Influência das alterações climáticas sobre os ciclones tropicais

[dropcap]D[/dropcap]esde que o planeta Terra se formou, há cerca de 4,54 mil milhões de anos, a atmosfera tem vindo a sofrer alterações na sua composição química, conteúdo em aerossóis e temperatura média. Também o clima, que na sua definição mais simplista é a média das condições meteorológicas num período de pelo menos trinta anos, se tem alterado ao longo dos éones.

Exemplos das consequências destas alterações são as numerosas glaciações que o nosso planeta tem sofrido.

Todas essas oscilações do clima tiveram causas naturais. Acontece, porém, que desde o início da era industrial, há menos de dois séculos, o clima se tem alterado de tal maneira que há praticamente unanimidade no meio científico de que as causas estão relacionadas com o aumento da concentração dos gases de efeito de estufa. Segundo o Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas (Intergovernmental Panel on Climate Change – IPCC), é 95% certo que as causas sejam antropogénicas, devidas principalmente ao uso intensivo de combustíveis fósseis.

O IPCC é merecedor de toda a credibilidade, na medida em que foi criado por duas entidades das Nações Unidas, a Organização Mundial de Meteorologia e o Programa das Nações Unidas para o Ambiente. O principal objetivo do IPCC é disponibilizar aos decisores políticos avaliações científicas regulares sobre as alterações climáticas, assim como opções de adaptação e mitigação, alertando também para os riscos futuros.

O IPCC não realiza a sua própria investigação, mas os seus cientistas recorrem a milhares de trabalhos de investigação publicados em todo o mundo e elaboram com certa regularidade relatórios de avaliação sobre as alterações climáticas (Assessment Reports on Climate Change).

Desde a sua criação, em 1988, o IPCC já elaborou cinco relatórios deste tipo e está preparando o sexto, que se prevê que esteja pronto no primeiro semestre de 2022. Uma das organizações que tem vindo a colaborar com o IPCC, através de relatórios sobre a avaliação da influência das alterações climáticas sobre os ciclones tropicais, é o Comité dos Tufões (ESCAP/WMO Typhoon Committee), cujo secretariado está sediado em Macau desde 2007.

É uma realidade comprovada que o teor em gases de efeito de estufa na atmosfera tem vindo a aumentar, com especial relevo para o dióxido de carbono. A célebre curva de Keeling mostra que, desde 1958, altura em que se iniciou de maneira sistemática a medição da concentração do dióxido de carbono na atmosfera, o seu teor tem vindo a aumentar progressivamente.

Consultando o website “Earth’s CO2 Home Page” (https://www.co2.earth/keeling-curve-monthly) pode-se verificar que a concentração do dióxido de carbono no observatório de Mauna Loa (Hawai), passou de menos de 300 partes por milhão (ppm) em 1958 para mais de 400 ppm na atualidade. Estima-se que no início da era industrial era cerca de 280 ppm. Mesmo após 2005, ano em que entrou em vigor o Protocolo de Quioto, que não chegou a ser ratificado pelos Estados Unidos da América, não se nota na curva de Keeling qualquer decréscimo de concentração de dióxido de carbono, antes pelo contrário.

Curva de Keeling

De acordo com este protocolo os países assinantes comprometeram-se a tomar medidas para o decréscimo de emissões de gases de efeito de estufa, em particular do dióxido de carbono. Poder-se-á afirmar que o Protocolo de Quioto não cumpriu os seus objetivos. Infelizmente o mesmo parece estar a acontecer com o Acordo de Paris, estabelecido em 2015, que volta a preconizar medidas para a diminuição das emissões de gases de efeito de estufa.

Desde o início da era industrial que houve um aumento da temperatura média do ar de cerca de um grau Celsius, o que parece ser pouco, mas se pensarmos que basta um aumento de algumas décimas de grau para que a água passe do estado sólido para o estado líquido, quando a sua temperatura está próxima dos zero graus, facilmente se compreende as graves implicações desta subida de temperatura. As imagens de satélite mostram com clareza a rápida diminuição das calotas polares.

Com base nos estudos recolhidos pelo IPCC poder-se-á perguntar: qual será a influência das alterações climáticas nos ciclones tropicais? A resposta não é fácil, mas parece que seria provável uma maior atividade desses fenómenos meteorológicos, atendendo a que o aquecimento do ar e do mar é uma realidade e que os ciclones tropicais se formam sobre as áreas mais aquecidas dos oceanos. No entanto, a elevada temperatura da superfície do mar não é a única condição para a formação dos ciclones tropicais. Sabe-se, em termos estatísticos, que para que ciclones tropicais se formem, devem ocorrer simultaneamente as seguintes quatro condições:

– Temperatura da superfície da água do mar de pelo menos 26,5 graus Celsius;
– Uma perturbação no campo da pressão atmosférica nos níveis baixos da troposfera (depressão ou vale);
– Um anticiclone nos níveis altos da troposfera;
– Pequena variação na vertical da velocidade e direção do vento (cisalhamento vertical ou, em inglês, vertical wind shear).

Se ocorrerem simultaneamente estas quatro condições é muito provável a formação de um tufão se o fenómeno ocorrer no noroeste do Pacífico ou no Mar do Sul da China, um furacão no Atlântico ou no Pacífico oriental (a leste da linha de mudança de data), um ciclone se for no Índico.

Para estudar a evolução do clima recorre-se a registos de dados meteorológicos referentes a muitas dezenas de anos e a modelos físico-matemáticos com os quais se podem tirar conclusões sobre como reagem a atmosfera e os oceanos à maior ou menor quantidade de gases de efeito de estufa. E é isso que os climatologistas têm vindo a fazer e as conclusões não são nada otimistas no que se refere às consequências, nomeadamente o degelo das calotas polares, a subida do nível médio do mar, maior frequência de fenómenos meteorológicos extremos, como por exemplo ondas de calor, desertificação em determinadas regiões e chuvas intensas noutras, etc.

Como os ciclones tropicais se formam sempre no mar, onde as observações meteorológicas são muito mais escassas do que em terra, não há um registo longo da ocorrência destes fenómenos.

Essas observações eram quase exclusivamente obtidas, antes do advento dos satélites meteorológicos, com recurso a boias e tripulações de navios. Como seria expectável, quando havia indícios dessa formação, como por exemplo diminuição brusca da pressão atmosférica e aumento do vento e da nebulosidade, os navios manobravam para se afastarem. Por outro lado, a quantidade de boias com equipamento meteorológico era escassa e perdiam-se ou deterioravam-se facilmente. Estas limitações implicaram escassez de dados referentes à formação de ciclones tropicais antes de meados da década de sessenta do século passado, aquando do advento dos satélites meteorológicos, o que teve como consequência que as conclusões dos estudos sobre a evolução da intensidade e frequência dos ciclones tropicais só passaram a ser mais fiáveis a partir dessa altura.

De acordo com o Quinto Relatório de Avaliação sobre as Alterações Climáticas do IPCC (Fifth Assessment Report on Climate Change – AR5), editado em 2014, não se podem tirar conclusões seguras sobre se as alterações globais ou qualquer outra causa particular tenham influenciado a atividade dos ciclones tropicais. No entanto, no que se refere ao Atlântico Norte, constatou-se que essa atividade tem aumentado desde 1970.

No que se refere aos ciclones tropicais que ocorrem no noroeste do Pacífico e no Mar do Sul da China, o Comité dos Tufões tem vindo a elaborar relatórios sobre as implicações das alterações climáticas nesses fenómenos, antevendo-se aumento de intensidade, mas diminuição da frequência. Não é absolutamente certo que assim seja, mas há a certeza de que, considerando a tendência de aumento da pressão demográfica nas áreas tradicionalmente afetadas por tufões, cada vez mais gente ficará exposta a estes fenómenos.

4 Jul 2019

O meteorologista de Estaline – O homem que viveu duas vezes

[dropcap]A[/dropcap]o ler a biografia de José Estaline, de Simon Sebag Montefiore, a minha curiosidade foi aguçada pelo facto de ser mencionado que ele (Estaline) trabalhara como meteorologista no Instituto Meteorológico de Tbilisi, na Geórgia.

Procurei mais informação mas não consegui saber quais as suas funções no Instituto Meteorológico. Tudo indica que não teria sido meteorologista na medida em que não consta que tivesse estudado matemática e física em profundidade que lhe permitissem compreender os fenómenos meteorológicos. Provavelmente limitar-se-ia a ler os instrumentos e a registar periodicamente os valores das variáveis meteorológicas, tais como a pressão atmosférica, a temperatura do ar, a precipitação e a avaliar visualmente outros parâmetros como a nebulosidade, visibilidade, nevoeiro, neblina, bruma seca, etc. Quanto muito teria exercido as funções de observador meteorológico.

Continuando a busca de algo que relacionasse Estaline com a meteorologia, deparou-se-me o livro “O Meteorologista”, do escritor francês Olivier Rolin. O meteorologista não era Estaline, mas sim o seu contemporâneo Alexei Feodossievitch Vangengheim. Além de ambos terem tido profissões na área da meteorologia e de serem entusiastas das novas ideias que alastravam pela Rússia no início do século XX, nada mais de comum teria havido entre eles. Estaline era filho de um sapateiro e nascera em 1878 em Gori, na Geórgia (Cáucaso) e Alexei descendia de uma família da pequena nobreza e nascera em 1881 numa pequena aldeia, na Ucrânia. No entanto o destino ligou-os de maneira trágica.

Enquanto Estaline enveredou pelo envolvimento político ativo, Alexei dedicou-se a uma carreira nas áreas da física e da matemática. Frequentou, no início do século XX, o Departamento de Matemática da Faculdade de Física e Matemática da Universidade de Moscovo.

Depois do serviço militar frequentou o Instituto Politécnico de Kiev e o Instituto Agrícola de Moscovo. Casou em 1906, tendo ingressado mais tarde no Serviço Hidrometeorológico do Mar Cáspio. Ainda antes da revolução é mobilizado como chefe do Serviço Meteorológico do VIII Exército, tendo os seus conhecimentos de meteorologia sido aproveitados em batalhas entre russos e austríacos, em que eram empregues gases, arma de guerra cujo uso era muito dependente da direção e intensidade do vento. Após a revolução de Outubro de 1917 e da guerra civil que se lhe seguiu entre Brancos e Vermelhos trabalhou no Observatório Geofísico em Petrogrado, onde foi o responsável pela previsão do tempo a longo prazo.

O interesse pela meteorologia foi-lhe provavelmente transmitido pelo seu pai, que montara uma estação meteorológica nas suas terras.

Apesar do seu pai pertencer à pequena nobreza, o que poderia fazer cair suspeitas de comportamento reacionário, Alexei optou por permanecer na Ucrânia após a revolução de outubro de 1917, contrariamente a um seu irmão que emigrou. Foi membro do partido bolchevique e, como tal, fez parte de numerosos comités e conselhos científicos. Foi nomeado para a direção do recém-formado Serviço Hidrometeororológico Unificado da URSS, a que chamava em alguns dos seus escritos “o meu querido filho soviético”. Foi o responsável pela instalação da rede de estações meteorológicas nas vastas regiões abrangidas pela URSS. Exerceu ainda outras funções, nomeadamente presidente do Comité Hidrometeorológico junto do Soviete dos Comissários do povo, diretor do Gabinete do Tempo e presidente do Comité Soviético para a organização do segundo ano polar. Contribuiu para a obtenção do recorde mundial de altura atingida pelo homem, com a subida do estratóstato designado por URSS1, que atingiu dezanove mil e quinhentos metros, em plena estratosfera, onde foram levadas a cabo observações de grande valor científico.

Alexei participou em discussões iniciadas na década de 1930, conjuntamente com os diretores de serviços meteorológicos de outros países, em que se preconizava que a Organização Meteorológica Internacional (International Meteorological Organization – IMO), organização não governamental fundada em 1873, evoluísse no sentido da criação de um organismo internacional que coordenasse as atividades meteorológicas a nível mundial e cujos membros fossem os Estados aderentes. Tal veio a acontecer algumas décadas mais tarde, em 23 de março de 1950, com a entrada em vigor da Convenção Meteorológica Mundial, criando-se assim a Organização Meteorológica Mundial (World Meteorological Organization – WMO), agência especializada das Nações Unidas.

Como fruto do seu trabalho, no primeiro dia do ano 1930, foi emitido o primeiro boletim meteorológico através da rádio.

Era com orgulho que contribuía assim, na sua maneira de pensar, para a construção do socialismo.

As previsões do tempo poderiam contribuir grandemente para o êxito da agricultura. E provavelmente assim seria, se houvesse uma rede de estações suficientemente densa não só na URSS mas também nos países a oeste, na medida em que nessas latitudes os fenómenos meteorológicos se deslocam com forte componente de oeste para leste. Na realidade os serviços meteorológicos não estavam tão bem organizados como atualmente e o sistema de telecomunicações não era suficientemente expedito que permitisse a transmissão dos comunicados meteorológicos com eficiência em tempo real, o que motivou que a fiabilidade das previsões do tempo não fosse muito elevada.

Entretanto, a coletivização da propriedade rural levou à desmotivação dos camponeses o que provocou, juntamente com outras causas, uma baixa dramática da produção agrícola. A coletivização não se limitou às imensas propriedades dos latifundiários, que tanto exploraram os camponeses antes da revolução de outubro de 1917, mas também às propriedades dos camponeses que praticavam agricultura de sobrevivência. Um camponês com uma ou duas vacas era considerado Kulak e, portanto, inimigo da revolução. A coletivização forçada e as requisições de cereais decretadas por Estaline levaram em 1932 e 1933 a milhões de mortos na Ucrânia.

Para justificar o insucesso na agricultura havia que encontrar bodes expiatórios. E assim Alexei foi acusado de propositadamente difundir previsões meteorológicas erradas com o intuito de sabotar a revolução. A sua ascendência nobre e ser irmão de um emigrado também contribuíram para que as suspeitas do Comissariado do Povo para Assuntos Internos (abreviadamente designado por NKVD) caíssem sobre ele. Ainda por cima tinha contactos com personalidades estrangeiras. O convite ao meteorologista escandinavo Tor Bergeron para apresentar palestras na URSS contribuiu para que caíssem sobre ele suspeitas de contactos com estrangeiros não só sobre meteorologia mas também sobre outros assuntos. Bergeron foi um dos criadores da teoria norueguesa sobre a evolução de depressões associadas a superfícies frontais que separam massas de ar polar de massas de ar tropical, teoria essa que adotou representações gráficas das frentes que ainda hoje são usadas nas cartas meteorológicas.

Alexei foi preso pela polícia política em 1934 e condenado a dez anos num campo de trabalhos forçados. Mais tarde, em 1937, foi-lhe agravada a pena para fuzilamento.

O Campo de trabalhos forçados situava-se no nas ilhas Solovetsky, no Mar Branco, próximo da Finlândia e do círculo polar ártico. Foi nestas ilhas que se instalou o primeiro campo, em 1923, do que veio a tornar-se na Direção Central dos Campos (Glavnoye Upravleniye Lagurey), cujo acrónimo GULAC se tornou célebre.

Ironicamente, em dez de agosto de 1956, três anos após a morte de Estaline, o presidente do Colégio Militar do Supremo Tribunal da URSS, assinou um decreto através do qual foram canceladas a decisão do Colégio da OGPU (Direção Política Conjunta do Estado) tomada em 7 de março de 1934 (condenação a dez anos em campo de trabalhos forçados) e a decisão da troika especial do NKVD de Leninegrado de 9 de outubro de 1937 (condenação à morte por fuzilamento). É pena que o cancelamento dessas decisões não devolvesse a vida do meteorologista…

A esposa de Alexei, Varvara Ivanovna, faleceu em 1977 sem saber onde nem quando e em que circunstâncias o seu marido fora assassinado. A versão oficial que lhe fora entregue em 1957 foi a de que o seu marido morrera em 17 de agosto de 1942, de uma peritonite.

Olivier Rolin, seu biógrafo, decidiu investigar a sua história quando consultava documentos reunidos pela ONG Memorial, associação russa dos direitos humanos criada durante a Perestroika.

A sua curiosidade foi despertada por uns desenhos enviados por um deportado para sua filha, Eleanora, tirando assim do anonimato uma das muitas vítimas inocentes dos tempos conturbados vividos na URSS durante a década dos anos trinta do século passado. Esse deportado, que oficialmente morrera de uma peritonite em 1942, mas que na realidade fora fuzilado em 1937, era Alexei Feodossievitch Vangengheim.

6 Jun 2019

Consciência profissional, meteorologia e ciclone Idai

[dropcap]C[/dropcap]erca das 15:00 horas do dia 11 de março de 2019, o meu telefone tocou. As palavras poderão não ter sido exatamente estas, mas o sentido foi o que se segue.
– Olá, tudo bem contigo? Já viste o que se está a passar no Canal de Moçambique?
– Olá Luís, tudo bem? Não, não vi. Do que se trata?
– Dá uma olhadela ao website www.windy.com. Verás que Moçambique está a ser ameaçado por um ciclone que aponta para a cidade da Beira.

Era o Luís Pinto Coelho, meteorologista aposentado, colega durante dezenas de anos no Serviço Meteorológico Nacional e nas instituições que lhe sucederam, Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica e Instituto de Meteorologia. O Luís sempre se sentiu muito ligado a Moçambique, onde fez serviço militar durante a guerra colonial, tendo também lá trabalhado na área da meteorologia. Durante muitos anos desenvolvemos a nossa atividade profissional, embora em turnos diferentes, no então chamado Centro Meteorológico do Aeroporto de Lisboa. Aí eram marcadas várias vezes por dia, em cartas, os valores das variáveis meteorológicas correspondentes a centenas de estações meteorológicas espalhadas por grande parte do hemisfério norte. Os meteorologistas procediam então à análise, que consistia essencialmente no traçado, nas cartas de superfície, das isóbaras (linhas de igual pressão) e na identificação de frentes e de sistemas de pressão. Nas cartas de altitude eram traçadas as isoípsas (linhas que unem pontos de igual altitude em cartas de pressão constante) em diferentes níveis isobáricos. Com as cartas já traçadas procedia-se então à elaboração dos prognósticos de superfície e de altitude. Nos de superfície assinalavam-se as zonas de tempo significativo previsto e nos de altitude as correntes de jato, zonas de turbulência, zonas de formação de gelo nas nuvens, etc. Com base nestas cartas eram feitas as previsões não só para fins gerais mas também para as atividades marítimas e aeronáuticas.

Na década de 1970 e parte da de 1980 todo este trabalho era feito manualmente. Cópias dos prognósticos de altitude e de tempo significativo eram entregues às tripulações dos aviões que partiam dos aeroportos nacionais. O trabalho era de grande valor económico, principalmente no que se referia à informação para a aviação, na medida em que os planos de voo, elaborados pelos operadores das várias companhias de aviação, eram feitos com base nesses prognósticos. As rotas eram traçadas de modo a que as aeronaves evitassem zonas de maior perigosidade, se afastassem de ventos fortes contrários e aproveitassem ventos favoráveis a fim de encurtarem o tempo de viagem. Por exemplo, nos percursos de Lisboa para a América do Norte, os planos de voo permitiam que as aeronaves se distanciassem das correntes de jato, zonas de ventos muito fortes com forte componente oeste, e aproveitassem essas mesmas correntes no percurso inverso. A quantidade de combustível e o peso da carga eram calculados em função das condições meteorológicas previstas no aeródromo de partida e em rota.

Desde meados dos anos oitenta do século passado o trabalho manual foi a pouco a pouco sendo substituído por produtos gerados por computadores, o que permitiu libertar os meteorologistas para outras tarefas e reduzir o pessoal nos centros de análise e de previsão do tempo. Graças aos modelos físico-matemáticos usados atualmente e aos satélites meteorológicos, as previsões são feitas para períodos mais alargados e a fiabilidade aumentou significativamente. Perdeu-se, no entanto, a prática que consistia na aplicação de um conjunto de regras que permitiam os meteorologistas decidirem sobre a evolução dos fenómenos utilizando, além de dados objetivos, uma certa subjetividade baseada nos conhecimentos adquiridos ao longo de muitos anos de prática.

Voltando ao telefonema do Luís, segui o seu conselho e consultei o website por ele sugerido, e de facto o aspeto do ciclone, designado por Idai, era verdadeiramente ameaçador. Acedi a outras páginas da Internet e constatei que os resultados de diferentes modelos não diferiam muito uns dos outros. Liguei-lhe então:

– Tens razão, a situação é preocupante. Se a previsão se concretizar vai haver uma grande tragédia em Moçambique.
– É verdade. Será que tens alguém conhecido ligado a Moçambique com quem possas contactar no sentido de alertares para a situação?

Na verdade, as comunicações em África nem sempre funcionam bem, o que poderia implicar um não acompanhamento eficiente da evolução do ciclone por parte dos meteorologistas moçambicanos. Além disso, a troca de impressões entre meteorologistas de países diferentes pode ajudar a clarificar situações. Com base nestes pressupostos e atendendo a que estive várias vezes em Moçambique em missões de treino meteorológico, seria lógico, no pensamento do Luís, que eu mantivesse alguns contactos. Mas como a última missão a Moçambique fora em 2002, já havia perdido os contactos com os técnicos com quem lá trabalhara.

Lembrei-me de telefonar ao Sérgio Ferreira, luso-moçambicano que desempenhou durante alguns anos as funções de diretor do Instituto Nacional de Meteorologia de Moçambique (INAM). Não seria de estranhar que mantivesse contactos mas, por estar desligado do INAM há já muitos anos, não me pôde dar quaisquer indicações. No entanto comentou que a sua experiência como meteorologista em Moçambique lhe permitia afirmar que as trajetórias dos ciclones no Canal de Moçambique são bastante erráticas, o que torna difícil a sua previsão.

Consultei então o website do INAM, onde constatei que os meteorologistas moçambicanos estavam a par da evolução do Idai e, nos boletins emitidos, já estavam a alertar para a aproximação do ciclone e das suas possíveis consequências. Passados alguns dias a preocupação concretizou-se e o Idai atingiu violentamente Moçambique, entrando no país durante a noite de 14 para 15 de março. Curiosamente esta foi a segunda vez que atingiu terra firme em Moçambique, pois alguns dias antes a depressão tropical que lhe dera origem, e que se formara no Canal de Moçambique, já atingira a costa próximo de Quelimane, na província da Zambézia.

Nesta sua primeira investida, ao entrar no continente enfraqueceu, progrediu inicialmente para oeste e depois para norte. Atingiu o Malawi, retornando em seguida para leste, entrando de novo no Canal de Moçambique. Ao chegar próximo de Madagáscar inverteu o movimento, que passou a ser de novo em direção ao continente, mas mais a sul. Estando a temperatura da superfície do mar muito elevada, a depressão intensificou, atingido progressivamente as categorias de tempestade tropical, ciclone tropical moderado, reentrando em Moçambique perto da cidade da Beira já como ciclone tropical severo, com ventos persistentes de cerca de 190 km/h, com rajadas superiores a 200 km/h, afetando gravemente as províncias de Sofala, Manica, Zambézia, Tete e Inhambane.

A cidade da Beira, capital da província de Sofala, construída numa zona pantanosa e parcialmente abaixo do nível do mar, parecia ter sido alvo de bombardeamento, tal foi o grau de destruição.

Segundo a agência Lusa e a Rádio Moçambique, o Secretário-Geral da Organização Meteorológica Mundial (OMM), Petteri Taalas, referiu-se ao bom trabalho que o INAM fez no que se refere à previsão da evolução do ciclone, mas comentou que os meios para evacuar as áreas de risco foram insuficientes. Comparou ainda o ciclone Idai com o furacão Harvey que em agosto de 2017 atingiu o estado do Texas, nos Estados Unidos da América, na medida em que ambos chegaram a ter a categoria 4 da escala de Saffir–Simpson, que vai de 1 a 5. Em ambos os casos foram emitidos atempadamente avisos mas, enquanto as vítimas mortais nos EUA foram 82, em Moçambique atingiram um número próximo de mil. Comentou ainda que a grande diferença consistiu no facto de nos EUA as pessoas terem saído das áreas de risco nos seus carros, enquanto que em Moçambique não havia meios para retirar milhões de pessoas.

Numa reportagem da RTP, o jornalista Pedro Martins relatou que habitantes de uma aldeia desaparecida se salvaram graças a uma vala designada por “Vala do Moura”, construída por um português com aquele apelido. Pressuponho que se refugiaram numa zona do terreno mais elevada formada pela terra removida aquando da construção da vala. Lembrei-me então que no Bangladesh, país frequentemente afetado por cheias provocadas por ciclones ou outras situações meteorológicas, são construídas elevações de terreno estrategicamente distribuídas, com abrigos onde se refugiam habitantes e animais nas vastas zonas frequentemente inundadas. Seria útil as autoridades de Moçambique inteirarem-se do conteúdo do chamado Programa de Preparação para Ciclones (em inglês Cyclone Preparedness Programme – CPP) adotado desde 1973 pelo Bangladesh, onde se poderiam inspirar em medidas tomadas naquele país para mitigar as consequências dos ciclones. Este programa foi desenvolvido sob os auspícios do Governo e do Crescente Vermelho de Bangladesh e, graças a ele, centenas de milhares de vidas têm vindo a ser salvas. Consta essencialmente de medidas relacionadas com avisos, alertas, abrigos, primeiros socorros, evacuação, busca e salvamento, distribuição de meios de subsistência e atividades de reabilitação e recuperação.

A violência do ciclone Idai foi comparável à que caracterizou o que ocorreu nas em 1892 nas Ilhas Maurícias, atualmente República das Maurícias, que provocou pelo menos 1200 mortos.

Os países têm muito a aprender uns com os outros e a cooperação internacional é um fator primordial para promover esse intercâmbio. A OMM está a preparar uma missão de avaliação do impacto do ciclone e outras agências especializadas das Nações Unidas e ONGs estão já em ação.
Vem este texto a propósito da consciência profissional de alguém sempre pronto a alertar sobre fenómenos meteorológicos gravosos e, de passagem, para relembrar o tempo não muito longínquo da meteorologia sem computadores. Entretanto, nunca é demais alertar para facto de que as alterações climáticas são uma realidade, e os desastres naturais de carácter meteorológico poderão aumentar de intensidade e, eventualmente, de frequência.

*O autor escreve ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico

2 Mai 2019

Tempo, clima, aquecimento global e …menopausa

[dropcap]É[/dropcap] frequente a confusão entre “tempo” e “clima”, no entanto são conceitos totalmente diferentes. “Tempo” refere-se às condições meteorológicas que ocorrem num dado momento ou num período relativamente curto. Quando falamos de clima já nos estamos a referir aos valores médios das variáveis meteorológicas (temperatura do ar, pressão atmosférica, humidade, nebulosidade, visibilidade, vento, etc.) referentes a um período longo. Assim, por exemplo, ao afirmar que neste momento está muito calor e a chover em Macau ou que em

Pequim está muito frio, estamos a referir-nos ao tempo. Por outro lado, se dissermos que Macau é uma cidade sujeita ao regime de monções e que é caracterizada pelo facto de o ar ser geralmente muito quente e húmido nos meses de maio a setembro, já nos estamos a referir ao seu clima.

São de tal maneira diferentes estes dois conceitos que para caracterizar o tempo basta conhecer os valores das variáveis meteorológicas num determinado momento, enquanto que para caracterizar o clima são necessários valores médios desses parâmetros referentes pelo menos a… trinta anos!

Trinta anos é o período mínimo preconizado pela Organização Meteorológica Mundial, agência especializada das Nações Unidas, para caracterizar as condições meteorológicas médias de uma determinada região ou local.

Não é raro ver-se escrito ou ouvir-se em alguns meios de comunicação social que, por exemplo, não se realizou um determinado evento ao ar livre devido às “condições climatéricas”. Esta expressão está de tal maneira arreigada na linguagem corrente que é também frequentemente usada por altos dirigentes do Estado. Nem sequer se recorre ao termo “climáticas” em vez de “climatéricas”, o que seria mais elegante, apesar de continuar a ser errado o seu uso naquelas circunstâncias. Não há nenhum profissional das áreas da meteorologia e da climatologia que utilizem o termo “climatérico” em vez de “climático”, embora alguns dicionários classifiquem estas palavras como sinónimas. Além de que o termo “climatérico” se pode prestar a confusão, pois designa-se por “climatério” o conjunto de sintomas que surgem antes e depois da menopausa.

Corre-se o risco de se querer referir ao tempo e acabar-se por falar em… menopausa!

Ainda a propósito de tempo e clima, foi muito comentada a nível mundial a seguinte mensagem através do “Twitter” do Presidente dos EUA, Donald Trump:

Donald J. Trump‏Verified account @realDonaldTrump
In the beautiful Midwest, windchill temperatures are reaching minus 60 degrees, the coldest ever recorded. In coming days, expected to get even colder. People can’t last outside even for minutes. What the hell is going on with Global Waming? Please come back fast, we need you!
6:28 PM – 28 Jan 2019

Trump faz referência a um acontecimento meteorológico que consiste no deslocamento para latitudes mais baixas de uma massa de ar ártico muito frio, que circula numa vasta região depressionária, designada por vórtice polar, que permanece quase estacionária na região polar, no hemisfério norte. No inverno passado ocorreu uma destas migrações de ar ártico, o que afetou os Estados Unidos da América durante alguns dias, período em que as condições meteorológicas foram caracterizadas por valores da temperatura do ar extremamente baixas. O que Trump não sabe é que esses valores da temperatura aparecerão completamente diluídos nos tais pelo menos trinta anos que são necessários para caracterizar o clima! No entanto, cético como é sobre o aquecimento global, não perde a oportunidade para criticar o que milhares de cientistas em todo o mundo já aceitaram como verdadeiro.

Mas… terá Trump razão para duvidar do aquecimento global e, consequentemente, das alterações climáticas causadas pelas atividades humanas? Na realidade não é só ele a duvidar, pois há mesmo alguns cientistas que partilham esta atitude crítica. Um dos argumentos que os detratores do aquecimento global apresentam em sua defesa consiste no facto de que, em muitos casos, o ambiente envolvente das estações meteorológicas se ter degradado devido à expansão das zonas urbanas. É um facto que as cidades ao crescerem, envolvendo as estações meteorológicas que anteriormente se encontravam em áreas não urbanizadas, poderão influenciar os valores da temperatura do ar. É sabido que as grandes cidades constituem verdadeiras ilhas de calor, falseando os valores que a temperatura do ar deveria ter se as estações meteorológicas não sofressem essa influência. No entanto, este argumento não é muito válido na medida em que também é detetado aumento de temperatura nas estações que permaneceram em ambientes rústicos. Vem até mesmo reforçar o que tem vindo a ser afirmado por milhares de investigadores, que o aquecimento a nível global se deve a atividades humanas. Na realidade, a causa principal do aquecimento global é o aumento da concentração dos gases de efeito de estufa provenientes das atividades humanas desde o início da era industrial, ou seja, desde há mais de cento e cinquenta anos.

O conceito de clima é muito mais vasto do que aquele que mencionamos quando comparamos os significados de “tempo” e “clima”. Como afirmam os Professores José Pinto Peixoto e Abraham H. Oort, na obra “Physics of Climate” (publicado em 1992 pelo American Institute of Physics), “the climate is always evolving and it must be regarded as a living entity”.

O autor escreve ao abrigo do novo acordo ortográfico

4 Abr 2019

A propósito do sismo de 28 de Fevereiro de 1969

[dropcap]S[/dropcap]ão poucos os dias em que os meios de comunicação social não nos trazem notícias sobre desastres naturais que ocorrem algures pelo mundo fora. Dentre este tipo de desastres, os de carácter meteorológico são os mais frequentes: tufões no Pacífico Ocidental e Mar do Sul da China, furacões no Atlântico e Pacífico Oriental, ciclones no Índico, frio intenso na América do Norte, vagas de calor na Austrália, incêndios florestais na Europa Meridional, enfim, numerosos títulos inundam com frequência os jornais, as televisões e as redes sociais.

Mesmo Portugal tem sido afetado ultimamente por fenómenos extremos, não usuais, como o furacão Ofélia que, em outubro de 2017, contribuiu grandemente para a intensificação do incêndio florestal que alastrou por vastas áreas do nosso país. Também a tempestade Leslie, que chegou a ser classificada como furacão, afetou o território continental em 13 de outubro de 2018, já como tempestade pós-tropical, causando elevados estragos.

Mais raramente surgem notícias sobre sismos. Quando estes fenómenos naturais acontecem são alvo, durante dias, da difusão de imagens impressionantes de destruição de vastas zonas urbanas, cenas de populações em pânico, deslizamentos de terras, etc. Mas estes acontecimentos caem rapidamente no esquecimento.

É contra este esquecimento que se levou a cabo a evocação do sismo de 28 de fevereiro de 1969, o de maior magnitude que afetou Portugal deste o terramoto do 1º de novembro de 1755 e também o de maior magnitude na Europa desde essa data. Assim, a Sociedade Portuguesa de Engenharia Sísmica (SPES) e a Associação Portuguesa de Meteorologia e Geofísica (APMG) resolveram contrariar a tendência que a sociedade em geral tem para deixar diluir na memória estes fenómenos naturais, tanto mais que Portugal se encontra numa zona do globo onde têm ocorrido sismos de magnitude significativa, principalmente nas regiões localizadas no vale do Tejo e no Algarve, no território continental e, nos Açores, principalmente nas ilhas Terceira, Faial, Pico, São Jorge e São Miguel, as mais povoadas do arquipélago.

A SPES e a APMG escolheram a Fortaleza de Sagres para evocar essa ocorrência de há meio século. A escolha foi intencional, na medida em que se pretendeu, de forma simbólica, estar no local do território nacional mais perto do epicentro do sismo, junto das áreas mais afetadas em termos de vítimas e danos, evidenciando que o risco sísmico existe e é uma realidade.

A presença do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, na sua qualidade de Presidente da República, mobilizou certamente a participação de numerosas entidades, nomeadamente presidentes das câmaras municipais do Algarve e da Junta da Freguesia de Sagres; representantes dos Bastonários das Ordens dos Engenheiros e Engenheiros Técnicos; Presidentes do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, do Laboratório Nacional de Energia e Geologia, do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, do Infraestruturas de Portugal; representantes da Autoridade Nacional de Proteção Civil, do Laboratório Nacional de Energia e Geologia, da Infraestruturas de Portugal e Presidente do Centro Europeu de Riscos Urbanos. E foi de toda a conveniência a presença destas entidades, na medida em que ouviram de viva voz as preocupações dos representantes da SPES e da APMG e do próprio Presidente da República.

Os sismólogos e os geólogos, contrariamente aos meteorologistas, lidam com fenómenos geológicos praticamente imprevisíveis. Enquanto que atualmente se fazem previsões do tempo com elevada fiabilidade para períodos de alguns dias, com recurso a modelos físico-matemáticos, os sismólogos, apesar da investigação mundialmente levada a cabo nas universidades e institutos geofísicos, pouco progresso têm conseguido na previsão de sismos atendendo à complexidade destes fenómenos naturais.

Houve, no passado, quem tentasse ligar a ocorrência de sismos ao estado do tempo, tendo-se mesmo referido numa publicação de 1757, “Advertência aos Modernos que aprendem o Ofício de Pedreiro e Carpinteiro” (escrita pelo mestre pedreiro Valério Martins de Oliveira) que a “terra treme entre as onze e o meio dia, e mais no verão do que no inverno, por causa das exalações e calor do sol”. Mas, claro, tratava-se de conjeturas sem base científica.

No campo científico, muito se tem avançado na identificação e estudo das fontes de geração sísmica, mas pouco no que se refere à sua previsão. A invenção do sismógrafo no século XIX, instrumento que deteta e regista sismos, deu grande ímpeto ao conhecimento dos mecanismos geológicos que despoletam estes fenómenos naturais. Curiosamente o precursor do sismógrafo, o sismoscópio, foi inventado em 132 d.C. pelo astrónomo chinês Zhang Heng, uma réplica do qual se encontra em exposição no Hotel Lisboa, em Macau.

O sismo que ocorreu há cinquenta anos foi despoletado numa zona na junção das placas tectónicas Africana e Euroasiática, cerca de duzentos quilómetros a sudoeste de Sagres. A sua magnitude foi de 7,9 na escala de Richter e a intensidade chegou a atingir no território continental português os graus VII, e em alguns locais VIII, na escala de Mercalli modificada. Note-se que a escala de Richter é usada para fazer referência à magnitude dos sismos, ou seja à energia libertada, enquanto que a Escala de Mercalli se aplica para avaliar as consequências dos sismos, isto é, o grau de destruição causada. Assim, por exemplo, um sismo de elevada magnitude pode ter uma classificação muito baixa em termos de Escala de Mercalli numa região desértica, pela simples razão de que nada ou pouco há a destruir.

Várias localidades algarvias foram grandemente afetadas, como por exemplo as povoações de Vila do Bispo, Bensafrim, Portimão e Castro Marim, onde muitas casas ficaram danificadas. Em Lagos também houve estragos e o lugar de Fonte de Louzeiros, no Concelho de Silves, ficou praticamente em escombros. O número de vítimas foi indeterminado, constando que houve duas vítimas mortais devido a causas diretas e treze por causas indiretas, como ataques cardíacos. Em Marrocos e em Espanha o sismo também se fez sentir.

Próximo do epicentro, no mar, a navegação foi afetada. Segundo o Diário de Lisboa de 1 de março de 1969, o 3º piloto do navio mercante Manuel Alfredo, que navegava próximo do local onde o sismo foi gerado, declarou que “parecia que estávamos a andar por cima de rochas, que o navio subia escadas” e que “se o sismo durasse o dobro teríamos ido para o fundo”.

Com magnitudes inferiores, muitos mais sismos ocorrem no nosso território e nas suas vizinhanças, muitas centenas por ano, na ordem do milhar, na sua esmagadora maioria microssismos apenas detetados pelos sismógrafos. No entanto, tal como resulta das leis estatísticas, mais tarde ou mais cedo ocorrerão outros de maior magnitude.

Pode-se afirmar que o sismo de 1969 foi um “pequeno” sismo quando comparado com o de 1755 e que sismos com magnitude pelo menos igual a este último ocorrerão no futuro, estando identificadas fontes sísmicas capazes de os gerar. É tudo uma questão de tempo.

Não só nos Açores, mas também no Algarve e no vale do Tejo, existem fontes sísmicas locais capazes de gerar sismos que, embora de menor magnitude, ocorrem a muito curta distância das zonas atingidas, pelo que, nessas zonas o grau de destruição será comparavelmente elevado. Sismos como todos os dos Açores e os de Lisboa em 1531, Portimão em 1719, Tavira em 1722, Loulé em 1856 e Benavente em 1909, são exemplos desse outro tipo de sismos que no passado também causaram vítimas e destruição no território nacional.

Os eventos sísmicos de grande magnitude estão também ligados à ocorrência de tsunamis, como aquele que, em 1755, os portugueses sentiram em toda a costa algarvia, em grande parte da costa atlântica e em estuários como o do Tejo. É algo que os portugueses também esqueceram ao ocuparem desregradamente algumas zonas costeiras e estuarinas e, em especial, ao aí colocarem algumas infraestruturas vitais.

O esquecimento, a rejeição e a negação da evidência científica ou a inação perante essa evidência são atitudes que contribuem para nos conduzir ao desastre. O crer que os sismos com potencial destrutivo são fenómenos do passado, ou o acreditar que nada pode ser feito perante a sua ocorrência, ou ainda confiar que estamos suficientemente protegidos são atitudes conducentes à tragédia.

Há que combater estas atitudes e promover a sensibilização dos portugueses, em especial dos que têm capacidade para com as suas decisões e ações mitigar o risco a que estamos expostos.

É necessário o Estado investir mais nos serviços de Geofísica para que se possa intensificar a investigação na área da sismologia tendo em vista um melhor conhecimento das falhas potenciadoras de futuros sismos; dar relevo nos curricula das escolas primárias e secundárias à explicação sobre desastres naturais, com especial realce para os sismos; intensificar as campanhas de informação e de sensibilização dos cidadãos acerca dos riscos e das atitudes a tomar, informando-os sobre os procedimentos adequados em caso de sismo; evitar que os cidadãos, ou as instituições, por ações, ou inações, contribuam para aumentar o risco sísmico a que estão expostos; garantir eficazmente o adequado comportamento das infraestruturas que suportam a nossa vida face aos eventos sísmicos.

É neste contexto que o Estado tem de aperfeiçoar os mecanismos de fiscalização do cumprimento da regulamentação antissísmica que existe em Portugal desde há algumas décadas, mas que na prática não é aplicada com rigor.

Atendendo a que os sismos não se podem evitar, nem prever, há que atenuar as suas consequências. É que se os sismos são inevitáveis, as tragédias podem ser evitáveis.


*O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

7 Mar 2019

Um dia o lobo virá… (Texto a propósito do tufão Hato, do Dr. Fong Soi Kun e da sanção sobre ele decidida)

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[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo subdirector e director dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos de Macau (SMG), no período 1996-1998, ainda com Macau sob administração portuguesa, tive a oportunidade de conhecer o Dr. Fong Soi Kun, que nessa altura desempenhava as funções de diretor adjunto dos SMG.

Mais tarde, de Fevereiro de 2007 a Abril de 2015, durante as minhas funções como Secretário do ESCAP/WMO Typhoon Committee, Fong foi designado o elo de ligação entre o Secretariado do Comité e o governo da RAEM. Tive então a oportunidade de testemunhar a contribuição que Fong teve para o prestígio de Macau na área da Meteorologia junto dos países membros do Comité, tendo sido durante 2007 presidente desta organização intergovernamental. Devido a este prestígio, Macau foi local de importantes eventos internacionais nas áreas da Meteorologia, Hidrologia e Redução de Riscos de Desastres, as três componentes do Comité.

Também se deveu a Fong Soi Kun, coadjuvado pelo então subdirector, António Viseu, a transferência do Secretariado do Comité de Manila para Macau, na sequência de decisão tomada por escrutínio secreto entre os membros desta organização intergovernamental, tendo Macau sido seleccionado pelas condições vantajosas oferecidas pelo Governo da RAEM, com o apoio da China.

No que se refere às acusações de que Fong é alvo devido às consequências do tufão Hato, é de frisar que as previsões meteorológicas, embora baseadas nas ciências Física e Matemática, estão sempre imbuídas de um certo grau de incerteza, o que motiva decisões que posteriormente poderão ser consideradas erradas. A incerteza é tanto maior quanto mais um determinado fenómeno se comporta de maneira anormal. O não levantamento mais cedo dos sinais 8, 9 e 10, no caso do tufão Hato, poderá ser justificados por essa incerteza.

Entre as várias acções em que Fong Soi Kun colaborou como Diretor dos SMG, destaco um evento promovido em 8 de Junho de 2010 pelo Dr. Jorge Morbey, professor da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau, que consistiu num painel sobre “Riscos e Proteção contra Catástrofes Naturais em Macau: o tufão de 22/23 de Setembro de 1874”, que decorreu em Macau no Clube C & C, nos escritórios do Dr. Rui Cunha.

Os organizadores convidaram todas as entidades de Macau relacionadas com questões respeitantes a desastres naturais: Capitania dos Portos; Comité de Tufões; Corpo de Bombeiros; Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro; Direcção dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos; Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes; Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental, Gabinete para o Desenvolvimento de Infraestruturas; Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais; Laboratório de Engenharia Civil de Macau; Protecção Civil.

Destas entidades, apenas três estiveram disponíveis para participar na discussão: os SMG (representados por Fong e a meteorologista Chrystal Chang), o Comité dos Tufões (representado por mim) e o Laboratório de Engenharia Civil de Macau (representado pelo saudoso Eng. Henrique Novais Ferreira e Eng. Tiago Pereira). Uma palestra muito bem concebida sobre o tufão de Setembro de 1874, que recriava a sua formação, aproximação e consequências, foi apresentada pelos SMG. Durante a discussão foram lançadas dúvidas se a RAEM estaria preparada para enfrentar as consequências de um tufão semelhante. A resposta foi dada em 2017 com a passagem do tufão Hato, de menor intensidade.

Alguns dirigentes que foram convidados e não compareceram a esse evento ocupam, actualmente, altos cargos na administração da RAEM.

Apesar de não ser raro, os responsáveis dos Serviços Meteorológicos serem chamados pelos respectivos governos ou assembleias legislativas a aprestarem esclarecimentos sobre previsões relacionadas com eventos meteorológicos gravosos, numa tentativa de dar resposta às pressões pública e mediática, foi com grande surpresa que tomei conhecimento da pesada sanção decidida pelo governo de Macau em relação ao ex-diretor dos SMG, baseada em relatórios elaborados a quente por elementos alheios à meteorologia.

É estranho não ter sido tomado em consideração o relatório de uma equipa de especialistas que incluía meteorologistas, nomeada por entidades governamentais da China (Comissão para a Redução de Desastres, Ministério para os Assuntos Civis e o Gabinete para Assuntos de Hong Kong e Macau), no qual está expresso que o tufão Hato constituiu um fenómeno com evolução difícil de prever, tendo sido caracterizado por extrema anormalidade. A expressão “extrema anormalidade”, usada nesse relatório, reflecte bem a dificuldade da sua previsão. Não se pode prever eficientemente algo de anormal.

Do conhecimento que tenho do Dr. Fong, trata-se de uma pessoa muito discreta mas muito racional, que desempenhou as suas funções com competência e representou condignamente a RAEM em diversos eventos de Meteorologia e de Geofísica, contribuindo para o prestígio de Macau nestas áreas. Teve um grande azar: no fim da sua carreira foi alvo de graves acusações devido a um fenómeno que se comportou de maneira anormal, na medida em que, contrariamente ao que é estatisticamente comprovado, o Hato intensificou ao aproximar-se de terra. Também o mínimo da pressão atmosférica coincidiu com a maré alta, o que implicou a subida do nível do mar junto à costa.

A pesada sanção, que mais parece um assassinato de carácter, constitui uma atitude muito grave de quem decidiu, na medida em cria um clima de medo sobre os que futuramente vão decidir sobre içar ou não um determinado sinal de tufão ou de storm surge. No futuro, em situações de dúvida, é altamente provável que sejam emitidos avisos com maior frequência, o que vai implicar situações de “aí vem o lobo…” tantas vezes repetidas que criarão no público o descrédito na informação meteorológica. O pior é que, um dia, o lobo certamente virá…[/vc_column_text][vc_cta h2=”Post Scriptum” h2_font_container=”font_size:28px|color:%23e83535″ h2_google_fonts=”font_family:Oswald%3A300%2Cregular%2C700|font_style:300%20light%20regular%3A300%3Anormal” shape=”square” style=”flat” use_custom_fonts_h2=”true”]

Depois de ter escrito o texto acima, tomei conhecimento de um artigo científico de especialistas do Tokyo Institute of Technology (Hiroshi Takagi, Yi Xiong e Fumitaka Furukawa) intitulado “Track analysis and storm surge investigation of 2017 Typhoon Hato: were the warning signals issued in Macau and Hong Kong timed appropriately?” em que se menciona “A nossa análise do padrão da tempestade sugere que as decisões das duas regiões relativas à emissão de sinais podem ser consideradas razoáveis ou, pelo menos, não podem ser simplesmente responsabilizadas, dada o rápido movimento e intensificação do Hato e os riscos económicos associados em jogo.” (Our analysis of the storm’s pattern suggests that both regions’ decisions regarding signal issuance could be considered reasonable or at least cannot be simply blamed, given the rapid motion and intensification of Hato and the associated economic risks at stake).

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8 Mai 2018