Paulo Maia e Carmo Via do MeioComo o Pintor Li Zanhua Não Esqueceu Yelu Bei Yelu Abaoji (872-926), o chefe do povo nómada Khitan, palavra sinizada como Qidan, contrariando a tradição, resolveu instaurar no seu vasto território em 916 uma dinastia no estilo da desagregada dinastia Tang (618-907) e de todas as outras que a precederam, passando a sucessão do dirigente máximo a ser hereditária e não uma escolha de um conselho tribal. Chegou até, e mais uma vez contrariando a tradição nómada, a edificar uma «Suprema capital», Shangjing, Linhuangfu, pensada num padrão em quadrícula com ruas alinhadas ao estilo de Chang’an, a capital dos Tang. E se bem fossem os militares tribais a tomar as decisões, para a administração do Estado escolheu civis de etnia Han. Chamou a esse Estado Da Qidan e ser-lhe-ia postumamente atribuído o título de Taizu Tian Huangdi, «Celeste imperador Taizu». O seu sucessor alteraria o nome da dinastia para Liao e apesar de recuos posteriores seria essa a denominação que prevaleceria. Abaoji teve um filho, Yelu Bei (899-937), que nomeou Princípe herdeiro e a quem deu o título Renhuang Wang, «Imperial Rei dos Homens», entregando-lhe a governação do reino de Dongdan. E quando chegou o tempo da sucessão Yelu Bei esperava naturalmente herdar o título do pai porém a sua mãe, a implacável imperatriz viúva Shulu Ping (879-953) tinha outros planos e com sangue-frio e astúcia fez com que a sucessão recaísse sobre outro dos seus filhos. O que de improvável se seguiu na vida de Yelu Bei seria lembrado anos depois pelo poeta, calígrafo e pintor da dinastia Yuan, Zhu Derun (1294-1365). Junto à figura de um cavaleiro numa veloz cavalgada na Caça ao veado num rolo horizontal que era atribuído a Yelu Bei (tinta e cor sobre papel, 24,6 x 79,9 cm, no Metmuseum) escreveu: «Para escapar à perseguição de Yelu Deguang (r. como Liao Taizong, 927-947) ele atravessou o mar e chegou a Dengzhou (em Shandong) e aí prestou vassalagem ao imperador Mingzong (r.925-933) dos Tang tardios (923-936) e em troca foi-lhe concedido o nome Li e a comandadoria de Huaihai.» Li Zanhua seria pois o nome que desde então Yelu Bei usaria. Um nome – Li – de enorme prestígio porque esse era o nome da família reinante durante a dinastia Tang, oferecido pelo imperador Xianzong (r.805-820) aos fundadores dessa segunda do período das Cinco dinastias em recompensa da sua lealdade e que estes ostentavam, tal como o nome Tang, com orgulho. Li Zanhua, escreveu Zhu Derun, «costumava levar pinturas e livros quando viajava. Gostava de pintar cavaleiros com arcos, em caçadas ou excursões. As suas roupas e acessórios seguiam as convenções rústicas dos bárbaros porque era isso a que estava habituado e se sentia confortável. O modo como usava o pincel era suave e fino enquanto o dinamismo dos homens e dos cavalos corresponde ao espírito dos Tang do século VIII. Uma pintura que merece ser apreciada.»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioUm Histórico Tributo da Europa e a Donzela do Outono Sun Yang, que viveu no tempo das Primaveras e Outonos (771-476 a. C.) por ser considerado um exemplar juiz na escolha de um bom cavalo, mereceu de um rei o título honorífico de Bole, «o feliz mais velho» e essa sua elogiada capacidade de escolher deu origem ao ditado popular que diz que «bons cavalos capazes de correr mil li num dia (qianlima) há muitos, um Bole é raro». O que logo seria adoptado como metáfora para todas as áreas onde era necessário ou vital saber escolher o talento, sobretudo o talento escondido como na selecção de funcionários governamentais. Mas essa habilidade especificamente referida a cavalos, foi especialmente valorizada no tempo da dinastia fundada pelos cavaleiros mongóis dos Yuan. Os mais notáveis pintores desse tempo, como Zhao Mengfu, retrataram vários dos mais afamados cavalos da dinastia. E um pintor da corte cerca do ano 1342 mostrou, com indiferença, um cavalo oferecido ao imperador, como era habitual no sistema tributário com países estrangeiros, mas que ficaria como inesperada prova visual da estada no território de uma missão chefiada pelo franciscano florentino Giovanni de Marignolli (c. 1290- 1358) que chegara a Khanbaliq (actual Pequim) como legado do Papa em 1339-40, na sequência do inédito acolhimento de Giovanni da Montecorvino OFM (1247-1328) na corte Yuan, que lhe permitiu até a edificação de igrejas nas ruas da capital. Esse rolo horizontal feito só a tinta, de que uma cópia provavelmente feita na dinastia Ming está no Museu do Palácio em Pequim, é atribuído ao pintor da corte Zhou Lang que faria numa outra pintura um inesquecível retrato de uma poetisa cuja memória se deve em grande parte ao testemunho de um seu contemporâneo capaz de reconhecer o seu talento único. Zhou Lang fez o retrato de Du Qiuniang, «a donzela do Outono» (791-835), com uma flauta antiga nas mãos num estilo de figuração respeitando o «espírito dos antigos» como queria Zhao Mengfu, e no modelo das damas da dinastia Tang. Da retratada nesse rolo horizontal (tinta e cor sobre seda, 32,3 x 285 cm no Museu do Palácio em Pequim) ficou uma exortação a um príncipe, que perduraria e pode ser traduzido como: «Peço-lhe Senhor: não se deslumbre / pela vida dos que levam ouro / nas costuras dos seus vestidos/ O meu conselho, Senhor, / é que seus verdes anos / sejam bem vividos. / Colha as flores quando desabrocham, / não quando já estiverem a cair, / Não espere até que já não existam / flores nos ramos partidos.» Da autora sabe-se que foi educada nas artes da dança e da música e impressionou um general que foi derrotado por um imperador e a levou para a corte e na sequência de conflitos políticos, voltou à sua Nanquim natal. E foi aí que envelhecida e empobrecida, a encontrou o poeta Du Mu (803-52) que escreveu sobre ela um poema e a sua breve biografia.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Elogio de Wang Juzheng à Àrdua Labuta Das Mulheres Zhang Xuan (713-755), o pintor dos Tang, foi autor de uma pintura que hoje se pode admirar através de uma cópia atribuída ao imperador dos Song, Huizong (r.1022-63), onde se observam belas damas ricamente vestidas, penteadas e adornadas executando tarefas práticas de tratamento de tecidos, que habitualmente se espera ver a serem executadas por serviçais dessas senhoras. Nesse precioso rolo horizontal (tinta, cor e ouro sobre seda, 37,7 x 466 cm, no Museu de Belas Artes de Boston) onde se alardeia o luxo e que na verdade mostra a celebração de um rito anual relativo à produção da seda, que tem lugar na Primavera servindo de exemplo para o resto do Império, podem observar-se no fim, do lado esquerdo duas senhoras, uma de cada lado, estendendo uma peça de seda branca que uma terceira está a passar a ferro, ajudada por uma jovem. E embora uma das senhoras se dobre ligeiramente no zelo de estender o tecido, nada parece estar a exigir um grande esforço, todas parecem executar uma actividade amena. Desse tempo em que na corte se recriava uma cena doméstica que decorre no seio da élite, um pintor talvez não menos erudito, recriou num modesto rolo horizontal (tinta e cor sobre seda, 26,1 x 69,2 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Pequim), um emocionante contraponto dessa cena em que são protagonistas duas senhoras humildes. Uma de cada lado das pontas de dois fios na penosa função de fabricar um tecido que podia ser aquele que no outro rolo as damas se entretêm a eliminar as rugas. As senhoras aqui não são doces nem belas como as outras mas simples mulheres do campo que dependem da força fisica para accionar a roda de fiar que permite a sobrevivência da família. É notória a simpatia que a pintura mostra pela vida pobre e virtuosa mas inglória destas mulheres, o que suscita uma perplexidade sobre quem e porque foi criada. Wang Juzheng, que viveu durante os Song do Norte, era natural de Hedong (actual Yongji, Shanxi) no reino do imperador Renzong (1023-63), era filho de um pintor e outras obras que lhe são atribuídas confirmam ser esta uma excepção. Porém, o apreço com que ela foi recebida pode ler-se no comentário que o preclaro Zhao Mengfu escreveu ao lado dela: «É um pequeno rolo mas o trabalho do pincel é magnífico, possui uma alta compreensão da vida. Com os seus maravilhosos apontamentos pode bem ser descrita como um trabalho digno dos deuses.» E tudo feito com grande economia. Uma mulher mais velha será a avó de um menino que brinca com um sapo preso numa vara no início do rolo, dois velhos troncos e ramas de salgueiro, lembram a ausência do pai, uma mulher já não tão nova sentada num banco de madeira vai movendo a roda de fiar e, mal se vê, tem no peito um bebé, à sua frente brinca o pequeno cão da família. Nas mãos da cansada mulher velha, dois fios têm um peso tremendo.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Solitário Pato Bravo de Chen Lin Lu Zhaolin (634-684), o poeta de Fanyang (Youzhou) perto da actual Pequim, no poema Changan guyi, «Changan do tempo antigo», em que exprime a melancólica saudade do esplendor da antiga capital do Império, evocou uma familiar ave aquática que, se bem que vivendo livre parece possuir um compromisso voluntário, o seu comportamento social há muito observado e elogiado. Nos versos dezanove e vinte escreveu: Fossemos nós o peixe único, como escapariamos da morte? Puderamos ser apenas como os patos mandarim, sem desejos de imortalidade? Os patos mandarim (aix galericulata) cuja designação yuanyang revela a união de dois diferentes, do macho e da fémea, eram pecebidos como seres que mostravam o afecto e a fidelidade conjugal, acasalando para a vida toda e como tal exemplares para a estabilidade do tecido social. E como modelos se podem ver em tantos objectos decorativos para o lar e, como se pode ler no «provérbio», chengyu, a sua conduta, um objectivo de vida: «ser como dois patos mandarim brincando na água» (yuanyang xishui). Na arte da pintura o seu aspecto ricamente colorido seria reproduzido em detalhe no género niaohua, de «pássaros e flores». Mas não foi essa a ave aquática escolhida num rolo horizontal feito por Zhao Ji (1082-1135), o imperador dos Song Huizong, que preferiu o menos exuberante, mais vulgar pato bravo (anas playrhynchos) yeya, para figurar no admirável Corvos nos salgueiros e patos bravos nas ervas (tinta e cor sobre papel, 223,2 x 34 cm, no Museu de Xangai). Desse pato os poetas sublinham quase sempre só a sua conduta gregária, como no poema de Du Fu (712-770) O solitário cisne selvagem onde, identificando-se com o cisne, exprime uma queixa por se sentir negligenciado, e que termina com os versos: «Indiferentes, os patos bravos desatam num clamor, confundindo os gritos dos outros pássaros por todo o lado.» Porém não foi em grupo mas sozinho na sua despreocupada existência, que foi figurado por um pintor da dinastia Yuan. Chen Lin (c.1260-1368) fez num pequeno rolo horizontal (35,7 x 47.5 cm, tinta e cor sobre papel, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé) a figura de um pato isolado na margem, junto das águas de um rio sob folhas de hibisco, furong (hibiscus mutabilis) cuja flor, uma das quais se encontra caída no chão, vai mudando de cor ao longo do dia, de branco a vermelho. A minúcia como estão figuradas as penas do pato, em contraste com a forma rústica das ondas e das folhas revela uma mutação no agir. E porque dos patos se diz que são os primeiros a detectar a chegada da Primavera ao experimentar a temperatura da água, acentua-se na pintura a impressão da passagem do tempo. Numa inscrição na pintura, o poeta e calígrafo Qiu Yuan (1247-1326) conta que esta foi feita no decurso de uma visita do autor ao estúdio do célebre pintor Zhao Mengfu (1254-1322) no Outono.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Imperador que Outorgava Palavras Como Presentes Li Shimin (626-649), o imperador Taizong, o segundo da dinastia Tang, tinha em altissíma consideração as palavras, que valorizava mais que pedras preciosas, ouro ou qualquer outra riqueza material transaccionável, nelas reconhecendo a sua capacidade única como instrumento do espírito para actuar no mundo físico. Acarinhou algumas palavras em especial. Uma delas designa uma árvore, ziwei, a «murta de crepe» (lagerstroemia indica) que além da beleza das suas flores de textura enrugada como o papel crepe e uma coloração que vai do branco ao rosado, do malva ao púrpura, tem outras raras características como a de florescer no Verão e no Outono, donde o seu nome alternativo bairi hong, «cem dias vermelha». Mas também funcionava como uma homofonia na expressão ziwei leng, «humilde servidor da estrela púrpura» (o imperador) uma forma de designar um posto oficial no Grande secretariado do governo de Taizong cujo império enaltecia a fidelidade, como se vê no título da era do seu reinado Zhenguan, «Observando a lealdade». O poeta Bai Juyi (772-846), que foi um leal funcionário imperial, chegando a ser governador de Hangzhou e Luoyang, aproveitaria o duplo sentido da palavra num poema que se pode traduzir como: No Pavilhão dos Fios, onde se escrevem éditos, nada urgente para escrever. O tambor do relógio soa na torre, mas o tempo alonga-se na clepsidra. Sentado ao crepúsculo, quem me fará companhia? Só as flores da murta (ziweihua) respondem ao funcionário de serviço à estrela púrpura. O florescimento outonal da árvore fazia dela uma metáfora ajustada para letrados que viviam na esperança de um dia deixar os deveres oficiais, uma utopia que tinha o poeta Tao Qian (365-427), o «escondido», como modelo, para se dedicarem apenas às artes do pincel. Destas, a da pintura figurou muitas vezes as delicadas flores que teimavam em prolongar o Verão, impressionando pintores que se dedicavam ao género niaohua, de «pássaros e flores». Zhou Zhimian (1570-1606), um pintor de Changshu (Jiangsu), distinguiu-se nessa especialidade, usando em alguns casos uma combinação de processos para mostrar a longanimidade das flores de seis pétalas que enfrentam os primeiros frios. Numa pintura feita no formato de um leque dobrável (tinta e cor sobre papel dourado, 17,2 x 47 cm, vendida na Christies) ele usou o método mogu fa da pintura «sem ossos» em que a tinta ou a cor são usadas sem contornos, «manchando» o papel para figurar pétalas e ramos mas também a precisão do traço para delinear rebentos. De modo obscuro, o método adequa-se às flores ziweihua que partilham com o imperador a palavra zi, «púrpura» e «estrela do Norte», a morada terrestre do imperador celeste que Taizong, atento a palavras, usava na forma de poemas para criar laços ou elogiar comportamentos.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAs veredas por onde andaram as figuras de Chen Mei Yinzhen (1678-1735), que reinou como o imperador Yongzheng entre 1723-35, o terceiro da dinastia Qing, permitiu-se mostrar uma liberdade para aceitar o exótico a ponto de se fazer representar num álbum de pintura (anónimo, de catorze folhas a tinta e cor sobre seda, 37,5 x 30,5 cm no Museu do Palácio em Pequim) vestido de modos tão diversos como um guerreiro persa, um mágico daoísta, monge tibetano ou com o traje que se usava naquele tempo nas cortes europeias, incluindo uma cabeleira. Essa disponibilidade deixou que se estendesse a certos aspectos das artes visuais que adoptaram alguns dos modos de figuração próprios da pintura europeia, em particular da perspectiva de ponto de fuga único mas não só. Numa versão feita por pintores da sua corte de uma célebre pintura de Zhang Zeduan (activo no início do séc. XII) conhecida como Subindo o rio durante o festival Qingming, completada já em 1736 (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 35,6 x 1152,8 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé) nota-se uma preocupação em respeitar as distâncias e as proporções relativas das figuras, usuais na pintura europeia, chegando até a ver-se representados edifícios contruídos no estilo da arquitectura europeia. Entre os cinco pintores que colaboraram na meticulosa elaboração da pintura, um deles vindo de Songjiang (actual Xangai) chamado Chen Mei (1695-1745) adoptaria características raras do modo de representação visual na Europa daquele tempo. Como no caso da que se pode ver no Museu Smithsonian (tinta e cor sobre seda, 106 x 92,5 cm) de um Nobre literato caminhando numa floresta no Outono, em que a referência exótica se pode ver no modo como figurou a formação rochosa do solo, semelhante ao efeito que se observa em gravuras impressas levadas para a corte por missionários jesuítas. Outros recursos próprios da pintura europeia como o uso da tinta diluída criando o sombreado para mostrar a tridimensionalidade contribuem para a serena atmosfera de harmonia entre o literato e a natureza à sua volta. Chen Mei, que nalgumas obras colaborou directamente com pintores jesuítas como Castiglione (1688-1766), mostrou também uma lúcida compreensão da antiga arte do pincel. Como no caso de uma pintura do álbum de Actividades sasonais das senhoras ao longo dos doze meses, de 1738, acompanhadas a cada página por um poema do imperador Qianlong. Na página referente ao oitavo mês desse álbum, (Yueman qingyou tu, tinta e cor sobre seda, no Museu do Palácio em Pequim) como era costume no Festival do meio-Outono, senhoras do palácio observam a lua num terraço (Qiongtai), rodeadas pelas fragrantes árvores osmanthus, uma das quais de acordo com a lenda, está no próprio satélite adormecido. Da cena desprende-se uma onírica atmosfera como um caminho estreito afastado da via comum, encurtando a distância para a lua.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO desassossego numa cena de rua em tempos de paz Zhang Hong (1577-1668), o singular pintor de Suzhou que ousava pintar a luz ou o vento, possuía uma especial habilidade na pintura de figuras, uma aptidão que utilizou em surpreendentes cenas cuja aparente naturalidade revelava afinal uma selectiva interpretação de factos ou histórias que tocaram o seu inquieto e inquisitivo espírito. Foi assim por exemplo em pinturas que fez no álbum Figuras em cenários (tinta e cor sobre seda, 28,6 x 20,3 cm no Museu AMAM, da Universidade Oberlin, Ohio), como por exemplo na página Disparando contra a maré que se refere à lenda que explica o nome de um rio na Província de Zhejiang, «a curva do rio». Na Primavera e no Outono, numa famosa curva a Norte de Hangzhou, as águas do rio Qiantang chocam com a força das marés provocando maremotos. Para combater as consequentes inundações, o rei Qian Liu (852-932) teria ordenado quinhentos dos seus melhores arqueiros que disparassem contra as ondas para que se pudesse terminar a construção de um dique, de onde o nome do rio Qiantang, «o dique de Qian». No mesmo álbum, numa cena calma mas insólita, um literato observa jovens empregados a lavar árvores tong, «tungue» (vernicia fordi, cujo óleo é usado para iluminação em lamparinas). Numa inscrição está escrito o nome Ni Yu, Ni, «o excêntrico», que se refere ao pintor Nizan (1301-74) e à lenda que o distingue como obcecado com a limpeza. Num rolo horizontal, Zhang Hong fez uma série de figuras populares entregues a Várias diversões (tinta sobre papel, 27,5 x 458 cm, no Museu do Palácio em Pequim) entre as quais contadores de histórias, videntes e músicos cegos. Como noutro rolo horizontal atribuído ao funcionário e pintor da dinastia Yuan, Zhu Yu (1293-1365) mas que datará do meio da era dos Ming, se vêem essas e outras figuras, retratando com aparente singeleza Cenas de rua num tempo de paz (tinta e cor sobre papel, 28 x 1092, 2 cm, no Instituto de Arte de Chicago). Zhu Yu é ainda nomeado como autor original de uma falsificação de uma composição, num rolo vertical de um Luohan e um dragão no estilo da dinastia Yuan (tinta e cor sobre seda, 91,5 x 33 cm, no Museu de Arte da Universidade de Princeton) o que indicia uma vocação para realizar obras de imaginação para além da realidade visível. Nas Cenas de rua num tempo de paz ou «Colecção de cenas em tempos de paz», Taiping fenghui, é notória a vontade de mostrar, nas suas mais de quatrocentas figuras, gente das mais diversas origens e ocupações, algumas das quais só eram vistas no espaço público, fora de casas. Entre elas grupos e situações raras ou cómicas causando alvoroços, despertam atenção de outras pessoas, como o grupo dos contadores de histórias que com palavras tornavam presente o que não está. Ausências que, desenrolando a pintura, também se tornavam presentes, admiradas no interior de moradias.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA nostalgia de pedras preciosas e jardins eruditos Luzhu, a «Pérola verde», a fascinante dançarina, professora de música e a cortesã favorita do abastado funcionário e poeta Shi Chong (249-300), viveria um trágico destino que conduziria ao fim prematuro de ambos no mesmo ano, deixando uma memória inesquecível e uma edificante lição acerca da fugacidade da beleza e a brevidade da riqueza material. Essa era de opulência, em que os dois gozaram de um precioso tempo de luxo, calma e beleza não seria esquecido. Os dois seriam retratados numa pintura de 1732, feita pelo pintor Hua Yan (1682-1756), que se refere ao esplendoroso lugar em Luoyang, que teria cerca de cem apartamentos para concubinas rodeado de um jardim, propriedade de Shi Chong, um cenário que tão bem se adequava ao luxuoso encontro, chamado Jingu yuan, «Jardim do vale dourado» (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 178,9 x 94,1 cm, no Museu de Xangai). Ao longo do século dezoito e depois, a recordação da dançarina parecia estar subitamente muito viva como se vê num retrato feito em 1823 por Gai Qi (1773-1828). Num rolo vertical (tinta e cor sobre papel, 128,3 x 43,8 cm, no Metmuseum) ela tem uma pérola verde na mão e um faustoso casaco decorado com grous, atestando que o tempo não conseguiria fazer esquecê-la. A que se deveria esse renovar do interesse pela saudosa história da bailarina Pérola verde? Cerca de 1791 surgira em Pequim um cativante relato evocando os tempos felizes de uma família de Nanquim. Escrito por Cao Xueqin (1710-65), que lá nascera, dava uma forma a essa forte sensação de saudade. Em Shitou ji, «Relatos da pedra» mais conhecido como Honglou meng, «O Sonho do quarto vermelho», Cao Xueqin segue a história do jovem Jia Baoyu, o «Jade precioso», que nascera com uma pedra de jade na boca e viveu rodeado por uma série de personagens femininas que seriam tomadas por pintores como modelos que prolongaram esse ambiente de fim de um tempo. Fei Danxu (1801-50) foi um desses autores conhecidos por pinturas de belas mulheres jovens, inspirados no Sonho do quarto vermelho. A própria expressão honglou, «quarto vermelho», que se refere a esses lugares interiores das habitações aristocráticas, que podiam ser aposentos de dormir, estar ou até um jardim, aponta para essa vida escondida de olhares exteriores, objectos de curiosidade. Num álbum de 1841 (tinta e cor sobre seda, no Museu do Palácio em Pequim) Fei recorda As doze belezas de Jinling descritas no livro, cada uma sozinha num jardim. Na narrativa do livro vai-se debatendo um projecto de edificação de um jardim, designado Daguan yuan, «Jardim do grande panorama». E foi no seu jardim que Fei Danxu fez o retrato do poeta Yao Xie (1805-64) num rolo horizontal, tinta e cor sobre papel, 31,128,9 cm, no Museu do Palácio em Pequim, rodeado das suas esposas que dir-se-ia uma reminiscência do jardim de Shi Chong.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO inesperado Mestre Mao Qiling Xu Zhaohua (1662-1722), que usou expressivos pseudónimos literários como lanchi, ou yibi, «louca por orquídeas» e «jade como mulher», foi uma das reconhecidas poetas que, no início da dinastia Qing, reflectiram sobre o lugar instável das mulheres que, se bem confinadas ao gineceu, possuíam já uma cultura literária que lhes permitia a expressão em forma de poemas, pinturas ou ensaios literários das mais subtis tonalidades da sua apurada sensibidade. O modo como essas mulheres na transição dinástica Ming-Qing, referidas depois como guixiu, «damas cultas» ou cainu, «mulheres de talento», adquiriam esses conhecimentos quando raramente se ausentavam de suas casas, variava. Mas no seu caso, como de outras igualmente ousadas, essa aprendizagem dependia de um homem literato mais velho com o qual não tinha qualquer relação familiar. Mao Qiling (1623-1716), esse seu preceptor, foi uma das mais extraordinárias figuras entre os homens de letras que asseguraram a continuidade da cultura literária. Um destino improvável que partiu, aliás, de uma recusa. Nascido em Xiaoshan (Zhejiang) após a queda dos Ming sentindo-se, como outros literatos e cultores das artes, incomodado pelos novos poderes que pareciam ignorar a tradição milenar, vagueou sem destino pelas regiões do baixo Changjiang. Mas afinal o que receava não se verificou e ele aproveitou uma abertura decretada pelo imperador Kangxi para se apresentar em 1679, já tarde em relação ao habitual, ao exame imperial e a sua vocação aproveitada por exemplo na redação da Mingshi, a «História dos Ming». Participaria noutros projectos imperiais, mas a partir de1687 vai para Hangzhou onde viverá a ambicionada vida retirada dos homens de letras, longe da poeira vermelha das cidades. E, numa das artes que conhecia, a da pintura, figurou esse lugar que era uma disposição do espírito. Mao Qiling alude num rolo vertical designado Pescador solitário numa embarcação, ou Songling yuyin, «Pinheiros na colina, pescador escondido» (tinta sobre papel, 63,5 x 35,6 cm, no Metmuseum) à figura modesta, sem ambições mundanas, do homem solitário que numa embarcação pesca sem isco num rio infindável. Xihe, Rio do Oeste, de resto era um dos seus nomes literários e o que aparece na edição das suas obras completas. E se no vasto Império os rios desaguam no Oriente, no Oeste é que estão as nascentes, ir para lá era regressar às origens. Como filólogo, Mao Qiling estudou a origem de palavras e conceitos antigos, debatendo questões que no seu tempo se colocavam quanto à interpretação dos Clássicos, ou o excesso de antagonismo que os neo-confucianos colocavam entre o desejo humano e o princípio da bondade celeste. Essa clarividência permitia-lhe apreciar a poesia de autoras como Xu Zhaohua que elogiava a longanimidade, a resistência à adversidade, e o jade que toma a temperatura de quem o toca.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAs Discípulas de Yuan Mei Li Longji (685-762), que seria recordado como o imperador Xuanzong de Tang (r. 712-56), regressava ao local de um crime para iniciar o doloroso processo a que o poeta Bai Juyi (772-842) chamaria o «longo remorso». Nesse lugar da colina Mawei onde por razões de Estado fora morta a concubina Yang Yuhuan, mais conhecida como Yang Guifei, diz o poeta: «ele e os seus ministros olharam-se nos olhos uns dos outros, as suas roupas molhadas de lágrimas». Mas quando os cavalos chegaram às portas do palácio, contrariando os seus sentimentos, «os lagos e os jardins permaneciam tranquilos;/ Os hibiscos nas águas do lago Taiye, os salgueiros do palácio Weiyang, «o que não acaba». / Mas os hibiscos eram a sua face, os salgueiros as suas sobrancelhas,/ Olhando para eles, como poderiam as lágrimas deixar de correr?» As palavras do poeta do Canto do eterno remorso (Changhen ge) ressoariam muitos anos depois, dando uma inolvidável forma a confusos sentimentos. No século XVIII, de repetidas, essas palavras eram já um lugar-comum e um poeta insubmisso ousou desafiá-las. No poema Mawei, regressando à fatídica colina, Yuan Mei (1716-1798) escreveu: «Não cantarei o Canto do remorso perpétuo de antigamente,/ Desde que existe a Via Láctea, esse rio de prata, que há pessoas separadas./ Nas suas aldeias com fossos de pedra, quando o marido se separava da esposa,/ Mais lágrimas se derramaram do que as que o imperador chorou no Pavilhão da longa vida.» Yuan Mei alardeava uma liberdade espelhada no espaço de um jardim que edificou como um auto-retrato, na tradição do que fizeram literatos como Wang Wei; «Se é o jardim que traz conforto aos nossos olhos, é também o jardim que oferece ao homem um refúgio de si mesmo.» Nascido em Hangzhou junto ao Lago do Oeste, levou para o terreno que adquiriu na área de Nanquim e que nomeou Suiyuan, «Jardim da Acomodação», aproveitando o nome Sui do anterior proprietário escrito porém de outro modo, certas características do celebrado Lago como as Vinte e quatro cenas com os respectivos poemas. A partir desse horto sem muros, o Senhor do Jardim da Acomodação, Suiyuan xiansheng, revelou uma ousadia que lhe permitia, por exemplo, superar as barreiras que separavam a educação de homens e mulheres. Como mostrou ao encomendar uma rara pintura. Wang Gong e You Shao foram os dois pintores solicitados por Yuan Mei para executar um inédito rolo figurando um convencional encontro de literatos mas que em que só participam, além de Yuan Mei, senhoras letradas. Em As discípulas do Mestre de Suiyuan (rolo horizontal, tinta e cor sobre papel, 41 x 308,4 cm, no Museu de Xangai) literatas, como a pintora Liao Yunjin (1766-1835) que por momentos levanta o pincel enquanto pinta um ramo de ameixieira conversam e convivem, atestando a ousadia de Yuan Mei que não aceitava preconceitos quanto à instrução de senhoras.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAs figuras muito lá de casa que Su Hanchen observou Zhao Gou (1107-1187), o imperador Gaozong (r.1127-62), viveu o dificíl tempo de recriação da dinastia Song, quando em 1127 os seus membros foram forçados, pelos nómadas Jurchen, a abandonar a capital Bianjing (actual Kaifeng) em direcção ao Sul. E não foi imediatamente que a corte em fuga encontrou uma nova capital. Desses tempos inquietantes com que se iniciava a dinastia Song do Sul (1127-1279) o itinerário da fuga fê-los passar por Nanquim, de onde foram até à actual Shangqiu, depois Yangzhou até fixarem uma nova capital em Linan (actual Hangzhou) em 1129. Xiansheng cilie (1115-1197), a esposa do imperador, ou simplesmente a imperatriz Wu de Song que era, como ele amante das artes do pincel, recordou com amargura esses tempos num poema breve: «Aqui belas ameixas definham cedo e pessegueiros varridos pelo vento ficam de súbito despidos,/ Na claridade do anoitecer, contemplo com alegria o disco de jade na abóboda celeste./ Em Yangzhou conheci bem a face branda da brisa de Primavera,/ Comparando todas as flores estas, em geral, nada se assemelham às outras.» Tudo, aliás, seria um pouco diferente. Por influência da filosofia Neo-confuciana buscava-se agora a reforma da sociedade de baixo para cima. Vendo obras de pintores, notar-se-á uma tendência para diminuir o tamanho das pinturas, abandonando os grandes cenários com a grande montanha dominando visualmente outras mais pequenas sugerindo uma ordem que vem de cima, e emerge uma forma de representação mais próxima, de cenas mais íntimas ligadas ao quotidiano. Um exemplo dessa mudança vê-se nas obras de Su Hanchen (1094-1172), um pintor da Academia imperial, patrocinada pelo pai de Gaozong, o inspirado imperador Huizong (1082-1135). Numa pintura feita num leque redondo (tuanshan) vê-se uma Senhora sentada diante de um toucador num jardim (tinta, cor e ouro sobre seda, 25,2 x 26,7 cm, no Museu de Belas Artes de Boston). Vista de costas, o seu rosto aparece no espelho que ela segura na mão direita, sublinhando o facto de estarmos admirando um momento privado. Su Hanchen seria, no entanto, mais reconhecido por dois temas que se tornariam géneros dentro da pintura figurativa. As cenas de crianças a brincar, yingxi tu, mostradas em diferentes ambientes e os vendedores de bujigangas, huolang tu, transportando uma imensa parafernália de objectos, em geral artigos baratos acessíveis a todos. Ambas, figuras capazes de provocar uma incontida alegria. Em duas pinturas que estão no Museu do Palácio Nacional, em Taipé (uma delas, um rolo vertical, tinta e cor sobre seda,181,5 x 267,3 cm) junta os dois temas, mostrando o vendedor ambulante acolhido por crianças oriundas de famílias ricas. Num pressentimento do que viria a seguir. Afinal, com um território menor, a dinastia retomada no Sul por Gaozong seria até mais próspera que no Norte.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA Antecipação de um Encontro Num Leque de Zhu Ling Gao Gu (1391-1460), um político e calígrafo da dinastia Ming, escreveu em 1447 um comentário numa pintura do sacerdote daoísta Fang Congyi (1301-1392) que se encontra no Metmuseum, intitulada Montanhas enevoadas em que, a certa altura, diz: «Os portões da casa de montanha parecem tão quedos como se lá não estivera ninguém. Isto será ou um lugar eleito por imortais, ou alguma visão suprema do mundo dos mortais.» Admirando a cadeia montanhosa, Gao estende a dúvida à própria representação, envolta em nuvens e nevoeiros, em que as montanhas dir-se-iam dotadas de uma leveza que em breve as faria soltar-se e voar. Essas montanhas pesadas e leves ao mesmo tempo eram um limiar, um lugar propício para encontros desde os mais improváveis aos mais certos da amizade. Foi uma dessas reuniões menos assombrosas mas não menos deslumbrantes que ficou registada pelo pintor Zhu Ling (c.1635-c.1680) na pintura Embarcação de regresso às montanhas da Primavera, em formato de um leque dobrável (tinta e cor sobre papel, 18 x 50,5 cm, na Colecção Kaikodo, Hawai). Chegando a uma cadeia montanhosa junto de um rio vem, numa embarcação guiada por um barqueiro, um literato que ansiosamente vira a cabeça antes de chegarem, apesar de não estar ninguém na margem. Ao lado um poema breve: «Pinto uma cena sublime e eloquente, cedendo à fantasia de captar os sons das montanhas. Procurarei entregá-la a este homem das montanhas sonoras, que chegará nesta altura para nos encontrarmos e depois regressará.» Pode-se imaginar que esse habitante das montanhas, que uma vez por ano desce para um encontro, seja alguém como o seu amigo próximo Wan Shouqi (1603-1652) que, dois anos após a queda dos Ming, se torna um monge e retirado se dedicou só às artes do pincel. E que por vezes ilustrou histórias daoístas na fronteira da credibilidade, como a de Fei Changfang, possuidor de um bastão que lhe permitia viajar inacreditáveis distâncias. Zhu Ling não só seguia nas suas pinturas o estilo característico de Huang Gongwang (1269-1354), o mestre autor do rolo Refúgio nas montanhas Fuchun, com a acumulação de pequenos traços separados cun, «rugas», para descrever as formas das montanhas, como o seu nome alternativo (zi) deriva de uma frase sua. Adoptado por uma família rica, em criança, teria exclamado na altura: Huang gongwang zi jiu, «O senhor Huang há muito desejava ter um filho», cuja primeira parte Huang gongwang seria adoptada como o seu nome, e a última Zijiu como o seu nome alternativo. Zhu Ling tirou dessa frase dois caracteres do meio, Wangzi para serem o seu nome alternativo. No leque que pintou antes do figurado momento de antecipação da reunião, Zhu Ling anotou: «Durante o último Inverno de 1661 pintou e, divertindo-se, inscreveu-a para seu grande prazer, o seu discípulo Zhu Ling de Changzhou.»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioGu Kuang, que tornou o corpo leve como uma pluma Wang Qia, o pintor daoísta da dinastia Tang (618-906), seria recordado como criador de uma «escola» de pintura designada pomo, «tinta espalhada» que valorizava o gesto espontâneo do pincel para tornar visível algo que é naturalmente invisível. Um modo de representação que buscava a comunicação entre o espírito do autor e o do observador convidado a discernir a finalidade da criação através da exposição do processo. Uma disciplina exigente, reconhecida até séculos depois por ilustres teóricos como Dong Qichang (1555-1635), que colocava muito alta a barreira a partir da qual essa pintura podia ser exercida: nada menos que no modo de Wang Wei (701-61), o reconhecido fundador da pintura dos letrados: «Só depois de alguém ser como Wang Wei é que poderá usar a maneira pomo de Wang Qia». Exemplos oriundos do pincel desse criador são hoje dificilmente observáveis e da ténue biografia dele preservada, resta quase só o sedutor eco de um nome que remete o ouvinte para a expressão da substância do espírito. Há porém um outro nome que nas histórias da pintura lhe está muitas vezes associado, o de Gu Kuang (727-821), de quem as pinturas hoje também são raras mas de quem se guardaram poemas que indiciam uma imponderável presença. Em Um poema do palácio, nota-se a disponibidade para sentir a torrente abundante mas subtil da beleza captada pelos sentidos, como a que vem no vento ou num som: «Numa alta torre de jade, meio caminho para o céu, começa uma canção soprada na flauta,/ O vento entrega no palácio o som harmonioso do palrear e dos risos das raparigas que a habitam./ O brilho do luar resplandece enquanto se escuta o pingar da noite escoando-se na clepsidra,/ As águas, rebrilhantes como cristais, dir-se-iam uma cortina desenrolada sobre o rio do Outono.» Mas o poeta e pintor, desiludido com as intrigas que embaraçavam as suas funções ao serviço do palácio, retira-se do serviço público e passará a usar o nome bem daoísta Buweng, o «Velho recluso». Gu Kuang obtivera o grau jinshi, que lhe permitia ser um funcionário imperial em 757, no tempo instável do imperador Tang Suzong, cujo reinado (756-62) ficaria marcado pela preocupação em acalmar a revolta de An Lushan que se alastrara como um fogo florestal. Revolta que obrigara à abdicação do seu pai, o imperador Xuanzong e à consequente condenação à morte da sua concubina favorita, um facto relatado no plangente poema de Bai Juyi (722-846), Canto do remorso perpétuo. Nascido em Yunyang (actual Danyang, Jiangsu) após uma vida entristecida pela morte de um filho, desloca-se com a família em 792 para a cadeia montanhosa de Maoshan, a Sul de Jurong, onde receberá a graça de um novo filho aos setenta anos. Quando vai para lá, escreve um propósito: «Escondido em Maoshan; para tornar metais básicos em ouro,/ Para tornar o corpo leve como uma pena.»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioOs bambus de Ke Jiusi que se cruzam ao crescer juntos Wu Zhen (1280-1354), um dos «Quatro mestres da dinastia Yuan», viveu em Jiaxing (Zhejiang) como muitos outros literatos desprezados pela burocracia da dinastia Mongol, da forma que se vê em muitas das suas pinturas: isolado como um eremita numa embarcação de pesca «Movendo lentamente o remo, pensando na casa para onde queria voltar, Pondo de lado a cana de pesca, como quem já não quer mais pescar.» Um seu vizinho e pintor chamado Sheng Mao (1313-1362), de Lin’an (actual Hangzhou), que se mudara para Jiaxing, vivendo como profissional dessa arte, tinha sempre em mente o ideal dos pintores literatos. Em duas pinturas no Museu Britânico que lhe são atribuídas vê-se numa um serviçal no meio da floresta, levando um livro na mão (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 99,6 x 29,2 cm), noutra um literato com as mãos escondidas pelo frio caminhando numa ponte coberta de neve em direcção a um pavilhão. O nome dado à pintura é: Lendo, alumiado no reflexo da neve. Em conjunto, o título e as duas pinturas parecem aludir a uma história referida por Liu Yiqing (403-444) em Shishuo Xinyu, «Novo relato das lendas do Mundo», sobre a figura histórica de Sun Sheng (c.302-373) que desde a mais tenra infância até à velhice sempre foi visto com um livro na mão e tão pobre que de noite, no Inverno, aproveitava o reflexo do luar sobre a neve para iluminar a sua leitura. Um exemplo de persistência da vontade de conhecer certamente apreciado pelos literatos, mas também de modo notável por um imperador da dinastia Yuan que reinou por duas vezes, chamado Tugh Temur (1304-1332) conhecido como Wenzong. E que, sendo estrangeiro, cultivou as artes, os costumes e tradições locais. Dos seus esforços para impôr a cultura local aos governantes mongóis destacar-se-ia a criação, na Primavera de 1329, da Kuizhang ge, a «Academia do pavilhão da estrela da literatura», que entre outras actividades como a compilação de textos clássicos também nomeou literatos capazes de reconhecer, estudar e comentar obras de arte. Alguns foram pintores, como um letrado de Zhejiang. Ke Jiusi (1290-1343) foi um desses eruditos (boshi) do Pavilhão Kuizhang de quem hoje se podem ler os comentários sobre pinturas e caligrafias de mestres antigos como Jing Hao (c.855-915) ou Jiang Shen (c.1090-1138). Nas suas próprias pinturas é notória a intuição na composição da paisagem, de que se vê um exemplo no Manual do jardim da mostarda. Ou num rolo vertical onde pintou dois altos caules cruzados de Bambus para o «Pavilhão da Virtude oculta» (Qingbige, tinta sobre papel, 58,5 x 132,8 cm, no Museu do Palácio em Pequim). Nessas duas hastes que crescem junto de sólidas pedras e que ao subir se cruzam, e em que aplicou o rigor da disciplina da caligrafia, terá espelhado a vontade da corte em acompanhar os grandes mestres solitários como Wu Zhen.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Tempo de Cozedura do Sorgo Amarelo Lu Dongbin, o imortal, esperava sentado numa estalagem em Handan, a cidade de Hebei no termo de Hanshan, a montanha púrpura-avermelhada. Trazia uma almofada de porcelana e esperava, saber-se-ia depois, para fazer uma demonstração das possibilidades oferecidas na finitude do fluir dos dias. Sem saber que vinha para um encontro luminoso, Lu Sheng estava imerso em pensamentos obscuros suscitados por repetidos reveses da fortuna, mas chegaria com a precisão da estrada que o colocaria face a face com o paciente imortal. Entabulando uma breve troca de palavras, Lu Sheng percebeu que o homem amável, que estava à sua frente com as vestes de um sacerdote daoísta, se disponibilizava para escutar as suas queixas. E o desiludido viajante contou como tinha, por pouco, reprovado o exame jinshi que lhe permitiria uma vida tranquila ao serviço do Império e que agora nem sequer admitia imaginar um futuro. Depois de o escutar, Lu Dongbin estendeu-lhe a almofada que trazia e disse-lhe para descansar um momento enquanto uma reconfortante papa de sorgo amarelo cozia ao lume. Logo o viajante adormeceu. E sonhou o sonho mais consolador: que passava o exame imperial, conhecia a mais bela e inteligente esposa, que lhe daria muitos filhos, com quem viveria muitos anos num bem remunerado e tranquilo posto imperial. Subitamente porém despertou do sonho que lhe parecia ter durado uma vida inteira. Perguntando ao mestre daoísta quanto tempo tinha dormido, este respondeu-lhe que a papa de sorgo ainda não tinha acabado de cozer. O antigo relato em que um imortal permite a um mortal viver, de facto, uma outra vida durante um curto espaço de tempo para lhe mostrar o carácter ilusório e transitório das ambições para ele próprio deduzir um outro caminho, seria retomado em 1601 pelo dramaturgo Tang Xianzu (1550-1616). Mas era há muito conhecido como um dos muitos provérbios de Handan, reduzido a quatro breves caracteres: 黄粱美梦 huangliang meimeng, «um sonho bom, o sorgo amarelo». Huang Ding (c.1650-1730), um pintor de Changzhou, fez uma série de pinturas «à maneira de» augustos pintores do passado como Wang Meng, Dong Yuan ou mesmo paisagens no estilo inconfundível de Nizan (rolo vertical, tinta sobre papel, 92,7 x 35,1 cm, no Instituto de Arte de Minneapolis) como querendo abarcar sob o seu pincel a longa história da pintura feita durante um tempo largo. Nesse tempo circulava um pequeno álbum com anotações do influente Dong Qichang, mas que é atribuído a Wang Shimin (1592-1680) intitulado Xiaozhong xianda, «Revelação de coisas grandes em pequenas», que continha, num formato reduzido, recriações de obras de grandes mestres. Dar a ver algo muito grande pode ser feito num formato pequeno, mas uma vida inteira em pouco tempo? Porque o que viaja é o espírito, Lu Dongbin fê-lo em menos de uma hora, o tempo que demora a cozer o sorgo amarelo.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA Guanyin de branco feita no traço preto de Fang Weiye Du Mu (803-852), o poeta de Chang’an que na sua carreira de funcionário imperial foi sendo enviado em sucessivas missões para postos distantes da capital, mostrou muitas vezes a sua incomodidade face às repetidas separações. Num dos seus mais admirados poemas ele olhou para a antiga narrativa contada desde a dinastia Han, que explica um tradicional festival celebrado no sétimo dia da sétima lua, em que uma vez por ano se actualiza a reunião de um casal, do vaqueiro Niulang e da tecelã Zhinu, identificados com duas estrelas brilhantes separadas pela Via Láctea ao longo do resto do ano. Esse festival, Qixi jie, «A noite dos setes», é conhecido por ser uma ocasião para relevar publicamente as virtudes e os trabalhos de senhoras, então habitualmente confinadas ao gineceu. Numa noite dessas o poeta reparou numa rapariga solitária: «Uma vela prateada brilha no Outono diante do frio painel pintado, Segurando um pequeno leque de gaze leve de seda, afasta as traças. Das escadas chega uma aragem fresca como a água, Ela senta-se e contemplando e entre as estrelas descobre Niulang e Zhinu.» As outras mulheres celebrando em grupos, dedicavam-se a variadas actividades. Além da contemplação das estrelas, faziam ofertas aos deuses, recitavam orações ou dedicavam-se à tecelagem. Tudo isso num ambiente de reverência e alegria que se pode observar, por exemplo, num rolo horizontal de Ding Guanpeng (1708-1771), Senhoras na noite dos setes apelando aos seus talentos (tinta sobre papel, 28,7 x 386,5 cm, no Museu de Xangai). De entre as tecelãs haveria porventura algumas, em especial as de famílias educadas que estariam tecendo quem sabe até com cabelos humanos, uma amada figura do budismo, a bodhisattva Guanyin. De tal forma as adeptas se sentiam próximas daquela que «contempla os sons» dos que lhe dirigem pedidos, adiando a sua libertação para ajudar a iluminação dos outros, que refaziam a sua figura como uma forma de ascese. Fang Weiyi (1585-1668) foi uma literata, poeta e pintora que fazia parte desses literatos que, com a sua erudição artística, permeavam o budismo chan. Nascera numa família de altos funcionários e casara cedo em 1602 mas no mesmo ano ficara viúva e perdera a filha desse casamento. É possível que esses «desgostos do coração» tenham aprofundado a sua fé budista, vivida na reserva do ambiente doméstico. Entre os inúmeros exemplos dessa devoção contam-se poemas e pinturas figurando luohans e um retrato de Guanyin vestida de branco (rolo vertical, tinta sobre papel, 56 x 26,6 cm, no Museu do Palácio, em Pequim). Figurada num contraste entre grossos e ondulantes traços de tinta preta para mostrar as suas largas vestes brancas e a minúcia leve com que retrata a sua face acolhedora. E o rosto tão humano, tanto como o gesto livre das vestes, revela uma estranha transcendência.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioOs bambus acompanhados de Tan Zhirui Guan Daosheng (1262-1319), a pintora e poeta da dinastia Yuan, esposa do não menos célebre pintor Zhao Mengfu (1254-1322), chegou a fazer pinturas murais em paredes de templos budistas porém não seriam essas figuras desenhadas em fortes pedras que resistiriam à passagem do tempo mas aquelas que fez sobre frágeis folhas de papel ou seda que, enrolados e atados com uma fita de cetim foram passados de mão em mão. E com uma mão, desenrolados, frequentemente no formato intímo como um segredo designado shoujuan, o «rolo horizontal», em que uma pintura ou uma caligrafia se destina ao olhar de um único observador. Dessa maneira subtil contribuiu para a criação e fiel transmisão da preciosa cultura literária e visual acarinhada durante séculos pelo uso do pincel. A sua mais comentada pintura «Floresta de bambus entre chuva e nevoeiro» (rolo horizontal, tinta sobre papel, 23,1 x 113,7 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé) em que se vê um bosque de bambus na margem de um rio, devido a uma alusão à lenda das fiéis viúvas do lendário rei-sábio Shun que se afogaram no rio Xiang, depois de ele aí ter morrido, manchando os bambus das margens com as suas lágrimas de sangue, viria a ser entendida como uma figuração de uma outra fidelidade, a do amor conjugal. E no modo único como pintava grupos de bambus inseridos na paisagem, um tema recorrente nas suas obras, houve quem reparasse na análoga motivação que pareciam ter os de um singular pintor chamado Tan Zhirui (c. de 1275- activo entre o fim do século XIII, início do XIV), não inscrito em registos tradicionais de pintores mas que no Japão seria percebido como um mestre genuíno da centenária arte do pincel. Esse reconhecimento seria atestado através das palavras inscritas nas suas pinturas pelo prestigiado mestre do budismo Chan, conhecido pelo seu nome monástico Yishan Yining (1247-1317) que pode ser traduzido como «De preferência, uma montanha». Tan Zhirui é o autor de uma invulgar pequena pintura que mostra Bambus na neve (tinta sobre papel, 31,5 x 20,6 cm, no Smithonian) em que Yishan Yining escreveu o poema: «Na neve gelada, escassamente espalhados, Uma míriade de jades verticais e compactos. Durante todo o período do Inverno, O bosque denso brilha, cintilante.» Ao contrário da clássica representação de bambus isolados crescendo agarrados a rochas, uma fórmula que se refere à recta personalidade do junzi, o «homem justo», aqui os bambus referir-se-ão à anelada vida em comum em mosteiros. Guan Daosheng evocaria os seus próprios filhos ao escrever, junto de uma sua pintura: «No dia em que foste embora, bambus tinham acabado de ser plantados,/ Os bambus crescendo tornaram-se num bosque, tu ainda não voltaste./ A minha face de jade desvanecendo dificilmente poderá ser restaurada,/ Ao contrário das flores que caem para de novo florescer.»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioFang Wanyi e a Importância da Flor do Loto Branco Luo Ping (1733-1799), o inclassificável pintor de Yangzhou, no fim da sua vida já viúvo, monge budista e envelhecido, fez-se retratar segurando na mão uma flor branca de um loto. Nessa altura vivendo num mosteiro, ele já assinaria pinturas com o nome Huazhisi seng, «o monge do templo das flores». E de todas as flores foi o loto branco, bailian que o acompanhou como se fora um veículo que lhe abria a capacidade de se comover com a beleza das coisas do Mundo, com as pessoas. Porque Bailian era o nome de pincel da mulher com quem se casara aos dezanove anos. Zhu Shuzhen, a poeta do século doze escrevendo sobre a trágica história da concubina Yang Guifei, falou desse olhar iluminado sobre a beleza que é uma fresta para o espírito: «Flautas e instrumentos de cordas faziam levantar por momentos a sua saia de brocados,/ O seu corpo cheio e leve ao mesmo tempo revelava suas pernas prontas para voar./ E se o luminoso imperador Minghuang a tivesse visto nessse dia,/ Os bárbaros não teriam sido capazes de matar Yang Guifei.» Um olhar iluminado terá sido o que Fang Wanyi (1732-1779), com o seu nome Bailian, terá dado a Luo Ping, o que se viu nas suas ousadas pinturas. Ela era, como ele, poeta e pintora e os dois fizeram muitas pinturas em comum. Nas pinturas que ela fez sozinha destacava-se como motivo preferido a flor meihua, da árvore prunus mume traduzida habitualmente como ameixieira que, porque florescem ainda no fim do Inverno, era um exemplo de longanimidade. De resto, toda a família, o casal e os três filhos se dedicaram à pintura dessa outra flor branca. Fang Wanyi e o seu marido Luo Ping participavam nos habituais encontros sociais entre pintores, poetas e escritores com os ricos mercadores de sal de Yangzhou. Foi o caso de uma festa que ocorreu na Primavera de 1775 na propriedade do comerciante Ye Yongting. O nome escolhido para a sua residência Shuizhuang, «a quinta de alguém», possuía o carácter de uma pergunta e uma alusão à doutrina budista. Como o dono escreve numa nota autobiográfica, queria colocar em evidência a constância do espaço da quinta com a impermanência do seu ocupante. Dessa reunião seria feita uma memória escrita que neste caso resultou em dois álbuns com vinte pinturas e trinta e oito caligrafias de vários convidados e entre eles Luo Ping e Fang Wanyi (tinta e cor sobre papel, 19 x 24,5 cm cada um, vendidos na plataforma Bonhams). Alguns dos que escreveram, reforçando a ideia de transitoriedade expressa pelo anfitrião, usaram a expressão canghai sangtian, «mar azul tornando-se um campo de amoreiras», o provérbio que alude às grandes mudanças que ocorrem no decurso do tempo. Quem sabe se foi aquilo que permanece no tempo que levou Luo Ping a segurar na mão uma flor de loto branca ou foi ele que quis distinguir a palavra que na vida breve lhe iluminou o olhar.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAs andorinhas suspensas no ramo frágil de Li Shan Liu Yuxi (772-842), o poeta de Luoyang (Henan), contemplando os céus reparou em certos pássaros que gostavam de habitar junto das famílias e indiciavam uma permanência dentro da constante mudança das estações. Observando os hábitos das andorinhas e a decadência das classes altas em Jinling, escreveu nos dois últimos versos do poema A rua das mansões das vestes negras: Sob os beirais dos poderosos Wang e Xie antes encontravam-se andorinhas, Agora voando, buscam tantas vezes as nossas humildes moradas. Há muito que era reconhecida essa proximidade de que fala, por exemplo, a lenda fundadora da primeira dinastia de que há registos escritos e que está na origem da linhagem dos Shang (c. 1500-1050 a. C.) com a capital em Yin (actual Anyang, Henan). Aí, segundo o historiador Sima Qian, uma mulher chamada Jiandi teria comido um ovo de andorinha (yan), antes chamada simplesmente xuanniao, «pássaro negro», dando depois à luz um varão chamado Xie, que foi o antepassado dos fundadores da dinastia. Ao longo do tempo, em diversas artes como a arquitectura, a pintura ou a poesia, desdobraram-se repetidas referências a essa relação de percebida amizade com os pássaros negros. Em tempos de inquietação, como os que se seguiram à transição dinástica Ming-Qing em que pintores identificados com os perdedores e pertencentes à anterior família reinante, como Zhu Da (1626-1705) conhecido como Bada Shanren, encontraram novas, expressivas, formas de representação aproveitando a fluidez do traço do pincel caligráfico apurado ao longo das dinastias Tang e Song e que nos Ming Dong Qichang tornaria um ideal. No epítome da sua velocidade, esse traço era designado feiba, o «branco voador», o que deixava no papel apenas os vestígios da passagem do pincel. Um pintor de Xinghua (Yangzhou, Jiangsu) admirador de Bada Shanren mostrou em várias pinturas a mesma atitude independente de cânones que levaria a que fosse considerado como um dos Yangzhou baguai, «os oito excêntricos de Yangzhou». Li Shan (1686- c.1756) que usaria o nome artístico Futang, que se pode traduzir como «recuperador de relações familiares», no rolo vertical Andorinhas (tinta e cor sobre papel, 134,9 x 33 cm, no Metmuseum) pintou devagar, com cuidado duas andorinhas pousadas num ramo feito com a espontaneidade da rapidez do traço usado para escrever com o pincel. E tal como em muitas pinturas de Bada Shanren, as palavras que nele estão escritas operam em harmonia com a figuração, e tal como as andorinhas no ramo dependem uma da outra. Neste rolo Li Shan escreveu: «Assim que chega o Outono os salgueirais começam a murchar, cruelmente,/ Como é que eles se comparam à brisa primaveril e ao canto das andorinhas?/ Não irei pintar de novo a dor das andorinhas pelo regresso do Outono;/ Neste mundo as separações e as partidas são o mais dificíl.»
Paulo Maia e Carmo Via do MeioFang Cong e o que está dentro e fora do portão Bai Juyi (772-846), o poeta da dinastia Tang atento às mais pequenas alterações da vida quotidiana, no poema em que celebra a renovação da casa que acabara de comprar, na Primavera, termina com os versos: «Se há uma coisa que convém ao meu espírito, São dez mil complicações parecerem esquecidas. Supondo que para lá do portão da minha residência, Algo acontece – nada saberei sobre isso.» E esse portão de uma casa ou de um mosteiro, muitas vezes enclaustrando um jardim, um espaço mentalmente ordenado, mais do que um limite fisíco marcava uma fronteira espiritual. Ao longo dos séculos do regime imperial esse ideal de sentir-se longe estando perto, perduraria na vida de literatos que gostariam de viver livres como eremitas, mas que não se podiam retirar das cidades devido às suas obrigações com o governo imperial. Foi esse também o caso do seu contemporâneo Pei Du (765-839), que escreveu num poema;: «No caminho para o meu portão avista-se um rio límpido, Velhas árvores crescem uniformes em redor dos beirais de telhados de colmo. A poeira vermelha voa mas não chega tão longe, E de vez em quando escuta-se o chilrear de um passarinho.» O eminente pintor e teórico Dong Qichang (1555-1636), citou muitos anos depois os versos de Pei Du no rolo vertical Paisagem (tinta sobre papel, 130,5 x 39,2 cm, no Smithonian) feito para um amigo que o visitou em Xangai, pouco depois do Ano novo de 1617. Nele, não se vê nem um portão nem qualquer pessoa mas nas margens do rio que domina a representação, em primeiro plano, um salgueiro-chorão assinala a presença de uma ausência. Esse mesmo salgueiro que se encontrará mais tarde em várias pinturas de um dos pintores da corte de Qianlong. Como na Paisagem de 1770 (tinta sobre papel, 26,3 x 33,3 cm, no Museu Cernuschi) em que o uso do pincel com pouca tinta e uma habitação vazia evocam a aparente simplicidade da pintura de Dong Qichang, executada porém com uma calculada disposição geométrica dos vários planos. Fang Cong (c.1749-1790) de Zhejiang chegara à corte em 1736 com outros pintores que se destacariam como Zhang Zhongchang ou Ding Guanpeng e mereceria a aprovação de Qianlong, notada em poemas que o imperador escreveu sobre as suas pinturas. Sobre uma sua Paisagem de neve, feita numa folha de álbum (tinta e cor sobre papel, 26 x 32,8 cm, no Museu Cernuschi) percebe-se a vantagem de estar abrigado atrás do portão mas a beleza do cenário branco provoca uma inquietante indecisão. Tal como o salgueiro-chorão designado liu, que era usado em despedidas, dada a homofonia com uma palavra que significa «fica», embora a pessoa vá partir. Mesmo protegidos dentro de casas, por vezes enclausurando um pátio pelos quatro lados (siheyuan), por trás do portão o espírito voa pressentindo que há algo lá fora que é importante e não deve ser perdido.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioShen Quan, o Pintor Itinerante, Erudito e Popular Kumashiro Yuhi (1712-1772), o Japonês que viveu em Nagasaki no tempo do sakoku «o país acorrentado», a política de auto-isolamento imposta pelos shoguns Tokugawa do período Edo (1603-1867), deixou-se impressionar pelas poucas pinturas estrangeiras que só pelo porto da sua cidade eram permitidas entrar. Nascido numa família de intérpretes da língua chinesa (totsuji), função a que também ele estava destinado, cedo pecebeu que a sua afinidade, além das palavras do grande país do outro lado mar, estava com essa arte visual. Com a sua imensa riqueza de sentidos, histórias e possibilidades de expressão das mais sensíveis emoções despertadas pela vida que passava diante dos seus olhos. Apesar da política de fechamento, já antes tinham chegado os monges pintores do chan que em 1661 haviam fundado o templo de Manpukuji, transmitindo o seu particular e sofisticado entendimento da pintura. Nesse tempo e a pedido das autoridades locais, veio para a sua cidade um pintor de Deqing /Zhejiang) chamado Shen Quan (1682-1760) cuja singular abordagem à arte se situava num inesperado cruzamento entre o conhecimento histórico, científico e uma representação artística que integrava aspectos decorativos e elementos da liberdade da pintura dos literatos. Exemplar da adesão de Kumashiro à cultura aprendida com Shen Quan é a pintura horizontal montada num rolo vertical, Xiwangmu, a «Rainha Mãe do Oeste em voo» (tinta e cor sobre seda,64 x 99,3 cm, no Museu Britânico) onde se citam modos de fazer ligados a tempos diversos e codificados elementos visuais dessa mitologia estrangeira. Sob um pinheiro, árvore dos literatos, abraçada por um pessegueiro ligado à ideia da longa vida, uma serviçal junto de um veado que, porque as suas hastes renascem depois de cair, símbololiza a perseverança, estende um pêssego à raínha mãe que paira entre nuvens etéreas sobre as águas. E na maneira diversa como são representados nota-se, entre outros, o estilo vigente no fim da dinastia Yuan. Shen Quan chegou a Nagasaki, de acordo com os minuciosos relatos locais, no dia três de Dezembro de 1731 e partiu a dezoito de Setembro de 1733, mas esse curto espaço de tempo foi suficiente para deixar o seu legado na forma de uma «escola» designada Nanping, a partir do seu nome artístico. Pintores que adoptaram a sua exigente concepção da pintura que equilibrava o naturalismo com o artificialismo. No seu rolo vertical Macieira brava em flor, rosas da China e um par de pássaros (tinta e cor sobre seda, 94 x 107,3 cm, no Metmuseum) estão figurados elementos cujos nomes formam uma homofonia num ideograma para desejar «longa vida para os teus pais». Nele avulta a elegante rosa chinensis que não se distingue pelo perfume mas pelo seu sedutor florescimento incessante. Renovando a sua beleza desde a Primavera tardia até às primeiras geadas.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioLiu Cai e as flores de pessegueiro caídas na água Shen Zhou (1427-1509), o influente mestre das artes do pincel de Suzhou, num rolo de caligrafia aponta um facto para a origem de um famoso intercâmbio de cerca de noventa poemas entre literatos, despertados pela observação das flores caídas, luohua shi: «Na Primavera do ano de 1505 estive doente um mês inteiro. Quando recuperei, as flores das árvores tinham todas caído cobrindo o chão de pétalas vermelhas e brancas. Olhando a sua decadência sem ter presenciado o seu desabrochar, não podia deixar de me sentir triste. Esse encontro com as flores caídas inspirou-me na composição de versos.» E não apenas versos como se pode ver numa página de álbum intitulada Sentimento poético sobre as flores caídas (tinta e cor sobre papel, 35,9 x 60,1 cm, no Museu de Nanquim) onde surpreendemos um literato num promontório de olhar suspenso em distantes montanhas azuis e no chão à sua volta pontos cor-de-rosa, indicando flores que ele já não está a contemplar. Os dez poemas, que iniciaram a longa e florescente conversa, resultado da percepção das pétalas ao vento como uma silenciosa procissão escoltando a partida da Primavera, inseriam-se numa corrente que inspirara, por exemplo, poemas de Du Mu (803-852) e continuaria no paroxismo sentimental da personagem Lin Daiyu do Sonho do quarto vermelho, de Cao Xueqin (1710-1765), que cavou na terra um buraco para sepultar flores mortas. Um pintor da corte do imperador Huizong (r.1100-1125) abrira uma outra perspectiva ao mostrar o que aconteceria quando se, em vez de caírem na terra, as flores caísssem nas águas de um rio. No rolo horizontal Peixes a nadar entre flores caídas (tinta e cor sobre seda, 26,4 x 255,3 cm, no Museu de Arte de St. Louis, Missouri) o pintor inicia essa visão do mundo submerso com um ramo de flores de pessegueiro caído na água. Um literato observando a pintura podia recordar imediatamente a utopia da Fonte das flores de pessegueiro descrita no poema de Tao Yuanming (365-427) e perceber que estava entrando num desconhecido e grato lugar de felicidade. Liu Cai, a quem é atribuído o rolo, distinguiu-se nessa recriação do mundo marinho habitado por peixes e como tal referido em catálogos imperiais. O seu olhar único perduraria além da sua vida como no rolo horizontal Escola de peixes a brincar alegres entre plantas aquáticas (tinta e cor sobre seda, 29,7 x 231,7 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé) que datará já da dinastia Ming. De ambos os rolos, no entanto, se desprende a mesma sensação de leveza na facilidade dos peixes deslocando-se na água. No rolo de St Louis, depois do ramo de pessegueiro, nota-se um peixe prateado que apanhou na boca uma pétala cor-de-rosa e parece fugir para o fundo, atraindo logo um cardume dos seus iguais que trigosamente o perseguem. Figuras que recuperam a alegria perdida quando as flores caíram.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioPara fazer um retrato, Gao Jian pensou num jardim Zhu Shuzhen (c.1135-1180), a preclara poeta da dinastia Song cuja biografia é conhecida apenas através do prefácio escrito por Wei Duanli (1130- c. 1184) na recolha dos seus poemas Duanchang shiji, «Coração partido», onde mesmo aí diz que a não conheceu pessoalmente citando apenas uma biografia dela feita por um tal Wang Tanzuo. E para confirmar a veracidade da sua existência, acrescenta que ouviu recitar os seus poemas em estalagens na área de Hangzhou. Alguns chegaram a sugerir que a poetisa seria uma fabricação de um ou vários literatos justificando assim o inexplicável desconhecimento da vida daquela que viveu num tempo que justamente celebraria Li Qingzhao (1084 – c. 1155), a inspirada literata de Jinan (Shandong). Entre as várias razões que explicariam uma tão diferente recepção tem sido referido o evidente ambiente literário e de conhecimentos pessoais de que beneficiava Li Qingzhao e que claramente não foi o caso de Zhu Shuzhen. Para lá das dúvidas biográficas, as palavras dela persistem mostrando um olhar surpreso da mutante e fugaz beleza que encontrou diante dos seus olhos. Como escreve no poema, Flores caídas: «Suspensas no alto dos ramos as primeiras flores despontam, puras,/ Invejando as flores, o vento e a chuva aceleram-se mutuamente, como lhes convém.» E, se nesse contar do seu olhar sobre a natureza se insinua uma personalidade sensível, quando um pintor da dinastia Qing quis fazer o retrato de um proeminente literato que ocupou importantes funções no governo imperial, pensou numa paisagem eleita num jardim. No rolo horizontal (tinta sobre papel, 34,8 x 90 cm, no Metmuseum) onde está trancrito o Discurso sobre a poesia de Song Luo pelo seu filho Song Zhi, o pintor fez a figura de um literato sentado num pavilhão aberto rodeado por duas pessoas, representando alguém que vive em comunidade. Mas são os altos pinheiros, um regato brando, uma profusão de bambus, metáforas de um carácter elevado e íntegro que ocupam a maior parte do espaço pintado. Gao Jian (1634-1707), o pintor de Maoyuan (Suzhou), mostra nessa pintura do Outono de 1698, o estilo que caracterizava a sua cidade, evocando nomeadamente Shen Zhou (1427-1509), o respeitado mestre da chamada «escola de Wu», nome alternativo da região de Suzhou. Numa outra pintura Gao Jian referiu-o pelo nome fazendo, como ele fazia, uma pintura de uma paisagem «à maneira de». No rolo vertical (tinta e cor sobre papel, 208,9 x 93,9 cm, no Museu de Arte de Indianapolis) escreveu «Em Maio o rio é profundo e o pavilhão é frio», citando um verso de Du Fu. Afinal inscrevendo a sua obra num contínuo de vozes singulares que se sucedem no tempo e às quais o leitor-observador é convidado a escutar, mesmo desconhecendo pormenores da biografia dos autores que se perdem como flores impelidas pelo vento e a chuva em plena Primavera.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Dragão e a Alegria dos Peixes de Yu Xing Zhong Kui, o patrono dos estudantes é muitas vezes representado de pé sobre uma estranha criatura que, observada desde a cauda, apresenta um rabo de peixe que se vai transformando num dragão, um compósito designado ao. Nos exames imperiais, desde a dinastia Tang até à dos Song, entre 618 e 1279, os candidatos que estudaram para o exame imperial, depois de o completarem aguardavam o resultado numa escadaria onde estava esculpida a figura de uma dessas criaturas fantásticas. O que ficava em primeiro lugar, o primeiro a pisar a cabeça do ao, originou um ditado para indicar um feito bem-sucedido – duzhan aotou, «apreender a cabeça do ao». Os descendentes do imperador, durante a dinastia Qing designados em manchu a-ge, não estavam sujeitos a esse exame, mas o seu regime de estudos não era menos exigente. Desde as três da manhã estudando, entre outros os Quatro livros e os Cinco clássicos, sem férias, com apenas cinco dias livres por ano. Um dos mais brilhantes herdeiros dessa dinastia foi Aisin-Gioro Hongli, que entre 1735-95 ocuparia o trono do filho do dragão com o nome Qianlong. Um episódio da sua biografia confirma-o, quando impressionou o seu poderoso avô, o imperador Kangxi (1654-1722). Tinha então doze anos quando o encontrou pela primeira vez no Pavilhão das peónias do antigo palácio de Verão Yuanmingyuan, o «Jardim do brilho perfeito». Na ocasião ele recitou de cor o poema de Zhou Dunyi (1017-1073) Em louvor do loto, a flor que nasce para a beleza, indiferente ao lodo de onde vem. Quando por sua vez se tornou imperador, o neto recordou o grato encontro com o avô nomeando dois lugares onde este decorreu; o pavilhão do jardim das peónias passou a «A lua emergindo, as nuvens afastam-se», e o local onde estudou com ele, «Vento e pinheiros entre uma miríade de vales». De modo habitual também lembrou o lugar mandando executar a pintura Manhã gloriosa durante o guxian, o terceiro mês lunar (tinta e cor sobre seda, 179,4 x 106,2 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé). Yu Xing (1736-1795), nascido na colina Yushan em Changshu (Jiangsu), o autor desse painel, era um pintor da corte de Qianlong que se distinguira em minuciosas pinturas de flores, plantas, insectos e peixes. Num rolo horizontal que fez sob o tema Peixes e algas (tinta e cor sobre papel, 28,5 x 157,8 cm, vendido na Sotheby’s), Qianlong escreveu um poema provando o seu apreço: Algas verdes como jade espalhadas por todo o lago e peixes nadando livres entre as algas. Esta cena faz-me pensar na inutilidade da nossa vida. Observando os peixes divertindo-se transmite-me uma grande alegria. O clássico Zhuangzi afirma, sem explicar a razão por palavras, que é mesmo jubilosa a vida dos peixes. E quem sabe se não é essa alegria que está figurada na persistente representação de um peixe que voará, leve e poderoso como um dragão.