como numa viagem que fez, no Outono de 1343, com um companheiro pela cordilheira de Huangshan, a montanha Amarela.

Leng Qian (c.1310-c.1371), esse amigo que também era erudito nas artes e instrumentos musicais, acompanhou-o num percurso até uma elevação, que a partir do tempo do imperador Jiajing (r.1521-67) foi designada Qiyun, «alta como as nuvens», fazendo parte do caminho por mar, embalados no ritmo cadenciado das ondas. Esse ritmo que Leng Qian, versado nos segredos da alquimia, procurou transmitir na pintura Monte Baiyue (rolo vertical, tinta sobre papel, 84,4 x 41,4 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé) que fez a pedido de Liu Ji para memorizar a jornada.

A partir da margem do rio Hengjiang, fez uma pintura livre de opções por estilos ou escolas, aproveitando o acaso, como queria o imperador Hongwu.

4 Mar 2025

Sa Dula e o terraço onde um ermita pescava oculto

Yan Guang (nome de cortesia Ziling, 37 a.C.-43), um famoso erudito daoísta, amigo e colega de estudos de Liu Xiu (6 a.C-57) que, reconquistando o poder dos Han, estabeleceria a capital em Luoyang, a este da antiga Chang’an, fundando a dinastia dos Han de Leste (25-220), foi protagonista de um gesto singular.

Quando Liu Xiu se tornou no imperador Guangwu, para evitar os perigos e a corrupção na corte, e não se aproveitar da amizade com o monarca para se promover, preferiu afastar-se e ir viver livre e indiferente às solicitações do amigo.

Séculos depois, numa pintura feita numa folha de álbum, o pintor Huang Shen (1687-1772) retratou com o seu expressivo traço caligráfico, a memória dessa personalidade capaz do audacioso gesto límpido. Nesse retrato (tinta e cor sobre papel, 28,5 x 34,2 cm, no Museu de Arte da Universidade de Michigan) Yan Guang está sentado, o olhar resignado mas reflectindo grande sabedoria, de longas barbas brancas, a cabeça coberta com um chapéu preto (toujin) usado pelos que não pertenciam à corte nem à burocracia imperial, as vestes de letrado contrastando com os objectos ligados à pesca, dos quais avulta a representação, numa linha horizontal cruzando a sua figura, de uma cana de bambu. Porque foi para se dedicar à pesca que ele disse que se afastava.

Ainda antes, uma outra representação evocara Yan Guang através do terraço natural formado na encosta de uma montanha onde ele se sentava com a sua cana estendida a pescar. Essa pintura, O terraço de pesca à linha em Yanling (rolo vertical, tinta sobre papel, 58,7 x 31, 9 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé), onde se nota um literato numa embarcação de pesca olhando para cima, para o mítico lugar na montanha Yanling (Zhejiang) debruçado sobre o rio Fuchun da «Primavera abundante», foi executada por um pintor e poeta da dinastia Yuan (1271-1368) chamado Sa Dula (c.1308-1355) que estava numa situação privilegiada para entender a condição de Yan Guang como um yuyin, «escondido a pescar».

Sa Dula, nascido em Hangzhou, provinha de uma família de origem uyghur oriunda da distante Yanmen. Jovem ter-se-ia dedicado, contrariado, ao comércio e obtendo o grau jinshi em 1327, serviria a corte com imparcialidade na função de censor e seria, por isso mesmo, despromovido e banido para o campo.

A independência do seu carácter rebelde estará espelhada nessa pintura que evoca Yan Guang. Mais do que a adesão a um estilo enquadrado nas fronteiras da tradição, percebe-se a sua originalidade no modo invulgar como usa as tonalidades da tinta diluída para estabelecer o contraste entre a luz natural e as sombras na definição dos volumes.

Numa inscrição de 1339, que juntou à pintura, explica que a fez quando visitou o lugar com o seu amigo Leng Qian, quando os dois estavam fora de cargos oficiais, percorrendo o país em liberdade.

28 Fev 2025

A Face Pintada de Púrpura da Imperatriz Liu

Qianlong (r.1735-96), o imperador esteta da dinastia Qing, ordenou em 1748 que fosse restaurada e reunida no magnífico pavilhão Nanxun da «Fragrância do Sul» da Cidade Proibida, construído em madeira durante a dinastia Ming, a colecção que foi sendo feita ao longo de séculos de retratos de imperadores, imperatrizes e altas personalidades da corte.

O espaço passaria a ser a sua pinacoteca (meishu guan) e o lugar para alardear o respeito pelos antigos soberanos e o seu legado. Entre esses mais de sessenta retratos, numa sala situada a leste do salão principal estão figuras de senhoras e entre eles há um especialmente intrigante; o retrato hodierno da segunda mulher a assumir o poder total do Império depois da notória imperatriz dos Tang, Wu Zetian (624-705).

Zhangxian Mingsu, a «Ordeira, digna, inteligente e solene» esposa do imperador Zhenzong (968-1022) conhecida como a imperatriz Liu (969-1033) dos Song do Norte, que reinou atrás de «uma cortina descida» (chuilian tingzheng) entre 1012-22, está aí representada de modo convencional, sentada a três quartos e vestida com o traje cerimonial de faisões, huiyi (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 177 x 120 cm, no Museu do Palácio Nacional, Taipé).

Algo porém, na figuração do seu rosto causa uma estranha impressão. Wang Yun (1227-1304) um literato da Academia Hanlin, na seguinte dinastiaYuan, observando o retrato, escreveu: (…) «No seu rosto foi aplicado um pigmento púrpura desde as sobrancelhas para baixo com a forma de duas folhas rectangulares (fangye) cobrindo as duas faces. A ponte do nariz está salientada ao ser deixada por pintar uma linha de pele natural. O rosto parece assim parcialmente coberto por um fino véu de púrpura.»

A cor púrpura (zise), percebida como sinal divino, predecessor da imortalidade, no rosto da imperatriz Liu reforçava o simbolismo da sua função de garante da harmonia entre o Céu e as pessoas. Numa pintura de um seu contemporâneo ver-se-ia esse acordo (tianren heyi).

Zhang Xian (990-1078) um literato natural de Huzhou (Zhejiang), segundo a tradição, terá feito apenas uma pintura num paroxismo de piedade filial em relação à memória de seu pai, Zhang Wen.

Quando se encontrava a pescar numa margem do lago do Jardim do Sul, no condado de Wuxing em Huzhou, em1072, tinha então oitenta e dois anos, lembrou-se de súbito dos poemas feitos ali por seu pai e fez uma ilustração desses Dez queridos poemas escritos sobre seda branca (Shiyong tu, rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 52 x 125,4 cm, no Museu do Palácio, Pequim).

Desde o lado direito do rolo onde se nota num pavilhão de dois beirais na orla do lago, uma reunião de literatos apreciando a vista, entretidos, até ao fim do rolo do lado esquerdo, onde se vê por uma janela, sozinha, uma mulher fiando algodão, ressalta essa suave alegria a que chamamos paz.

17 Fev 2025

A Lua e a sepultura de flores que tocaram Gu Luo

Bai Juyi (772-846), o preclaro poeta dos Tang que conheceu a separação da família desde os dez anos de idade, enviado para o Norte para escapar a uma guerra, e depois na sua instável vida de funcionário ziguezagueando no Império ocupando postos governamentais em distantes cidades, celebrou em muitos dos seus mais singulares poemas, encontros que teve.

Como a inolvidável impressão que lhe causou a jovem na margem do rio Changjiang, tangendo as cordas do instrumento musical que tem uma base de madeira em forma de pêra chamado pipa, «cordas fortes tilintando como respingos de chuva,/ Suaves cordas murmurando como palavras sussurradas».

Sobre a afinidade que nela percebeu, escreveu:

«Nós os dois caídos em desgraça, vagueando nos confins do Mundo, não pecisamos de ser velhos conhecidos para nos encontrarmos por acaso.»

Muitas vezes única testemunha silenciosa desses encontros ao acaso ou outros igualmente dilectos, apenas o intrigante brilho da lua que perdura como fiel consolação, restaurando a memória de tantos momentos felizes ou a presença de perdidos entes queridos. Recordações que, nas palavras «inundadas pelo luar» do poeta dos Tang, haveriam de reviver no espírito dos seus leitores.

Como sucedeu muitos anos depois, já na dinastia Qing, quando um pintor e poeta nascido em Qiantang, actual Hangzhou, onde Bai Juyi foi governador, e no seu Lago do Oeste mandou erigir um dique que perdura até hoje, se inspirou em três circunstâncias características dos poemas do vate.

Numa folha de álbum (tinta e cor sobre papel, 23,5 x 32 cm, no Metmuseum) numa pintura de Gu Luo (1763-1837) está escrito que esta resulta de um pedido, celebrando o luto por uma pessoa querida, lembrando palavras de Xiangshan jushi, o «eremita da Colina Perfumada», nome que Bai Juyi escolheu para si quando nos seus últimos anos viveu numa parte do mosteiro budista de Longmen na Colina Perfumada. Essas palavras referiam três situações: «A lua fria, o aposento vazio, uma pessoa partiu.»

Gu Luo figurou nessa pintura, admirando a lua num aposento vazio, um letrado sentado com o seu filho ao lado, numa varanda, entre altos bambus e salgueiros numa atmosfera enevoda.

Em outras três situações inspiradoras do poeta e romancista Cao Xueqin (1710-1765) se poderá ler a origem da pintura em rolo vertical Sepultando flores caídas (tinta e cor sobre papel, 86,7 x 30,5 cm, numa colecção particular, à venda na Christies). Palavras que o poeta atribui à sua personagem Lin Dayu do romance Honglou meng, «Sonho dos apartamentos vermelhos»: «Flores murcham, flores esvoaçam, flores enchem o céu».

Para Gu Luo esses versos pareciam ressoar como o assombro do shimo, o «demónio da poesia», com quem lutava Bai Juyi. A sua forma de resistir ao angustiante e inquietante reino do imperador Daoguang (r. 1820-50) tornando ausências presentes.

10 Fev 2025

Na falta de palavras Wan Shouqi retratou a sua morada

Fei Zhangfang, uma personalidade semi-lendária que terá vivido na dinastia Han Oriental (25-220), foi um guarda no mercado da sua cidade que se tornou num imperfeito discípulo de um velho que lá vendia poções chamado Hugong, que ele logo percebeu ser um imortal que terminava o seu exílio na terra. Dele recebeu um bastão que de modo surpreendente lhe permitia viajar, como voando, incríveis distâncias.

Fei tentou aprender do mestre os seus segredos, mas falhou ao terceiro teste. Quando Hugong o enviou para casa, disse-lhe para deitar o bastão num lago ali próximo chamado Gebei. Ao atirá-lo, Fei Zhangfang notou como este se transformava num dragão azul. A lenda que, nos seus múltiplos sentidos, aludia à capacidade daoísta do espírito efectuar espantosas mudanças e inéditas deslocações no espaço, seria um tema recorrente em pinturas figurativas no fim da dinastia Ming.

Um pintor de Xuzhou (Jiangsu) chamado Wan Shouqi (1603-1652), que viveu na transição dinástica Ming-Qing, terá acrescentado ainda um outro sentido à figuração ao fazer, em 1650, uma representação de Fei Zhangfang maravilhado na margem do lago presenciando a emergência do dragão azul, sobre um leque (tinta e cor sobre papel, 20,9 x 46,6 cm, no Instituto de Arte de Minneapolis).

O leque, o adereço de Zhongli Quan, um dos Ba Xian (os Oito imortais), que quando o abanava tinha, entre outros segundo a sua vontade, o poder de ressuscitar mortos. Percebe-se a vontade de Wan Shouqi de fazer regressar a antiga dinastia num dos «nomes de pincel», hao, que ele escolheu: Mingzhi daoren, que de maneira característica pode ter várias leituras, como por exemplo «o daoísta com um brilhante ideal» ou «o daoísta que recorda os Ming». Da sua biografia ressalta o facto de em 1628, quando ainda não tinha obtido o grau jinsi, ter participado num grande banquete oferecido pelo imperador Chongzhen (r.1627-1644) aos mais ilustres letrados do Império.

Wan Shouqi aderiu em 1632 à literária e política «Sociedade da Renovação», Fushe, que se opunha ao poder dos eunucos do Palácio e se propunha eliminar os estéreis estilos literários dos exames imperiais, fazendo reviver as lições dos antigos com temas mais úteis.

No período de desordem que se seguiu à queda dos Ming, Wan vagueou no território até se fixar numa quinta, perto da sua cidade natal. Aí, em 1651, num rolo de pintura em que é claro o seu conhecimento dos grandes mestres (tinta sobre papel, 20 x 289 cm, no Museu Guimet), pintou a sua residência em resposta ao pedido de um amigo, como se fora um convite. Nele escreveu: «Eis a minha Xixi caotang. Mestre Jin fez-me prometer que lhe dedicaria um poema, mas o poema não aparece; então, pintei este rolo para meu próprio prazer. Os antigos diziam: “em todas as pinturas há um poema”. Mestre Jin estará no interior ou no exterior da pintura?»

5 Fev 2025

A proximidade afectiva de Pan Simu com o ímpar Mi Fu

Mi Fu (1051-1107), o singular calígrafo, poeta e pintor da dinastia Song que cultivou a estranheza na sua vida pessoal para se abster da contaminação dos assuntos mundanos, de pinturas antigas ou modernas que observava, escreveu que essas «coisas não me tocam nem me agitam quando me sento de pernas cruzadas como um monge, esquecendo todos os problemas e colocando-me em harmonia com o vazio vasto e azul» (Huashi), seria no futuro objecto de uma imensa admiração.

Em Dantu, um dos três distritos de Zhenjiang (Jiangsu) onde ele viveu mais de quatro décadas, a sua memória é celebrada num parque único no país onde se podem observar mil e trezentas cópias de gravações de caligrafias em pedra. Aludindo à sua fonte de inspiração, foi adequadamente concebido diante da Colina dos dez li, com aspectos próprios da pintura de paisagens.

A admirável novidade da sua arte fora elogiada pelo imperador Huizong (r.1100-1125), que o conheceu e que no seu rolo vertical Pavilhão do despertar das nuvens (tinta sobre seda, 150 x 78,8 cm, no Smithonian) transcreveu a frase de Confúcio que sublinha o que se notará em pinturas ditas shanshui, «rios e as montanhas» em contínua mutação: «Antes do céu enviar as chuvas da estação, montanhas e rios apresentaram as nuvens.»

Nas pinturas de Mi Fu nota-se esse olhar para as mutantes formas fluidas onde se podia revelar o espírito, ao contrário do desenho de animais ou pessoas que possuem formas estabilizadas (youdingxing).

O seu legado foi também e sobretudo cultivado por pintores ao longo do tempo. Pan Simu (1756-1839) já na última dinastia setecentos anos depois foi um dos que utilizou os pontos horizontais aplicados com precisão pelo pincel sobre papel, figurando sucessivas montanhas retrocedendo que caracterizava o método de Mi Fu.

Pan Simu como Zhang Yin ou Pan Gongshou, pintores da cidade de Zhenjiang, procurou estabelecer uma «escola» (pai) de pintura baseada na tradição da cidade. Nessa inquirição à memória, Pan Simu apercebeu-se da sua afinidade com Mi Fu. Fê-lo, por exemplo, em dois rolos verticais: A floresta do Grou (Helin) enevoada à chuva (tinta sobre papel, 128,9 x 31,4 cm, no Instituto de Arte de Minneapolis); e em Chuva e neblina em Helin (tinta sobre papel, 109,9 x 31,8 cm, no Metmuseum).

Neste último refere uma visita ao templo onde estava o túmulo de Mi Fu na Montanha do Grou Amarelo (Huanghe shan) escrevendo um poema em que a expressão «velho tolo», laodian, é uma característica manifestação da familiaridade afectuosa um pouco agreste com que se tratavam os adeptos do Dao; «A grande fama da floresta do grou estende-se por anos e anos,/ Lá pernoitei uma vez na Primavera e lá fiz esta pintura lembrando o velho tolo./ Se o velho tolo regressasse agora, daria uma gargalhada dizendo;/ Quem se atreveu a vir roubar a minha meditação no Chan?»

20 Jan 2025

A busca de Pan Gongshou por um jardim numa encosta

Xie Lingyun (385-433), o irreverente poeta viandante que quis conhecer rios e montanhas ignorados, participou num grande banquete no dia 24 de Outubro de 418, na festa Chongyang jie, do «Duplo nove», em que era homenageado Kong Jing (347-422) um antigo conselheiro e apoiante de Liu Yu (363-422), que seria o fundador da dinastia Liu Song.

Nesse banquete que decorreu em Xima tai, o «Terraço para observar corridas de cavalos» em Pengcheng (Xuzhou, Jiangsu), Xie Lingyun foi chamado a compôr um poema «para inspirar confiança e segurança», numa altura em que o homenageado decidira retirar-se do serviço público e quando os partidários de Liu Yu ainda estavam em pleno processo de combate e consolidação do poder. Logo no início, o poema assinala os dois movimentos contrarios:

«No último mês do Outono

os ventos na fronteira Norte

são ríspidos e cruéis,

Os cisnes migrantes voam

contra as investidas

do frio intenso e da neve.»

Depois, descreve:

«O peregrino, de regresso,

segue o curso do rio

até ao limiar do oceano,

Faz uma vénia, tirando o chapéu,

e sai das fileiras da corte.

Abrandando os remos

o barco é amarrado

nos serpenteantes baixios,

Olhando para a sombra do sol,

ele aguarda que a música

anuncie o fim do banquete,

As correntes do rio correndo

adiante com rapidez.»

Mas o poeta não se exime, olhando o exemplo, colocando-se em questão:

«Como posso eu apenas contemplar

os nossos caminhos separando-se?

É o querido objectivo, para meu desgosto,

que eu agora vou contra.

Aquela maravilhosa via do jardim

numa encosta da montanha.

Ah, como lamento a minha frágil virtude

e vãs demandas.»

Mas a busca prosseguiria até ao fim. Na dinastia Qing um outro poeta e pintor que leu o poema, percebeu a contraditória vontade como se estivera presente no famoso banquete.

Pan Gongshou (1741-1794), numa folha de um álbum de pinturas e poemas de c. 1790 (Universidade de Alberta), recordou Xie Lingyun e o poeta Pan Yue (247-300) com quem partilhava o nome de família e que de modo memorável chorou a morte da esposa: «Vestígios daquele banquete e das músicas do tempo de Xie Lingyun, o duque Kangle, começam a extinguir-se,/ O poeta Pan Yue sentiu o Outono encher-lhe o peito de tantas lágrimas./ Retirado, em sonhos, não alcançarei o meu desejo, resta-me apenas sentar-me sozinho,/ Mas sentado sob as nespereiras florescendo no início do Inverno, como poderei manter tais sentimentos?»

O pintor de Dantu (Zhenjiang, Jiangsu) procuraria o seu «jardim numa encosta de montanha», entre pinturas que refez como se nelas quisesse habitar. Obras distantes no tempo, como os rolos verticais que se encontram no Museu de Arte de Harvard, inspiradas por obras de outros pintores como o monge do século X, Juran ou a notável Ma Shouzhen (1548-1604). Seguindo com eles no desassossego de percorrer ignorados rios e montanhas.

7 Jan 2025

O Espelho Incerto Dos Alegres Encontros no Vaso Celeste

Gong Kai (1222-1307), um antigo funcionário que no final da dinastia Song se mudou para os arredores da próspera Hangzhou aí vivendo pobremente dedicado à pintura, seria reconhecido pela nobreza do seu carácter íntegro e selvagem que se reflectia no aspecto de algumas das figuras nas suas pinturas, como o cortejo de Zhong Kui, o caçador de demónios ou shouma, o «cavalo magro».

No futuro, dado o apreço que as suas pinturas alcançariam, outros se apropriariam do seu estilo ou atribuiriam o seu nome como uma marca de distinção, a pinturas alheias que assim se valorizavam. É possível que esse seja o caso de um longo rolo horizontal de pintura a tinta sobre papel que hoje se encontra cortado em três partes e em dois museus.

No Museu de Arte da Universidade de Princeton, a pintura Hutian jule tu, «Encontro Feliz no vaso celestial» (29,7 x 298 cm) é atribuída ao pintor profissional de Fujian, Zheng Wenlin (activo entre 1522-1566). No Metmuseum, uma parte é atribuída a Gong Zuiyen (Gong Kai, 29,8 x 431,8 cm) e outra sem autor definido mas no estilo de Gong Kai (29,2 x 374,4 cm).

No final do rolo outorgado a Gong Kai onde se observam diversas personagens entregues a variadas actividades ao longo de um rio numa paisagem com dragões, pêssegos da imortalidade, grous e cogumelos lingzhi, há um extenso comentário informado sobre o que foi observado que diz: «O grande jardim de Benglai shan ‘A montanha do eterno devir’, é muito longe deste Mundo, para além do grande rio que o separa do monte, tudo é muito diferente (…) Como não há estações, não se distingue a Primavera do Verão nem o Outono do Inverno (…) Estranhas pessoas aladas reúnem-se ali para estudar as verdades da filosofia daoísta, suas faces são de velhos sérios; não conhecem as preocupações mundanas nem se ocupam do princípio ou do fim do Mundo (…) Alguns divertem-se dançando ou fazendo música no qin, outros escrevendo, pintando ou jogando weiqi (…)»

Zheng Wenlin tem a seu favor para ser o autor do rolo o facto de tanto se ter dedicado à figuração, de um modo desregrado e selvagem, desses obscuros seres em trânsito entre dois mundos, que foi conhecido como o «imortal louco».

Em muitas outras pinturas, evocando tantos selectos encontros, mostrou imortais usufruindo das gratas actividades a que se dedicavam os letrados, como num espelho impreciso. E aqui invocando hutian, o «vaso celeste», tantos sentidos; como Fanghu, o «pote quadrado», a ilha dos imortais ou a conhecida história do folclore que fala de um lenhador que, regressando a casa no fim de um dia de trabalho com o machado às costas, encontrou um belo pote de latão.

Resolveu levá-lo com o machado lá dentro e ao chegar a casa, a esposa reparou que lá dentro estavam dois machados. Em seguida, repetindo o processo, os dois repararam que era possível fazer dois de tudo.

30 Dez 2024

O retrato de Li Xiangjun com leque redondo na mão

Hou Fangyu (1618-1655) passou a sua juventude em Pequim, mas em 1639 foi fazer os exames imperiais a Nanquim e, tendo falhado devido ao modo crítico como se expressou no ensaio da prova, retornou ao Norte num desatinado vaivém entre o Sul e o Norte que acompanhou o acelerado crepúsculo da dinastia Ming, envolta em corrupção e laxismo.

Frequentando o sofisticado mundo literário da época, Hou Fangyu encontrou um dia em Nanquim, na margem do rio Qinhuai, numa casa chamada Meixiang Lou, onde se encontravam literatos com as chamadas geji, cantoras, dançarinas dedicadas à música, uma fascinante rapariga ainda com dezasseis anos e de múltiplos talentos, conhecida como Li Xiangjun, que no futuro seria associada às Qinhuai bayan, as «Oito belezas de Qinhuai» e entre eles nasceria uma relação que, tal como a dinastia, estava destinada ao fracasso.

Ela vinha de uma família de letrados em decadência vítima, como tantos outros, do despótico eunuco Wei Zhongxian (1588-1627). Logo no início do casamento Hou Fangyu ofereceu à sua noiva um objecto que, como um dispositivo independente da vontade, seria capaz de desencadear a memória nostálgica de momentos perdidos e felizes do passado. Nesse objecto, um tuanshan, um leque redondo rígido emoldurando um círculo de seda com um cabo de marfim, ligado à noção de união, Hou escreveu um poema para ela.

No meio da turbulência dos dias, Hou Fangyu foi forçado a ausentar-se e a noiva obrigada a viver com outro homem. Algo a que ela se negou, tentando o suicídio e no processo manchando de sangue o seu querido leque.

O pintor Yang Yuncong (1597-1645), em vista do sucedido, contornou com um pincel as manchas de sangue, delas fazendo flores de pessegueiro. O leque e essas flores cor-de-rosa e avermelhadas que desabrocham antes das folhas, e por um período breve, estão no título da peça musical Taohua shan, escrita por Kong Shangren (1646-1718), que eternizaria o intranquilo tempo da transição no fim dos Ming, figurado na fragilidade de uma relação de emoções exacerbadas.

Cui He (1800-1850), um pintor dos fins da dinastia Qing, recordaria a inspiradora Li Xiangjun num retrato imaginado, debruçada sobre uma janela circular com as cortinas levantadas (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 52,4 x 124,5 cm, no Metmuseum). Atrás dela é possível observar no seu gineceu; um espelho também redondo, um livro sobre a mesa, roupas sobre uma cadeira.

Em redor da janela, por cima, um salgueiro, alusão à saudade em baixo, ramos de flores brancas possivelmente meihua, traduzidas habitualmente como flores de ameixieira, que também podem ser designadas como li, o seu nome de família.

Só ultrapassa o círculo da janela, uma parte da manga do vestido e uma parte do leque redondo na sua mão, despontando das suas vestes pintado com o ramo de pessegueiro que fora manchas de sangue.

27 Dez 2024