Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Imperador Enamorado e a Nobreza Solitária do Eremita Zhu Jianshen (1447-1487), o imperador Xianzong ou Chenghua, «A mudança bem sucedida», reinou durante vinte e três anos (1464-87) que trouxeram prosperidade e relativa paz ao Império, espelhando o seu carácter fleumático e cauteloso. Essa sua branda disposição é sublinhada pela constância da relação que manteve com Wan Zhen’er (1428-87), que foi sua ama-seca desde que ele tinha três anos e ela, vinte. Os dezassete anos de diferença não foram obstáculo ao persistente afecto que durou até ao fim: quando soube da sua morte, o monarca passou um dia sem poder falar no fim do qual terá murmurado: «Zhen’er desapareceu, em breve serei eu». O que de facto sucedeu sete meses depois quando ele tinha apenas trinta e nove anos. A serena e firme personalidade do soberano está patente numa excepcional pintura, feita no Inverno de 1485 por um anónimo pintor da corte. No rolo horizontal Ming Xianzong apreciando a Festa das lanternas (tinta e cor sobre seda, 690 x 36,7 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Pequim) onde o imperador está representado três vezes: no princípio, no meio e no fim, numa plataforma elevada diante da escada do dragão esculpido na pedra, notamos com ele o que ele observa: Dentro dos muros púrpura da Cidade Proibida, pessoas vão usufruindo de actividades lúdicas que caracterizam os dias felizes. Como jogar, ouvir música, assistir a espectáculos de acrobacia, de ópera, magia ou ao lançamento de foguetes. Ou simplesmente passear em família na cidade decorada com as lanternas que distinguem a «festa da noite nobre» (yuanxiao jie) celebrada no décimo quinto dia da primeira lua, marcando na lua cheia o fim das festas do ano novo. Na última aparição do monarca no final do rolo, o seu olhar é acolhedor e em retrospectiva; dir-se-ia que é para e por causa desse seu olhar permissivo que tudo acontece. A pintura exuberantemente polícroma, narrativa, é exemplar de um dos caminhos que a arte adoptava no tempo da dinastia Ming. Uma outra via, na tradição da pintura dos letrados seguia paralela, fora dos muros da cidade imperial, exigindo a restrição própria da expressividade do traço caligráfico. Wu Boli, (activo no fim do século XIV- início do XV), sacerdote daoísta no templo Shangqing da montanha Longhu, «Tigre – dragão» (Jiangxi) seria lembrado como autor de um rolo vertical que pintou para Zhang Yuchu (1361-1410) o quadragésimo terceiro tianshi, o «mestre celestial» da Zhengyi Dao, a seita daoísta da «Unidade ortodoxa». Do Pinheiro-dragão (tinta sobre papel, 121,9 x 33,7 cm, no Metmuseum) em que figura um único pinheiro, de ritidoma escamoso como a pele do dragão, desprende-se uma sensação de energia vital correspondente à vocação do mestre daoista. Cujo olhar estava disponível para reconhecer o mundo da natureza como se este fora feito para ele, para o receber e acompanhar.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioHuang Yuanjie, a pintora para além dos Terraços de Jade Li Yu (1611-1680), o editor do célebre Jieziyuan Huazhuan, o «Manual do jardim do grão de mostarda» em 1679, um guia para o ensino e compreensão da pintura através de exemplos reconhecidos, foi também um dramaturgo em cujas peças se pode perceber o tempo de inquietação em que viveu, o da transição Ming-Qing. Parecendo perdida aquela força harmoniosa que «faz mover o sol e as outras estrelas», toda a esperança era colocada nas relações interpessoais, e entre estas em especial as que ocorrem entre um homem e uma mulher, entendidas como vontade de cumprimento do princípio arquétipo do yin e yang. Peças como O pavilhão das peónias de Tang Xianzu ou O leque das flores de pessegueiro de Kong Shangren, diziam esse encontro de modo espiritual e poético. Nas peças de Li Yu, porém, essa intenção tinha uma forma subversiva e inesperada. Como na peça Yizhong yuan, que se pode traduzir como «No limite da sinceridade», traduzida em inglês como A much desired match, ou em francês como Unions idéales. Nela, duas mulheres pintoras com claras afinidades artísticas, falsárias do trabalho de seus maridos, também pintores, chegam numa cena, com uma delas vestida de homem, a realizar um falso casamento entre elas, seria objecto de um prefácio e um comentário elogioso, escritos por uma mulher literata e pintora cujo trajecto admirável brilharia para lá do fim dos Ming. Huang Yuanjie (c. 1620-1669) já era falada desde os anos de 1630 por vender os seus poemas, caligrafias e pinturas, algo incomum numa mulher daquele tempo. Nascida em Jiaxing (Zhejiang) no seio de uma família de literatos, casada com um letrado que não passou o exame jinshi, a sua biografia confunde-se com a era do desassossego ao ser raptada e, conseguindo evadir-se, é albergada numa casa de família de notáveis em Zhenjiang (Jiangsu) instalando-se por fim num estúdio, onde vendia as suas caligrafias na margem do Lago do Oeste, em Hangzhou, junto da lendária Ponte partida. Huang Yuanjie relaciona-se então com literatos como a cortesã e poeta Liu Rushi (1618-1664) ou a também antiga cortesã, poeta e pintora Xue Susu (c.1564-1650?). Desse tempo de intensas trocas de pinturas e poemas, transportados ao longo da rica região de Jiangnan por viajantes inquietos, serão exemplos dois leques com pinturas que estão no Museu do Palácio Nacional, em Pequim. Num deles, uma Paisagem (tinta sobre papel dourado,16,2 x 51,2 cm) estão figurados dois salgueiros, duas montanhas e um casal navegando dentro de um barco coberto. No fim da sua vida, Huang Yuanjie ainda foi perceptora, ensinando as belas letras em casas de famílias abastadas. Ela, que bem conhecia esses lugares interiores em que mulheres literatas viviam confinadas a que no séc. VI, Xu Ling chamou «terraços de jade» não se conformou, deixando-se tocar pela estranheza do lado de fora.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA carta da Imperatriz para o Papa no tempo da mudança Li Zicheng (1606-1645), o rebelde, entrara em Pequim no dia 26 de Abril de 1644, o imperador Chongzhen percebeu que não havia saída, escolheu um árvore numa colina da Cidade proibida e terminou os seus dias e com ele a dinastia Ming (1368-1644). O princípe herdeiro é feito prisioneiro e a 6 de Maio os altos funcionários que fugiram para Nanquim, a capital do Sul, proclamam imperador Zhu Yousong, o Princípe Fu, que entra na cidade a 17 de Maio. Seria o primeiro de três reinos em desespero que, juntos, seriam conhecidos como Nan Ming, os Ming do Sul. Além de Zhu Yousong, que reinaria durante um ano como Honguang «A grande luz», o Princípe Tang, Zhu Yujian (r.1645-46) e Zhu Youlang, o Princípe Gui (r.1646-62) procuraram recuperar o poder da família reinante durante quase trezentos anos. Desse breve tempo de resistência e inquietação emergiram factos olvidados que fizeram emergir a coragem e a perseverança de indivíduos que caracterizaram a extrema situação de aflição. Um desses inéditos eventos ocorreu no seio da família de Zhu Youlang (Yongli), quando este estava no seu palácio temporário em Zhaoqing (Guangdong) e, com outros altos funcionários, a sua mãe honorária Wang Huiling (1600-54), a sua mãe, a imperatriz viúva Zhaosheng (1578-1669) e a sua esposa principal Xiaogangkuang (?-1662) se convertem ao Catolicismo, adoptando os nomes respectivos de Helena, Maria e Anna. Também baptizado, o filho do imperador recebeu o auspicioso nome de Constantino, o imperador romano (r.306-37) que triunfou com o símbolo de Cristo. Em conjunto as senhoras assinaram uma carta dirigida ao papa Inocêncio X pedindo-lhe ajuda no seu combate aos invasores Manchus. A carta, escrita a tinta sobre seda, foi traduzida para latim e levada em mão própria pelo missionário jesuíta polaco Michal Boym (c.1612-1659) que, atravessando incontáveis obstáculos, só graças à pertinácia do portador conseguiu chegar ao destino seis anos depois. Entre os literatos leais aos Ming, face à traumática revolução designada bian, «transformação», a atitude foi firme. Yang Wencong (1597-1646) de Guiyang (Guizhou) deixou na sua arte marcas dessa firmeza. Pintor e poeta, serviu no reino do Princípe Fu em redor de Nanquim. Num álbum de pinturas de 1644 (tinta sobre papel, 30,2 x 24,8 cm, no Museu de Arte de Indianápolis), notam-se casas vazias no meio da paisagem figurada em pinceladas enérgicas e facundas mostrando a natureza forte e constante como o seu carácter leal. A mesma lealdade que o jesuíta Boym demonstrou enfrentando proibições e prisões, conseguindo finalmente entregar a carta de Helena Wang ao papa, que entretanto era já Alexandre VII. E embora a resposta fosse pouco mais que a oferta de orações ele trouxe-a e, encontrando tremendas dificuldades, atingiu Guangxi em 1659 mas era demasiado tarde, já tudo mudara.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioOs Barcos de Maravilhas da Dinastia Ming Zheng He (1371-1433), no regresso da sua quarta grande viagem (1413-15) em que comandou a maior frota de navios de madeira jamais constituída para exposição do poder e grandeza do Império, trouxe, além de enviados de trinta Estados, como tributo ao imperador uma girafa. Trouxe-a de Bengala (no actual Bangladesh), um lugar onde esse animal não existia. Tinha vindo de África, como seria de esperar, já como uma oferta do rei de Melinde (actual Quénia) para esse Estado. Depois de observada pelo imperador Yongle, habituado a receber invulgares animais exóticos, alguns olhando o estranho animal, espantados com o que viam, disseram reconhecer nele o imaginário qilin, a quimera que se dizia surgir para anunciar o advento de um sábio. Da girafa, colocada nos jardins imperiais onde foi cuidada, foram depois feitas pinturas que guardaram o seu inusitado aspecto. Num rolo vertical conservado no Museu de Arte de Filadélfia (tinta e cor sobre seda, 80 x 40,6 cm) ela é apresentada junto do seu tratador e em cima, à esquerda, é identificada como um qilin. Mas, se da perigosa navegação cortando ondas alterosas se podiam esperar eventos incríveis, capazes de estimular auspiciosas fantasias, a necessidade espiritual de navegar, descobrir lugares e pessoas desconhecidos, dominaria a imaginação de literatos durante a dinastia Ming. Muitas vezes e de modo particular na arte da pintura, o antigo relato que Tao Yuanming (365-427) fizera de uma singular viagem solitária em que não eram protagonistas naves de alta proa sulcando os mares, enfrentando ondas colossais, mas um humilde esquife de madeira serpenteando na suave ondulação das águas de um rio, seria recontado e imaginado vezes sem conta. A popularidade da história da Nascente das flores de pessegueiro (Taohua yuan) situada num lugar inacessível, alcançado por acaso com um pequeno bote, ficaria resumida no ditado (chengyu) shiwai taoyuan, «fora do Mundo há uma nascente de flores de pessegueiro». Wang Shichang (1462- depois de 1531), um pintor literato de Jinan (Shandong) imaginou o momento em que um pescador, um «homem de Wuling que se esquecera das distâncias da rota», é recebido com afecto (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 24,4 x 190,5 cm na Galeria de arte da Universidade de Yale). A mesma cena que, no século XVIII, seria figurada no Longo corredor do Palácio de Verão em Pequim. Ao chegar, o pescador espantara-se com o que encontrara: árvores de flores cor-de-rosa prenunciavam o encontro com uma acolhedora comunidade pacífica. O veículo feito com um tronco de árvore que o transportara, discretamente preso na margem, tão comum quanto admirável fora muitas vezes tomado como metáfora por poetas como Zhao Ju, no século III: «Move-se mas não deixa rasto, Não cria raízes mesmo parando, Não tem pressa mas é rápido, É veloz como um cavalo galopando.»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAs Flores Estrangeiras do Imperador Qianlong Pierre Nicolas Le Chéron d’Incarville (1706-57,) o missionário jesuíta botânico estava em Pequim há já treze anos quando finalmente conseguiu uma audiência com o imperador Qianlong (r.1736-1795) e lhe apresentou uma pequena planta tropical, oriunda das Antilhas, tão surpreendente e sensível que, quando uma folha era tocada com um dedo imediatamente se recolhia e todas as outras em sucessão se recolhiam. Numa carta datada de 27 de Outubro de 1753 dirigida a Bernard de Jussieu (1699-1777), eminente botânico que seria professor no Jardin des Plantes do rei de França, ele recorda esse dia em que apresentou a mimosa pudica ao imperador: «Como novidade devo dizer-lhe que dois pés de sensitiva que ofereci ao imperador lhe agradaram deveras. Ele deseja muito que elas produzam sementes (…) O monarca divertiu-se bastante, rindo com vontade. Precisamos muito delas. Tenho ordem de as ir visitar com frequência. Nessa ocasião o imperador perguntou-me se não tinha outras flores ou plantas da Europa e eu disse-lhe que há vários anos semeava mas elas não cresciam. Respondeu-me que se eu desejasse podia semear em outros lugares.» Esse pequeno gesto de «diplomacia botânica» significava uma grande abertura para o paciente labor do botânico Francês que noutra carta escrita dois anos depois de chegar a Pequim, em 20 de Setembro de 1742, parecia queixar-se: «Herborizo num parque que temos aqui e no espaço do nosso cemitério: é aqui que colecciono algumas sementes, há poucas que sejam muito especiais, a maioria são as mesmas que temos na Europa.» Com o tempo e a permuta de sementes de e para a Europa ele viu desabrochar, algumas só brevemente, flores estrangeiras dentro da Cidade Imperial. Cumpria assim o projecto de Matteo Ricci de fazer com que se notasse, como num espelho imperfeito, que entre os estranhos também luzia a alegria do entendimento. O imperador mostraria o seu apreço pela natureza pedindo a pintores, alguns Europeus como Catiglione, que fizessem símiles da imensa variedade da flora observável. Guan Huai (1749-1806), em cujo nome está a palavra huai, que é a designação da árvore que Lineu denominou sophora japonica, também conhecida como «árvore dos pagodes» que foi uma das espécies que o jesuíta d’Incarville deu a conhecer à Europa em 1747, pintou para o imperador um pequeno álbum portátil com o qual Qianlong podia passear, reconhecendo as flores no jardim do seu exótico Retiro de montanha em Chengde. Em cada uma das oito páginas de Crisântemos estrangeiros (tinta e cor sobre papel,13,6 x20,4 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé) sobre cada flor o imperador escreveu no Outono de 1786, um poema louvando a beleza efémera. Então, ele já sabia por experiência o que diz o «provérbio» (chengyu) jinghua shuiyue, «flores no espelho, a lua na água»: há coisas que se podem ver mas não tocar.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioOs olhos do dragão oculto no traje da Imperatriz Zhang Xuanren, mais conhecida como a imperatriz Gao (1032-1093), sendo regente entre 1085-93, tornar-se-ia um exemplo da flexibilidade do silente exercício do poder, tendo um papel decisivo e discreto no regresso do poeta Su Shi (1037-1101) do seu exílio em 1086. O que seria recordado de modo elucidativo numa pintura atribuída ao pintor Zhang Lu (1464-1538) quando reinava uma outra formidável imperatriz. Nesse rolo horizontal, O regresso à corte de Su Shi (tinta e cor sobre papel,32,4 x 629,9 cm, no Museu de Arte de Berkeley, Universidade da Califórnia), o poeta é figurado a caminhar, rodeado de senhoras mas onde a imperatriz está significativamente ausente. E, se todos naquele tempo poderiam reconhecer essa ausência, a todos seria igualmente patente a coincidência do que então ocorria com a imperatriz viúva Xiaochengjing, mais conhecida pelo nome do seu clã, como imperatriz Zhang (1470-1541). Num retrato póstumo (tinta e cor, 64,2 x 52 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé) como era usual, feito antes de 1505 quando se dá a transição para o novo imperador seu filho, Zhu Houzhao (1491-1521) que reinaria como Zhengde, ela é mostrada com a sua imponente fengguan, a «coroa de fénix», no sebasto do seu vestido como era habitual, dois comuns e decorativos dragões bordados. Porém do decote, nas vestes interiores notam-se como espreitando, oblíquos, dois grandes olhos de dragão que na sua assimetria denunciam o movimento, a poderosa e inquietante força do dragão. O nascimento desse seu filho fez parte da sua inédita trajectória de aquisição de poder, manifestada logo no facto singular de ser a esposa do único imperador adulto (Hongzhi, r. 1488-1505) que não teve outras esposas ou concubinas. Tendo casado em 1487, o filho de ambos só nasceria quatro anos depois, após ela ter participado em 1490 em elaboradas cerimónias propiciatórias dirigidas pelo quinquagésimo Mestre do Céu do Daoísmo, Zhang Guoxiang (c.1577-1612). Zhang, a imperatriz, faria parte em 1493, de outro ritual em que como outros imperadores, foi ordenada sacerdotiza na Escola daoísta Zhengyi, do Tianshidao. A excepção será porventura, tê-lo feito seis anos antes do imperador seu marido. Essa cerimónia de legitimação ficaria registada num longo rolo horizontal (tinta e cor sobre papel dourado, 54,6 x 2743 cm, no Museu de Arte de San Diego) que mostra, entre nuvens, uma procissão de seres celestiais, deuses, Zhang Guoxiang visto de frente e a figura da imperatriz vestida com as vestes adequadas mas estranhamente pintada sobre um papel diferente colado no rolo. Numa longa inscrição refere-se Jiutian Xuannu, a «misteriosa Senhora dos nove céus», com quem se identifica a imperatriz e sobre quem uma fonte daoísta comenta; «De modo a sufocar o mal e fazer regressar a rectidão, foi preciso aprender a tornar-se invisível.»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioOs estranhos penhascos e colinas de Jiang Shen Mi Fu (1051-1107), pintor, calígrafo e coleccionador de arte e de pedras caprichosamente formadas pela natureza, foi elogiado pelo modo como escrevia, concentrado no movimento elevado do cotovelo e não do pulso que segura o pincel, na expressão e não na perfeição dos caracteres. As suas sugestivas pinturas de aspecto enevoado também não ficavam marcadas pelo curso do pincel na superfície pintada (wubiji). Em tudo parecia responder ao que está escrito no Zhuangzi sobre «esquecer as palavras depois de entender o seu significado». Na originalidade do seu estilo porém, se não havia explícitas marcas das obras do passado, muitas delas da sua própria coleção particular, reconhecia-se nelas um honesto estudo. Um modo de proceder próprio dos pintores da dinastia Song, cujas pinturas são o resultado singular de uma informada combinação de elementos aparentemente fortuitos e contrastantes, cujo espelho era a própria natureza. E como ela, com trechos coincidentes e aspectos dissonantes, dependendo da experiência individual do homem que caminha consciente da riqueza de tudo o que o rodeia. De modo elucidativo isso está manifesto na famosa pintura de Fan Kuan (c. 960-c.1030) Viajantes através de rios e montanhas (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 206,3 x 103,3 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé). A grandiosa majestade do espaço natural, contrastando vivamente com a minuciosa delineação dos pequenos vajantes e mulas carregadas, é parte desse vocabulário. Outras especifidades resultam de uma cuidadosa atenção às possibilidades expressivas da mutável paisagem ao longo das estações do ano e estão presentes na impressionante pintura de Guo Xi (1020-90) conhecida como Árvores velhas, distância plana (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 35,6 x 104,4 cm, no Metmuseum). Aí se notam os ramos retorcidos como «pinças de caranguejo», que traduzem a emoção que desperta a queda das folhas das árvores no Outono. Jiang Shen (c.1090-1138), um pintor que nasceu em Xinan (Zhejiang) e que frequentava a casa de família de Mi Fu quando este vivia em Wuxing, cerca de 1136, e adoptando embora algumas das inovações do mestre, como os célebres pontos de tinta de Mi Fu (Mi dian), acabou criando algo novo e estranho. Em dois rolos horizontais que lhe são atribuídos; Montanhas verdejantes (tinta sobre seda, 33,6 x264, 1cm, no Museu Nelson-Atkins, Kansas) e Espaço Infindável de rios e montanhas (tinta sobre seda, 46,3 x 546,5 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé) também são visíveis características associadas aos pintores do século X, Juran e Dong Yuan, parte da sua síntese. Muitos anos depois, quando o influente Dong Qichang (1555-1636) expôs a sua própria grande síntese (dacheng) escreveu: «Para pintar colinas em contínuo e cordilheiras penhascosas há que aprender com Jiang Guandao (Jiang Shen)».
Paulo Maia e Carmo Via do MeioTrês Procissões Pintadas Durante a Dinastia Tang Wu Daozi (c.680-759) foi um pintor da dinastia Tang cujo nome evoca a habilidade de criar em pinturas murais cenários tão credíveis, «ousados e livres como as ondas que se desenrolam no mar» num dos quais ele, na presença de um imperador, entrou e desapareceu por entre volutas de nuvens. Se é certo que hoje originais das suas obras ainda se não encontraram e, como ele, há muito tempo desapareceram, aqueles que as viram não esqueceram. Zhang Yanyuan escrevendo em 847, exclamou com admiração que «os deuses devem ter-lhe dado uma mão; porque a sua obra sondou a criação até ao extremo» (Lidai Minghua ji). Para além de Wu Daozi, outros executaram pinturas murais ou para serem penduradas nas paredes de templos e são hoje testemunho do espanto e do valor que tiveram naquele tempo e para diferentes religiões, certas atitudes e práticas. Alguns fizeram-no agindo para a corte da dinastia Tang e por isso reflectiram o sofisticado gosto dos soberanos e aristocratas. Um tema, no entanto, parece ser comum a vários delas. Para o Daoísmo, que mais do que em textos se exprime numa ortopraxia, olhar essas figuras entendíveis no contexto da prática religiosa é ao mesmo tempo deslumbrante e misterioso. Como se vê no rolo vertical Divindade daoísta da terra (tinta, cor e ouro sobre seda, 125,5 x 55,9 cm, no Museu de Belas Artes de Boston) que já foi atribuído a Wu Daozi representando Diguan, o que perdoa os pecados numa procissão, possui a gravidade com que os soberanos impressionavam os súbditos quando passavam, ocupando e dignificando o espaço que percorriam. Como também faz o Buda das luzes resplandecentes (tinta e cor sobre seda, 80,4 x 55, 4 cm, no Museu Britânico) que mostra a figura do Buda Tejaprabha deslocando-se num carro acompanhado de cinco planetas e que tem o mesmo efeito de sacralizar os lugares por onde transitavam. Zhang Huaiqing o discípulo que doou a pintura em 897, colocou nela o seu nome mostrando assim a eminência dos doadores e encomendadores no complexo de Dunhuang (Gansu) de onde provém esta invulgar representação. Pintores de outras religiões figuraram um mesmo desfile sagrado com o sentido próprio da sua tradição. Raras pinturas murais datadas dos séculos VII-IX, descobertas no início do século XX nas ruínas da antiga cidade de Qocho (Gaochang, Xinjiang) nas fronteiras do deserto de Taklamakan revelaram a antiguidade ali da presença da religião de Cristo. Uma delas mostra a procissão de Domingo de ramos (no Museu de Arte Asiática de Berlim) como se deduz por três personagens empunhando ramos de palmeira que se viram para uma figura maior (um sacerdote?) que traz na mãos um recipiente para a água e um turíbulo de onde se soltam volutas de incenso evocando o espírito, esse real invisível a que o pincel do poeta ou do pintor é capaz de dar um nome e uma aparência local.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAlopen e Yuchi Yiseng: Estrangeiros em Chang’an Li Shimin (598-649), que reinou como o imperador Tang Taizong, (r.626-649) numa magnimidade disponível, recebeu na sua capital Chang’an as mais exóticas personalidades, com quem partilhou a elevação do seu espírito. Nessa cordialidade para com os estranhos, que correspondia a uma calculada opção estratégica e cultural de posicionar o seu reino como guanzhong, uma terra «entre desfiladeiros», recebeu um dia um missionário oriundo de uma terra longínqua que veio caminhando ao longo da grande via continental hoje conhecida como a «Rota da Seda». De acordo com a inscrição numa estela encontrada no século XVII em Xian (Shaanxi), a antiga Chang’an, ele vinha de Daqin (o Império Bizantino) «descobrindo por entre o azul e as nuvens, trazendo os verdadeiros e sagrados livros; contemplando a direcção dos ventos, enfrentando dificuldades e perigos», e lá chegou no ano 635. Diz nessa inscrição que se chamava Alopen (Aluoben) e enunciava a religião de Jesus de Nazaré. Ouvindo falar o estrangeiro, Taizong não só o acolheu como permitiu que criasse uma igreja e continuasse a sua missão, que não viu muito diferente dos seus já conhecidos heróis daoístas ou sábios confucionistas, promovendo o convívio de todos. Até quase ao fim da dinastia Tang foi permitido aos missionários, os que vieram com o cristão assírio Alopen e depois deles, a estadia no Império. Até que foram expulsos, só regressando trezentos anos depois. É possível que o carácter «portátil» da religião de Alopen, necessitando de escassos meios para se mostrar; palavras, uma cruz, pequenas figuras pintadas ou esculpidas, facilitasse o procedimento de fazer esquecer a nova religião. Algo diferente sucedeu com a religião de Buda Sakyamuni, para a qual a existência de pinturas murais é parte integral do espaço construído dos seus templos para elucidação dos crentes e perplexidade dos visitantes. Na era de Taizong também chegou a Chang’an um artista budista cuja memória permaneceria nos tratados da pintura. Yuchi Yisang (Visa Irasanga, activo no século VII) veio do Reino de Khotan, na Ásia central (actual Xinjiang) para servir como guarda do palácio imperial, mas logo se notabilizou na decoração de templos budistas e daoístas nas regiões de Chang’an e depois de Luoyang. Sobre ele Zhu Jingxuan, escrevendo no fim dos Tang, a meio do século IX disse: «Os temas estrangeiros na pintura, figuras de fantasmas e formas exóticas, todos praticados por Yuchi Yiseng, foram quase completamente descontinuados.» (em Tangchao Mighua lu, «Sobre pinturas famosas do período Tang»). Da sua obra restam escassos exemplos e de difícil autenticação, entre eles, as figuras de duas mulheres do reino de Kusha, pintadas a tinta e cor sobre seda (Villa I Tatti, Florença). O seu corpo, a primeira fronteira da expressão do espírito, move-se em harmonia numa dança.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioYu Sheng e os Compêndios de Pássaros e Animais Ferdinand Verbiest (Nan Huairen, 1623-88) o missionário jesuíta flamengo que mostrou ao imperador Kangxi (r. 1661-1722) o vasto alcance da ciência desenvolvida no Ocidente, tem os nomes de duas das suas obras traduzidas como atestado de autoridade num dos extraordinários compêndios em que a arte e o conhecimento científico, unidos, fizeram a justa fama do admirável reino do imperador Qianlong (r.1735-96). Esse ambicioso albúm descritivo, escrito em duas línguas com caracteres manchus e sinográficos e meticulosamente ilustrado é também ele, não só testemunho do modo como o labor de pintores Europeus na corte imperial alterou certas percepções da representação dos volumes, como do sempre afirmado respeito pelos antigos, e até do sentimento de deferência e estima (xiao), traduzido habitualmente como «piedade filial» sentido por Qianlong em relação ao seu avô. No minucioso Niaopu, «Compêndio das aves» (tinta e cor sobre seda, 41,2 x 43,9 cm, nos Museus do Palácio de Pequim e Taipé) de 1751, onde se encontram aves reais e mitológicas, nativas e estrangeiras e que é entendido como um tributo ao imperador em reconhecimento do poder do seu reino de múltiplos mundos, as obras de Verbiest asseguram a origem do perú como ave originária do México, conhecimento adquirido pelas navegações europeias. Logo no início é afirmado que esta se trata de uma cópia de um original pintado por Jiang Tingxi (1669-1732) com poemas de Wang Tubing cerca de 1721 no tempo do imperador Kangxi e que nele se encontram os «trezentos e sessenta animais de penas» identificados no Liji, o Livro dos Ritos atribuído a Confúcio, e de que o fenghuang é «entre todos, o líder». Que é o primeiro pássaro representado, seguindo uma longa tradição, nomeado já na dinastia Shang (1600-1946 a. C.) e aqui pintado com o mesmo cuidado que os outros, que denotam uma atenta observação das aves na natureza, por dois pintores da corte, um dos quais se distinguiria no género huaniaohua, a «pintura de pássaros e flores» que inclui também a figuração de peixes ou insectos. Yu Sheng (também escrito Yu Xing, 1692-depois de 1767) fez o álbum das aves com Zhang Weibang (c.1725-c.1775) com quem continuou a inquirição taxonómica através de um Compêndio de animais, Shou pu (tinta e cor sobre seda, 40,1 x 42,5 cm, no Museu do Palácio em Pequim). Nele, a mesma atenção aos detalhes das figuras e dos textos escritos em duas línguas por oito altos funcionários, baseados em descrições em primeira mão de quem os observou, muitos deles emissários enviados pela corte ou por autoridades locais. Para além destes ambiciosos projectos,Yu Sheng dedicou uma particular atenção às flores, silenciosas manifestações de contínua renovação cujo perfume é capaz de evocar outros tempos, outros lugares, despertando nostálgicos sentimentos até dos confins do Império.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Pincel Simpatico e o Carimbo Fiel de Wen Peng Wen Zhengming (1470-1559) regressou a Suzhou em 1527 depois de três desanimadores anos na corte para cumprir um antigo ideal dos literatos, materializado no relato do poeta Tao Yuanming (365-427), em que se entende o lugar do exílio como uma oportunidade para reconhecer e partilhar com alegria, e ao mesmo tempo, a vida interior, a natureza moral do indivíduo e a beleza do local que o acolhe. E aí se fala de Jiangnan, a «Sul do Grande rio Changjiang», em cujo espaço se encontra a grande cidade de Suzhou. Nela Wen Zhengming viveu, como convidado, num estúdio do famoso Zhuozheng yuan, o «Jardim do inábil administrador» que lhe inspiraria um ensaio e muitas pinturas e poemas. Nesse jardim que tem recantos com designações poéticas como Baixio das imensas fragrâncias, Horto que atrai os pássaros ou o Pavilhão dos pensamentos de grande alcance, o pintor reflectiu entre outras coisas, no modo como se poderiam transmitir as artes do pincel. Numa pintura recordou as palavras do seu mestre Shen Zhou (1427-1509) ao observar uma obra que ele fizera usando os estilos de dois antigos e venerados mestres: «Não se pode simplesmente tomar Jing Hao e Guan Tong e dizer que se tem um estilo de pintura. Só quando a arte vem de dentro é que se possui rios e montanhas.» E ele faria essa aproximação interior, notada noutras obras em que o seu pincel se confundiu de propósito com outros, como no rolo horizontal (tinta e cor sobre seda, 31,5 x 541,6 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé) A última ode do penhasco vermelho, imitando Zhao Bosu (c. 1123-82), onde também copia o texto de Su Shi que está na sua origem. Doutro modo, o seu nome apagou-se para que aparecesse o de Shen Zhou, numa prática reconhecida como daibi, «pincel emprestado». Wen Peng (1498-1573), o filho mais velho de Wen Zhengming, viria por sua vez a assumir essa discreta adesão ao modo de fazer do seu pai. Uma vontade de partilhar presente nas duas odes de Su Shi que os dois admiravam. Numa passagem da primeira, que o seu pai ilustrou e que se vê no Instituto das Artes de Detroit (rolo vertical, tinta sobre papel, 143 x 33,5 cm), lê-se: «A brisa clara sobre o rio, o luar resplandecente entre as montanhas; o ouvido recebe primeiro criando um som, o olhar encontra o objecto e surge a cor. São coisas que podemos receber de graça e nunca se gastarão. Porque estes são os infindos tesouros da Natureza, que estão aqui para tu e eu desfrutarmos juntos.» No álbum de pinturas Panoramas de Yixing (tinta e cor sobre seda, 31, 7 x 24, 2 cm, cada uma das dez folhas duplas, vendido na Christies) em cada cenário estão sempre dois amigos animados na partilha da beleza à sua frente. Wen Peng distinguir-se-ia também e sobretudo no entalhe de carimbos que, se é certo que atestam com autoridade o indivíduo, são uma marca a ser reconhecida pelos outros.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioUm homem velho a pescar sem anzol num rio frio Ma Yuan (c.1160-1225), justamente admirado e ilustre pintor da dinastia Song do Sul, é geralmente reconhecido como a primeira pessoa a representar um carretel, a bobina em que se enrola a linha da cana de pesca. Um pormenor singular numa surpreendente pintura figurativa em que apenas se mostra um homem Solitário pescando num rio frio (rolo vertical, tinta sobre seda, 141 x 36 cm, no Museu Nacional de Tóquio). E, de tal modo austera e desprovida de referências espaciais que, na sua abstração ela se percebe como um ponto-chave, não só daquilo que é a representação artística mas também como uma subtil inquirição à substância do tempo. Quem olhasse aquela figura pescando numa embarcação poderia recordar um ditado: «Só os mais persistentes chegarão à linha de pesca de Jiang Taigong». Que refere a história de Jiang Ziya (1128-1015 a. C.), um estratega que serviu o último soberano da dinastia Shang (séculos 16 -11 a. C.) que se tornara um tirano e que, já com cerca de oitenta anos, os cabelos brancos, foi descoberto pelo rei Wen de Zhou sossegado a pescar sem isco ou anzol no rio Wei, perto da actual Xian. Ele esperava sabendo que os peixes viriam quando estivessem prontos. E foi assim que chegado o tempo favorável, o rei Wen o contratou para grande glória do seu reino. Outra clara referência da pintura é o poema de Liu Zongyuan (773-819) Neve no rio, que termina com o verso Du diao han jiangxue, «Só, pescando no rio frio, à neve» em que a utilização da palavra du, traduzindo-se como «só», e não gu que seria «sozinho», «abandonado», prova que ele está ali por sua própria volição. Esse poema inspirador está na origem de muitas pinturas. E se um adepto budista poderia saber que um cenário frio como aquele pode ser o lugar propício para encontrar a iluminação espiritual, como prova o caso do «rapaz montanhas nevadas», nome de uma prévia encarnação do Buda Sakyamuni, uma pintura feita na dinastia Ming, levanta outras hipóteses quanto à razão de ele estar ali pescando. Shi Zhong (1438 – depois de 1506), o autor da pintura e do poema da Paisagem de Inverno com um pescador (rolo vertical, tinta sobre papel, 142, 2 x 32,1 cm, no Metmuseum) foi um pintor profissional de Nanquim cuja pincelada áspera se adequava à pintura dos cenários escarpados do Inverno. No sopé de uma dessas montanhas, Shi colocou o seu pescador de costas com chapéu de bambu e abrigo de palha, elementos que mostram a sua adesão à natureza, e uma comprida cana de pesca que quase chega à margem, mas cujo fio parece estar enrolado para trás e não cai na água.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO aniversário das flores no álbum de Dong Gao Cui Xuanwei, um velho eremita daoísta que vivia a Leste de Luoyang na dinastia Tang, regressava de uma longa jornada em busca de ingredientes para fazer um elixir, quando notou com admiração que plantas silvestres cresciam no seu jardim abandonado. No fim desse belo e inesperado dia de Primavera, a meio de uma noite banhada pelo luar, sentiu uma leve brisa e, do lado de fora da casa, apareceu-lhe uma jovem que, com as suas irmãs, lhe pediu abrigo para passar essa noite. Entraram no pátio doze ninfas que lhe explicaram que precisavam de se refugiar ali porque nesta altura do ano estavam sujeitas a grandes ventanias. Ele aceitou acolhê-las e, quando elas partiram no dia seguinte, dando-lhe como recompensa umas singulares pétalas que ele usou num remédio que lhe garantiu uma longa vida, disseram-lhe para colocar do lado oriental da casa uma bandeira vermelha. No ano seguinte quando, numa manhã de Fevereiro veio uma tempestade, as flores do jardim permaneceram intactas e assim sucedeu todos os anos a seguir. A história que associa os ventos chuvosos do fim do Inverno ao despontar das flores é relatada na Extensa relação da era Taiping xinguo (Taiping guangji) do século X, mas só publicada na dinastia Ming, retomada entre outros por Feng Menglong. E é referida como estando na origem da «Festa da manhã das flores» (Huazhaojie) que se celebra em Pequim no décimo quinto dia do segundo mês lunar e explica a razão do uso nesse dia das bandeirolas vermelhas. À comemoração das flores também se quiseram associar os literatos. O filho de um eminente pintor e funcionário imperial, Dong Bangda (1699-1769) encontraria uma forma original e engenhosa para celebrar as boninas. Dong Gao (1740-1818), igualmente funcionário imperial influente que também foi poeta e pintor, faria um álbum de doze folhas com vinte e quatro pinturas, todas acompanhadas de poemas e que está no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, designado Ventos floridos da promessa. Partindo da ideia de que a chegada dos ventos da Primavera mostravam o cumprimento anual de um compromisso dos Céus de conceder a beleza e as cores ao Mundo para serem apreciadas por quem as soubesse admirar, ele ilustra os vinte e quatro ventos da promessa com flores que desabrocham nesse período de quatro meses. E que correspondem a oito termos solares (jieqi) do antigo Calendário lunisolar conhecido já na dinastia Zhou (1050-771 a.C.), chamado Tang li ou Nongli. Começando a seguir ao solstício de Inverno, no vigésimo terceiro termo chamado «pequeno frio» (xiaohan) quando «a energia do yang começa a aumentar» no início de um novo ciclo, Dong mostra a abundante variedade da natureza desde as flores da ameixieira (meihua) até às perfumadas e quase púrpuras flores da amargoseira do Himalaia (melia azedarach, fulin) no sexto período, da «chuva do milho» (guyu).
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA vontade de Zhu Zhifan em contemplar Nanquim Su Dongpo (1037-1101), o poeta cuja vida atribulada o conduziu aos mais inesperados recantos do Império, seria sempre recordado como um viandante. Certo dia em Danzhou (Hainan) a terra onde passou exilado, os últimos três anos da sua vida, saíu de casa para ir visitar o seu amigo Li Ziyun e foi surpreendido pela chuva. A dificuldade não o demoveu, e pedindo emprestados a um camponês, um chapéu de palha e umas socas de madeira, continuou o seu caminho. Pessoas que viam passar o literato com as suas longas vestes de funcionário imperial misturadas com a lhaneza dos acessórios rurais, riam-se e diz-se até que cães, denotando a estranheza, ladravam à sua passagem. Mas a figura do poeta e a sua longanimidade, encapsulados na expressão Dongpo liji (Dongpo com chapéu de palha e socas) perdurariam e mais tarde, quando se começou a celebrar de forma metódica a sua vida e o seu aniversário, essa memória foi avidamente recuperada em pinturas e esculturas que até hoje celebram o herói cultural. E é assim que ele surge, caminhando e inclinando-se ligeiramente para levantar a fímbria dos seus vestidos para que não se arrastem na lama, numa pintura (rolo vertical, tinta sobre papel, 92 x 29 cm, no Museu Provincial de Guangdong), atribuída ao pintor literato de Nanquim, Zhu Zhifan (1558-1624). De maneira característica, diz-se que essa seria já uma cópia de uma outra, executada pelo pintor Li Gonglin (1049-1101), que efectivamente conheceu o poeta, conferindo-lhe veracidade. Noutras pinturas Zhu Zhifan ilustrou lugares distantes como no álbum Expedição ao Norte (dezoito folhas, tinta e cor sobre seda, 21,7 x 27,4 cm, no Museu Britânico) onde evoca a trágica narrativa sobre Cai Wenji, a poeta que foi levada para a terra dos Xiongnu, além das fronteiras do Império. Porém, seriam sobretudo as viagens dentro e à volta da sua cidade natal de Nanquim que o cativariam. Zhu Zhifan escreveu logo no início do século dezassete uma relação sobre a cidade de Nanquim referida pelo antigo nome Jinling que, dado o seu sucesso seria editada, revista e aumentada com poemas em 1624 e desenhos de Lu Shoubo sob o nome de Jinling Tuyong, «Odes ilustradas de Jinling». Dela constam não apenas descrições de quarenta lugares panorâmicos para observar a orbe mas também a imaginação, as histórias e lendas que os lugares despertaram. A vontade de fazer a obra nasceu, como ele refere na introdução, do seu próprio desejo de ver e documentar esses lugares, afinal parte de uma celebrada prática cultural entre os literatos designada woyou, «viajar deitado». A mesma vontade que levou Su Dongpo a não desistir da intenção de dialogar com o seu amigo, indiferente à chuva, como quem sabe que há algo que não se pode perder. Uma intuição que se percebe na tradução da palavra «curiosidade», haoqi, que denota a busca de algo bom e raro.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Retrato Fictício da Senhora Hedong Feng Menglong (1574-1646), o escritor e poeta da actual Suzhou (Jiangsu), em muitas das suas obras daria forma a um culto das emoções que se generalizava nesse final da dinastia Ming, desenvolvido em torno da palavra qing, que se refere a uma desinteressada e ardente simpatia pelos outros que, ao focar-se na importância das relações humanas, acabaria na acentuação do progressivo reconhecimento de mulheres inspiradas e inspiradoras. Na sua ambiciosa «História das emoções» (Qingshi), parte do sofisticado impulso enciclopédico que visa não apenas conhecer o Mundo mas também o discurso sobre o Mundo, Feng Menglong recolhe mais de oitocentas histórias que provam que «as coisas nesta vida são como moedas soltas; as emoções (qing) são a corda do cordel que as junta todas.» Entre esses relatos está o da jovem bela e talentosa Feng Xiaoqing, que não sobrevive à leitura do romance do Pavilhão das orquídeas (Mudanting, peça escrita em 1598 por Tang Xianzu) e cuja crónica confirma a fatídica relação entre o engenho e a tragédia quando entretecidos pelas emoções. Outro influente literato do tempo, Qian Qianyi (1582-1664) achava a história demasiado perfeita para ser verdade, desconfiando da imaginação do coleccionador de emoções, sem saber que a sua própria biografia se desenrolaria como um desafio à credulidade dos leitores. A sua relação com a cantora, dançarina e poeta Liu Yin (1618-1664) que escolheu o nome Liu Rushi, «ser como um salgueiro», a árvore que simboliza a emoção da dor da separação, foi-se contando ao ritmo de palavras ordenadas como coincidências ou rimas. A saudade que ela não quis sentir, fê-la despedir-se da vida quando ele perde a sua. Quem soube desses acontecimentos, guardou a memória dessa poetisa cortesã com admiração. E os retratos pintados com a sua figura seriam acolhidos com curiosidade. Wu Zhuo, um pintor activo no século dezassete, mais conhecido por pintar paisagens, figura como autor de um elegante e problemático retrato de Liu Rushi, aí designada por outro dos seus nomes artísticos. Nesse rolo vertical (tinta e cor sobre seda, 119,5 x 62,3 cm, no Museu de Arte de Harvard) pode ler-se numa inscrição: «Pintado para a senhora Hedong por Wu Zhuo de Huating, no Outono de 1643 na quinta de montanha da Água que limpa (Fushui shanfang)». Referências tão específicas, como o nome artístico de Liu Rushi, Hedong Jun ou o nome da quinta de Qian Qianyi, emprestam um tom de veracidade desmentida pela própria pintura. Como a pose descontraída, carismática com uma perna levantada e indecorosa para a esposa de um circunspecto literato. Porém, o seu olhar directo para o observador transmite uma intranquila sensação de proximidade. E é esse olhar que serve de ponte entre «os que expressam as emoções e aqueles que as não revelam e vivem em mundos diferentes», como Feng Menglong escreveu.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA cadeira longa de Feng Xioaoqing Su Xiaoxiao (c.479- c.501), a poeta, cantora e bailarina nascida em Qiantang (actual Hangzhou, Zhejiang) junto do rio com o mesmo nome que daria origem, no século oitavo, ao Lago do Oeste, sentia-se acolhida por um lugar único, que a recebia como se fora feito para ela viver nele. Aqueles que guardaram a sua história para a posteridade concordaram que não podia existir melhor cenário para espelhar a sua inteligência, a sua inspiradora vitalidade poética e a sua beleza. Os seus últimos desejos evocados numa cadenciada sequência de palavras: «Nascida em Xiling, morro em Xiling, serei sepultada em Xiling, merecedora desta paisagem.» O imperador Qianlong, nas suas Viagens ao Sul em 1780 e 1784, faria das visitas ao túmulo de Su Xiaoxiao, um ritual imprescindível de respeito pela tradição cultural do império. Era, no entanto, apenas um dos muitos factos e lendas que até hoje servem para contar o inexplicável encanto do Lago do Oeste. O poeta Su Shi (1037-1101), que tal como o poeta Bai Juyi, na sua qualidade de funcionários imperiais lá tiveram responsabilidades administrativas e criaram baías com os seus nomes, comparou-o à beleza fatal da cortesã Xishi, a «Senhora do Oeste», por quem «os peixes se afundaram, os cisnes tombaram, a lua se escondeu e as flores se envergonhavam», e cuja beleza fatal, distraindo o senhor da guerra, causou a derrota do Estado de Wu em 473 a. C.. Uma outra jovem e inspiradora poeta, Feng Xiaoqing (1595-1612), cuja vida breve dir-se-ia envolta nas brumas que recebem o Lago nas manhãs de Primavera, lá viveu e morreu exilada. Da sua biografia consta um funesto presságio feito por uma freira a sua mãe para que conservasse a criança iletrada; o casamento precoce como concubina de um homem rico de nome Feng cuja primeira mulher, por ciúmes, sempre se esforçou por prejudicá-la. Estando o marido ausente, obrigou-a a viver isolada numa ilhota do Lago do Oeste, em cujas águas ela mergulharia para sempre. Procurou até destruir a sua obra literária, queimando-a. Alguns, intrigantes poemas, porém sobreviveriam. Cui Hui, pintor activo em Pequim cerca de 1680-1720, retratou Feng Xiaoqing deitada, macilenta, com largas vestes brancas acentuando a sua magreza derramando-se sobre uma cadeira longa, por vezes chamada chundeng, «cadeira de Primavera» por ser adequada a afectuosas conversações. Que lhe seriam negadas. Está diante de um painel com uma paisagem numa varanda onde atrás se notam folhas de bananeira que abanando tornam sensível o som do vento. Que também nada lhe diria. Num poema, ela cisma numa possibilidade: Se, acabada de maquilhar, fosse comparada a uma figura pintada, quem sabe o grau que alcançaria no Palácio Zhaoyang. Admiro o meu reflexo pálido nas águas do rio de Primavera. Oh… mas ele terá de se compadecer de mim, como eu dele me compadeço.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA corrente entre a Beleza, a Estranheza e o Saber de Yu Ji Hongli (1711-99), que reinaria como o imperador Qianlong (1735-96), quis como o seu avô Kangxi (1654-1722) que o seu poder reflectisse, como num espelho, todo o brilho da sabedoria acumulada ao longo de séculos. Assim, como o seu avô iniciara a grande recolha e esclarecimento de todos os caracteres da língua escrita, no dicionário designado Kangxi zidian de 1716 e na Colecção completa dos clássicos, ilustrações e livros desde os tempos remotos até à actualidade (Gujin tushu jicheng), também ele iniciaria em 1772 um formidável esforço de pesquisa e colecção do saber que nos seus três mil trezentos e oitenta e um volumes excederia a fabulosa enciclopédia de 1403-8 Yongle dadian, com os seus onze mil e noventa e cinco volumes, do imperador dos Ming, Yongle (r.1402-24). Para concretizar esse ambicioso projecto que duraria dez anos, intitulado Siku Quanshu, «Biblioteca completa dos quatro tesouros», que são os quatro capítulos, Clássicos (jing), História (shi), Cartas (ji) e Mestres (zi); Qianlong contou com o cotributo dos sofisticados funcionários eruditos (shi dafu) da Academia Hanlin. Um deles pode ser visto, sentado à vontade sobre uma pedra, as pernas cruzadas, um livro nas mãos, no seu jardim com dois criados, numa pintura do Museu Britânico, que o identifica no título O Senhor Shen Shuyan a ler (rolo horizontal, tinta e cor sobre papel). O influente Ruan Yuan (1764-1849) sintetizaria o ideal que a figura pintada evoca, ao escrever no seu epitáfio: «Shen Shuyan cumpria os deveres filiais com os mais velhos, apreciava a beleza da natureza e era um ávido leitor. Empregou boa parte do seu tempo a escrever e dedicou toda a sua vida aos livros.» O autor da pintura, o literato de Hangzhou, Yu Ji (1739-1823), membro da Academia Hanlin, participou desse grandioso desígnio do imperador Qianlong como editor da Siku Quanshu. Também como editor, foi coordenador da primeira edição impressa do curioso livro, Liaozhai zhiyi, «Estranhos contos do Estúdio de conversação» que transpõe com facilidade as fronteiras entre o mundo natural e o sobrenatural. Yu Ji, na sua dedicação à pintura, mostrou no entanto o seu muito natural olhar fascinado pela beleza feminina, dentro daquele que era então um florescente e inovador género da pintura chamado meiren hua. Que visualmente adoptou, nalguns casos, a perspectiva europeia com um único ponto de vista e moralmente afirmou o talento, os méritos, os sacrifícios e a virtude moral de mulheres que viviam dedicadas a agradar a homens cultos, algo que elas também eram. Como se comprovará no rolo vertical Senhora num banco (tinta e cor sobre papel, 100,3 x 45,7 cm, no Museu Walters, Baltimore, MD). Com um pincel na mão, ela pondera a resposta a dar ao poema que, numa folha de árvore, lhe foi escrito e enviado no brando curso de água de um ribeiro.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Vento e o Guarda-vento de Wang Yun Tianguan, o «alto funcionário da corte celeste», que na fluidez da iconopraxis das figuras do Daoísmo foi saindo dos muros dos templos e apropriado para a devoção particular, concretizada em rolos de pinturas que permitiam alguma liberdade aos seus criadores na concepção das suas formas humanas, surge numa pintura feita no período de Kangxi (1661-1722) como que empurrado pelo vento, dele se desprendendo um morcego que, por homofonia da palavra fu, se tornara um popular símbolo de felicidade. E essa era mesmo a função de Tianguan: conceder a felicidade aos seres humanos. Na história da pintura a representação de morcegos vinha já do tempo do preclaro pintor dos Tang Wu Daozi (680-740), que os incluiu numa figuração da divindade daoísta Zhong Kui, o caçador de demónios, feita a pedido do imperador Xuanzong devido à sua capacidade de ver fantasmas de noite. O autor desse retrato de Tianguan feito em 1716 (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 162,8 x 106, cm, no Museu de Arte de Indianapolis), o pintor de Yangzhou Wang Yun (1652-1734) faria outras figurações desse mundo descrito em relatos daoístas, como A ilha dos imortais, Fanghu, «O vaso quadrado» (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 141,9 x 60,3 cm, no Museu de Arte Nelson-Atkins) uma visão da fabulosa ilha com a forma de uma mandorla, no centro da qual se percebem palácios protegidos por grandes rochas e montanhas no meio de brumas e ondas alterosas embaladas pela ventania. Sobre uma rocha resistem, repousando, alguns grous, sinais da longevidade, quiçá da imortalidade. Aos oitenta e um anos, o mesmo pintor representou um invulgar encontro (rolo vertical, tinta e cor sobre seda no Museu Britânico) entre um homem de barbas brancas, o seu criado e um recluso daoísta, reconhecível pelo saiote de folhas e uma cabaça, trazendo na mão um pêssego de tamanho desproporcionadamente grande, símbolo da longa vida. Estranhamente, apenas as roupas do recluso daoísta ondulam ao vento. Wang Yun colaboraria com Yuan Jiang (1671-1746), outro pintor de Yangzhou, em duas pinturas feitas para dois biombos onde em oito painéis dobráveis (weibing) estão representadas paisagens onde se aninham palácios (246 x 490 cm cada um, no Museu Nacional de Quioto). Este objecto de mobiliário decorativo chamado pingfeng, traduz-se como guarda-vento. É possível que esse vento que se não vê mas se guarda, enfuna as vestes dos daoístas, anima as ondas alterosas que protegem um paraíso, e se solta do imortal Tianguan conferindo felicidades, seja uma alusão à alegria. O poeta Li He (c. 790-c.816) escrevendo sobre o que está para cá e para lá de um guarda-vento autorizará essa intuição. Num poema que termina assim: Ao luar a brisa sopra o orvalho, Que frio do lado de fora do biombo! Enquanto corvos crocitam nas muralhas da cidade, Vai adormecendo a rapariga de Chu.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioPoetas no Jardim da Família Shen Lu You (1125-1210) segundo alguns relatos teria nascido numa manhã chuvosa a bordo de uma embarcação que navegava descendo o rio Wei, o maior afluente do Rio Amarelo (Huanghe) e em cujo vale se foi desenrolando a aurora da civlização do Celeste Império, de que ele se revelaria um apaixonado defensor. Sendo verdade, poderia ser uma premonição da vida do poeta cujo percurso foi sendo marcado por fortes correntes de origens diversas que sempre o impeliram, e que foram incansavelmente registados nos seus escritos e incontáveis poemas. De maneira exemplar o seu olhar atento às pessoas, às paisagens, costumes e monumentos ficou guardado na Memória da viagem para Shu (Ru Shu Ji) que foi escrevendo quando, sendo nomeado vice-prefeito de Kuizhou (act. Fengjie, Sichuan), saiu de Shanyin (act. Shaoxing, Zhejiang), a sua terra natal, e foi subindo o outro grande rio Yangzi, entre três de Julho e seis de Dezembro de 1170. Lu You era já há muito um respeitado poeta quando o seu descendente Lu Wenjie, no final do século dezanove mandou gravar numa pedra a figura do poeta (rolo vertical, esfregaço a tinta, 109 x 72,7 cm, no Museu de Arte da Universidade de Princeton). Aí ele está encostado numa pedra ao lado de uma caixa de livros, dir-se-ia numa breve pausa, prestes a partir. A pedra ficou significativamente no Museu de Tecto de Palha (Du Fu Caotang) em Chengdu (Sichuan) entre doze ilustres poetas, no lugar onde se celebra a memória do grande poeta dos Tang, Du Fu (712-770). Mas a recordação afectiva do poeta, que nos últimos anos de vida, retirado em Shaoxing, adoptou o nome artístico (hao) Fang Weng, «o velho que faz o que lhe apetece», ficaria para sempre ligada às palavras de um poema que escreveu ainda jovem e contrariado, numa parede de um jardim privado dessa mesma cidade. Lu You casara cedo com a primaTang Wan (1128-1156), também poeta com o nome artístico Huixian «a bondade imortal», com quem não teve filhos e por isso e para fazer a vontade da mãe, mostrando o cumprimento da virtude confuciana, apesar das notórias afinidades electivas, logo se separaria. Os dois seguiriam caminhos diversos, casados e ambos com filhos, mas anos depois em 1155 aproveitando a obrigação legal de se abrirem os jardins privados todos os anos entre o primeiro dia do terceiro mês e o oitavo do quarto, os dois reencontram-se no jardim da família Shen. Emocionado, Lu compôs um poema no guia de rimas (cipai) «O gancho de cabelo da fénix», que termina com as palavras: «Ainda temos a nossa promessa sagrada, Mas até uma carta é difícil de enviar, Não temos nada, nada, nada.» No ano seguinte lendo o poema, e na mesma harmonia ela respondeu com um poema cujo final se lê: «Receio que as pessoas se questionem porque estou triste, Finjo estar feliz, sorrindo em vez de chorar, Toda a minha vida agora é esconder, esconder, esconder.»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO rolo consolador que Wang Ximeng fez para Huizong Su Shi (1037-1101), no seu desassossego natural de poeta que, transbordando, deu forma a toda a sua actividade como funcionário imperial e político, envolveu-se de modo empenhado nas grandes polémicas do seu tempo. Referindo-se criticamente às Novas políticas (Xinfa) do seu adversário Wang Anshi (1021-86) cuja repetida oposição lhe haveria de custar o exílio, escreveu o poema: Como poderia não haver falta de comida ou secas? Os altos funcionários e as suas políticas carecem de mérito. Quando se perde a noção adequada de governar, desastres ocorrerão. Nenhum deles sabe como se auto-analisar. Quando chove, rezam por céus limpos, Quando há uma seca, desejam a neve. Essa relação entre a acção humana e o clima desfavorável, entendido como um «castigo dos céus», estava no centro de uma estupefacção sentida por todos os que habitavam aquela região naquele tempo, um fenómeno que hoje se conhece como Anomalia Medieval do Clima, que provocou súbitas alterações climáticas com consequências funestas na agricultura. O que era tanto mais grave quanto se entendia ser o imperador, através dos adequados rituais, o regulador do bom funcionamento da cadência das estações. Com a disrupção, mais se difunde um inquietante e supersticioso sentimento de instabilidade. Tendo ocorrido de modo especialmente gravoso durante a dinastia Song (960-1279) com o aquecimento entre 1100-1200, que atravessou o reino do imperador Huizong (1100-26) o monarca esteta, pintor e poeta, adequou a sua resposta à adversidade à expressão artística, encorajando quem lhe mostrava indícios de possibilidade, sinais auspiciosos. Um deles foi o alto funcionário Cai Jing (1047-1126) que o tranquilizaria sobre outro fenómeno tido como não auspicioso; o alinhamento de cinco planetas que foi interpretado como um potencial de desastres. Cai Jing, súbdito erudito recorreu à memória: Os cinco planetas movendo-se em uníssono no céu, é uma visão auspiciosa significando um futuro de grande paz. O vosso servo recorda que, de acordo com a História dos Han, quando o império alcança grande calma e tranquilidade, os cinco planetas estavam alinhados e obedeciam à regra (…) O nome de Cai Jing aparece numa pintura invulgar, encomendada por Huizong, feita por um jovem chamado Wang Ximeng (1096-1119) de quem não se conhecem outras obras. No extenso rolo horizontal de 1113, Mil li de rios e montanhas (tinta, cores sobre seda, 51,5 x 1193 cm, no Museu do Palácio, em Pequim) Wang usou o azul e o verde (qinglu), cores ligadas à busca da imortalidade, para pintar o panorama do monte Lu e do lago Poyang, em Jiujiang. Huizong podia olhar as seis vistas sucessivas de montanhas, ligadas por pontes ou cursos de água, e tranquilizar-se naquele ritmo reconfortante que Cai Jing diz ser o seu aspecto em Abril, indicando prosperidade no ano seguinte.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA conversação ambígua encenada por Gu Kaizhi Zhang Hua (232-300), que foi político e poeta durante a dinastia Jin Ocidental, foi também autor de uma obra singular, o Bowuzhi, «Registo dos mais diversos assuntos», que recolhe uma plêiade de desconformes conhecimentos; desde as observáveis maravilhas da natureza até à enumeração de anomalias ou histórias sobrenaturais, do género literário zhiguai. Entre esses relatos está, por exemplo, a descrição de uma comunidade de «mulheres selvagens», as Yenu, que viveriam isoladas no Sul e sem o acompanhamento de homens. E se não foram estas, outras mais refinadas mulheres ocuparam o seu espírito de forma constante ao longo da sua vida. De modo significativo o seu destino político ficaria ligado a uma ambiciosa mulher, a rainha Jia Nanfeng (257-300) que reinaria «por trás dos biombos» no lugar do seu marido o imperador Huidi (290-307) que teria dificuldades intelectuais. Seria através dela que ele viria a ser nomeado para o influente cargo de ministro no Departamento de obras públicas (Gongbu). Da relação entre os dois terá nascido uma série de poemas sob o título Advertências da instrutora do palácio para as senhoras da corte, escrito como vários dos seus poemas a partir de uma voz feminina, e que teria a intenção de refrear o carácter excessivo da rainha. Esses poemas de intenção didáctica estão na origem de um dos mais célebres rolos horizontais na aurora da pintura de ilustração narrativa, tradicionalmente atribuído a Gu Kaizhi (345-406). Dessa pintura, Nushi zhen tu, existem hoje duas cópias; uma no Museu do Palácio em Pequim e outra no Museu Britânico (tinta e cor sobre seda, 25,5 x 377,9 cm) com algumas diferenças no número de cenas e na execução. Nelas se notará como os caracteres inscritos ao lado das pinturas silentes, contêm avisos eloquentes. O que é especialmente evidente numa das cenas que só consta do rolo do Museu Britânico. Gu Kaizhi mostra aí uma situação íntima quando um imperador se senta para conversar com uma concubina na sua alcova. A forma negligente como os dois se apresentam reforça uma impressão de hesitação e ambiguidade: ela com um braço apoiado no espaldar da cama, ele com um pé descalço, o outro ainda meio calçado, nada é evidente. Ao contrário das palavras precisas que, como em todas as outras cenas do rolo, seriam depois nele inscritas com o texto poético de Zhang Hua, que dizem: Se aquilo que disseres for por bem, as pessoas poderão entendê-lo à mais longa distância. Se este princípio for atacado, então até mesmo o teu companheiro de cama olhará para ti com desconfiança. As duas formas paralelas de expressão, trocando as suas vocações, ajudam naquilo que Zhang Yanyuan (c.815-c.877) descreveu: Ao concentrar o espírito e a meditação profunda entende-se o que existe por si só; esquecem-se ambos, a coisa pintada e o ego, a realização separa-se da forma.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA Elegância Clássica da Família de Wang Chen Sikong Tu (837-908) o poeta da dinastia Tang falou da natureza fugídia, intangivel, daquilo que «é natural» (ziran) com palavras que seriam acolhidas pelos estudiosos da pintura como uma maneira de descrever a mais alta categoria do seu labor, aquela mais dificilmente atingível e que se afasta sempre, como a linha do horizonte: «Curve-se e aí está;/ Não se procure à direita e à esquerda,/ Todos os caminhos para ela se afastam./ Mas com um toque, aí está a Primavera!/ Como quem depara com flores a desabrochar,/ Como quem contempla a chegada do novo ano,/ De facto não a agarrarei/ Forçada, desaparecerá». Mas interrogar-se diante do espectáculo sublime das mutações da natureza, contemplando lugares particulares em que mais facilmente se sente um arrebatamento dos sentidos, era o mais grato dever dos poetas. Como fez Li Bai admirando a Cascata do monte Lu; «Será o Rio de prata (a Via Láctea) deslizando das nove direcções do céu?» Pintores literatos seguiriam esse olhar do vate, tornando a Montanha Lu, perto da cidade de Jiujiang na Província de Jiangxi, que era já um jardim literário desde o século V, num persistente motivo das suas pinturas em busca desse toque que tornava manifesto esse quase imperceptível fluxo do que «é natural», o ziran. Alguns, nessa demanda projectada sobre o Monte Lu, foram célebres no seu tempo como Shen Zhou (1427-1509) autor do rolo vertical feito a tinta e cor sobre papel (193,8 x 98,1 cm) no Museu do Palácio Nacional, em Taipé. Outros, terão recebido esse olhar como uma herança de seus maiores, como Wang Chen (1720-97) que representou o Monte Lu (rolo vertical, tinta sobre papel, 132 x 63,5 cm, vendido na Sotheby’s) da forma que o poeta Sikong Tu descreveu como a «elegância clássica» (dianya), «calma como pétalas caindo e modesta como despretensiosas flores do campo». Wang Chen vinha de uma distinta família de que fizeram parte Wang Shimin (1592-1680) e o neto dele Wang Yuanqi (1642-1715), que era seu avô. Além desse legado, ele mostrou uma disponibilidade para ser interpelado por outros como se observa no rolo horizontal Estúdio para escutar a chuva (tinta e cor sobre papel, 122 x 40,5 cm, no The Walters Museum), nome do jardim do coleccionador Zha Ying, que conta com contributos de eminentes personalidades do tempo, como Pi Yuan e Sun Xiangyan. Numa das folhas do álbum Paisagens do natural, poesia e arte (tinta sobre papel, 41,7 x 33,5, cm, na Colecção do Instituto de Arte de Minneapolis) lembrou o poeta da cascata do monte Lu: «Uma manhã entrei no mar procurando Li Bai. Buscando em vão entre pinturas de meros mortais pelo Imortal da tinta.» E noutra página recordou outra relação entre avô e neto: «Usei o método do pincel de Shuming (Wang Meng) para pintar no estilo do velho Songxue (Zhao Mengfu). Há uma semelhança porque eles são da mesma família.”
Paulo Maia e Carmo Via do MeioLiu Shiru: de Noite o Frio, as Flores e o Ramo Ressequido Yan Xiyuan (act.1787-1804) no seu livro de Biografias ilustradas de cem mulheres belas, com novos poemas (Baimei xinyong tuzhuan) recorda a famosa história da Princesa Shouyang que ficaria para sempre associada à surpresa anual do nascimento de flores em pleno Inverno. Pétalas dessas flores de pefume subtil, brancas, cor-de-rosa ou vermelhas, traduzidas habitualmente como flores de ameixieira, na verdade da árvore caducifólia prunus mume (meishu) originária do Leste da Ásia, cujas características são comuns a ameixieiras e a damasqueiros, caíram um dia sobre a face adormecida da Princesa Shouyang. Esse sétimo dia do primeiro mês lunar quando a princesa passeava no palácio Hanzhang e se sentou para descansar, fechando os olhos, sendo despertada pelas suaves pétalas que lhe caíam no rosto, ficaria na memória e foi assim que o poeta a lembrou no seu livro, acompanhado de uma xilogravura feita a partir de um desenho do célebre pintor Wang Hui (1736-95). Aí, ela está sentada nos degraus do palácio, um braço apoiado no corrimão, dormitando, à espera que se cumpra o destino que se aproxima nas flores que já se vêem tombando. Mas, se a história da princesa cativava a imaginação popular, pintores eruditos de há muito descobriam uma outra, sucinta forma de figurar aquela surpresa das flores que desafiam o frio. Um dos mais memoráveis foi o pintor da dinastia Yuan, Wang Mian (1287-1359), admirado e copiado tanto nas formas das suas pinturas como no processo até lá chegar. Nelas se observavam os elementos essenciais do assombro revelado no tempo invernoso: a noite que em breve será dia, as flores, meihua, que na homofonia mei referem a beleza feminina e alguém, um literato que as saiba contemplar e relatar com deleite, figurado nos humildes ramos ressequidos que sustentam as flores. Um dos que o imitaram nesse duplo procedimento foi um pintor de Shanyin (actual Shaoxing, Zhejiang). Liu Shiru (c.1517 – depois de 1601) no decurso da sua longa vida dedicou-se com perseverança tanto ao estudo das pinturas de Wang Mian como à observação das reais flores prematuras. No seu rolo vertical Ramo de flor de ameixieira (tinta sobre seda, 180,3 x 98,4 cm, no Museu de Arte de Harvard) referiu um dragão, símbolo da natureza e dela, a possibilidade da nova vida «Um dragão verde ergue-se alto no ar, dir-se-ia que alcança a Via Láctea,/ Borboletas de jade voam em formas irregulares e, imaculadas, são intangíveis pela lama./ De súbito, o deus do vento Fengbo lança um assobio lancinante,/ E o esplendor da Primavera estende-se por todos os lados, de Leste a Oeste.» Liu também publicou o manual ilustrado sobre a pintura de prunus mume, Xuehu Meipu, «Manual de pintura de ameixieiras do lago de neve», repleto de elogios, provas do apreço daqueles que, como ele, de noite continuavam de olhos abertos.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA Viagem de Huang Xiangjian em Busca Dos Seus Pais Sakyamuni, o Buda histórico, é muitas vezes representado na companhia de dois dos seus discípulos: Ananda à sua esquerda e Mahakasyapa, à sua direita. Deste último, o reservado amante da solidão Mahakasyapa, diz-se que se recolheu numa gruta entre três picos da montanha Kukkutapada, em Magadha na Índia, onde está meditando à espera de Maitreya, o Buda do futuro, para lhe entregar as vestes e a tijela de esmolas que recebeu de Sakyamuni. De modo sobrenatural monges budistas que viviam na montanha das Nove Curvas, Jiuqu shan, na Prefeitura de Dali, no sudoeste de Yunnan, relocalizaram ou sobreimpuseram nesse lugar, desde então sagrado, a montanha indiana e passaram a designá-la, traduzindo o nome original como montanha Jizu, a «montanha do pé de galinha», porque é formada por três elevações à frente e uma atrás, exactamente como os dedos das patas das galinhas. Na altura da transição Ming-Qing, a montanha Jizu tornara-se uma das Cinco montanhas sagradas do Budismo, depois de Wutai, Emei, Putuo e Jiuhua e povoada, nas palavras do viajante Chen Ding, por «setenta e dois grandes templos, trezentos e sessenta mosteiros e um número incalculável de pequenos santuários.» O pintor de Wuxian (actual Suzhou, Jiangsu) Huang Xiangjian (1609-1673) fez uma pintura (Jornada para a reunião familiar, rolo horizontal, tinta e cor sobre papel, 31,4 x 550 cm, no Museu de Arte da Universidade de Hong Kong) figurando uma peregrinação a esse lugar invulgar como parte de uma não menos excepcional viagem em que mostrou a sua elevada consideração e cumprimento da virtude da ética confuciana sobre o Amor pelos pais (xiao). Tendo o seu pai, Huang Kongzhao, sido nomeado em 1643, magistrado na distante Província de Yunnan no fim da dinastia Ming, dá-se o conflito dinástico. Ao fim de sete anos sem saber notícias dos pais, resolveu iniciar uma caminhada de quinhentos e cinquenta e oito dias, percorrendo cerca de seis mil quilómetros para os ir buscar. Huang Xiangjian descreveria as dificuldades que passou: (…) «Vendo que as rachas nas rochas tornavam impossível caminhar, rastejei com as mãos e os joelhos durante mais dois ou três li para atingir o templo Tuzhu, lá no cume.» Mas no fim da pintura, em que mostra trinta e um lugares históricos, religiosos ou marcos geográficos faz uma grata exclamação: «Mas o meu pincel não consegue descrever as maravilhas para lá de maravilhosas e os perigos para além de perigosos que atravessei em dez mil li. Chegando ali perguntava-me se não estava já deveras numa outra esfera.» Quando voltou dessa viagem em busca dos pais, refez a memória da jornada em pinturas que evidenciaram o seu carácter leal. Porque ao percorrer territórios e pressentindo que na paisagem, como na montanha Jizu, algo dentro parecia palpitar, cumpriu a vontade do pai que se tornara um devoto budista.