Olavo Rasquinho VozesConsciência profissional, meteorologia e ciclone Idai [dropcap]C[/dropcap]erca das 15:00 horas do dia 11 de março de 2019, o meu telefone tocou. As palavras poderão não ter sido exatamente estas, mas o sentido foi o que se segue. – Olá, tudo bem contigo? Já viste o que se está a passar no Canal de Moçambique? – Olá Luís, tudo bem? Não, não vi. Do que se trata? – Dá uma olhadela ao website www.windy.com. Verás que Moçambique está a ser ameaçado por um ciclone que aponta para a cidade da Beira. Era o Luís Pinto Coelho, meteorologista aposentado, colega durante dezenas de anos no Serviço Meteorológico Nacional e nas instituições que lhe sucederam, Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica e Instituto de Meteorologia. O Luís sempre se sentiu muito ligado a Moçambique, onde fez serviço militar durante a guerra colonial, tendo também lá trabalhado na área da meteorologia. Durante muitos anos desenvolvemos a nossa atividade profissional, embora em turnos diferentes, no então chamado Centro Meteorológico do Aeroporto de Lisboa. Aí eram marcadas várias vezes por dia, em cartas, os valores das variáveis meteorológicas correspondentes a centenas de estações meteorológicas espalhadas por grande parte do hemisfério norte. Os meteorologistas procediam então à análise, que consistia essencialmente no traçado, nas cartas de superfície, das isóbaras (linhas de igual pressão) e na identificação de frentes e de sistemas de pressão. Nas cartas de altitude eram traçadas as isoípsas (linhas que unem pontos de igual altitude em cartas de pressão constante) em diferentes níveis isobáricos. Com as cartas já traçadas procedia-se então à elaboração dos prognósticos de superfície e de altitude. Nos de superfície assinalavam-se as zonas de tempo significativo previsto e nos de altitude as correntes de jato, zonas de turbulência, zonas de formação de gelo nas nuvens, etc. Com base nestas cartas eram feitas as previsões não só para fins gerais mas também para as atividades marítimas e aeronáuticas. Na década de 1970 e parte da de 1980 todo este trabalho era feito manualmente. Cópias dos prognósticos de altitude e de tempo significativo eram entregues às tripulações dos aviões que partiam dos aeroportos nacionais. O trabalho era de grande valor económico, principalmente no que se referia à informação para a aviação, na medida em que os planos de voo, elaborados pelos operadores das várias companhias de aviação, eram feitos com base nesses prognósticos. As rotas eram traçadas de modo a que as aeronaves evitassem zonas de maior perigosidade, se afastassem de ventos fortes contrários e aproveitassem ventos favoráveis a fim de encurtarem o tempo de viagem. Por exemplo, nos percursos de Lisboa para a América do Norte, os planos de voo permitiam que as aeronaves se distanciassem das correntes de jato, zonas de ventos muito fortes com forte componente oeste, e aproveitassem essas mesmas correntes no percurso inverso. A quantidade de combustível e o peso da carga eram calculados em função das condições meteorológicas previstas no aeródromo de partida e em rota. Desde meados dos anos oitenta do século passado o trabalho manual foi a pouco a pouco sendo substituído por produtos gerados por computadores, o que permitiu libertar os meteorologistas para outras tarefas e reduzir o pessoal nos centros de análise e de previsão do tempo. Graças aos modelos físico-matemáticos usados atualmente e aos satélites meteorológicos, as previsões são feitas para períodos mais alargados e a fiabilidade aumentou significativamente. Perdeu-se, no entanto, a prática que consistia na aplicação de um conjunto de regras que permitiam os meteorologistas decidirem sobre a evolução dos fenómenos utilizando, além de dados objetivos, uma certa subjetividade baseada nos conhecimentos adquiridos ao longo de muitos anos de prática. Voltando ao telefonema do Luís, segui o seu conselho e consultei o website por ele sugerido, e de facto o aspeto do ciclone, designado por Idai, era verdadeiramente ameaçador. Acedi a outras páginas da Internet e constatei que os resultados de diferentes modelos não diferiam muito uns dos outros. Liguei-lhe então: – Tens razão, a situação é preocupante. Se a previsão se concretizar vai haver uma grande tragédia em Moçambique. – É verdade. Será que tens alguém conhecido ligado a Moçambique com quem possas contactar no sentido de alertares para a situação? Na verdade, as comunicações em África nem sempre funcionam bem, o que poderia implicar um não acompanhamento eficiente da evolução do ciclone por parte dos meteorologistas moçambicanos. Além disso, a troca de impressões entre meteorologistas de países diferentes pode ajudar a clarificar situações. Com base nestes pressupostos e atendendo a que estive várias vezes em Moçambique em missões de treino meteorológico, seria lógico, no pensamento do Luís, que eu mantivesse alguns contactos. Mas como a última missão a Moçambique fora em 2002, já havia perdido os contactos com os técnicos com quem lá trabalhara. Lembrei-me de telefonar ao Sérgio Ferreira, luso-moçambicano que desempenhou durante alguns anos as funções de diretor do Instituto Nacional de Meteorologia de Moçambique (INAM). Não seria de estranhar que mantivesse contactos mas, por estar desligado do INAM há já muitos anos, não me pôde dar quaisquer indicações. No entanto comentou que a sua experiência como meteorologista em Moçambique lhe permitia afirmar que as trajetórias dos ciclones no Canal de Moçambique são bastante erráticas, o que torna difícil a sua previsão. Consultei então o website do INAM, onde constatei que os meteorologistas moçambicanos estavam a par da evolução do Idai e, nos boletins emitidos, já estavam a alertar para a aproximação do ciclone e das suas possíveis consequências. Passados alguns dias a preocupação concretizou-se e o Idai atingiu violentamente Moçambique, entrando no país durante a noite de 14 para 15 de março. Curiosamente esta foi a segunda vez que atingiu terra firme em Moçambique, pois alguns dias antes a depressão tropical que lhe dera origem, e que se formara no Canal de Moçambique, já atingira a costa próximo de Quelimane, na província da Zambézia. Nesta sua primeira investida, ao entrar no continente enfraqueceu, progrediu inicialmente para oeste e depois para norte. Atingiu o Malawi, retornando em seguida para leste, entrando de novo no Canal de Moçambique. Ao chegar próximo de Madagáscar inverteu o movimento, que passou a ser de novo em direção ao continente, mas mais a sul. Estando a temperatura da superfície do mar muito elevada, a depressão intensificou, atingido progressivamente as categorias de tempestade tropical, ciclone tropical moderado, reentrando em Moçambique perto da cidade da Beira já como ciclone tropical severo, com ventos persistentes de cerca de 190 km/h, com rajadas superiores a 200 km/h, afetando gravemente as províncias de Sofala, Manica, Zambézia, Tete e Inhambane. A cidade da Beira, capital da província de Sofala, construída numa zona pantanosa e parcialmente abaixo do nível do mar, parecia ter sido alvo de bombardeamento, tal foi o grau de destruição. Segundo a agência Lusa e a Rádio Moçambique, o Secretário-Geral da Organização Meteorológica Mundial (OMM), Petteri Taalas, referiu-se ao bom trabalho que o INAM fez no que se refere à previsão da evolução do ciclone, mas comentou que os meios para evacuar as áreas de risco foram insuficientes. Comparou ainda o ciclone Idai com o furacão Harvey que em agosto de 2017 atingiu o estado do Texas, nos Estados Unidos da América, na medida em que ambos chegaram a ter a categoria 4 da escala de Saffir–Simpson, que vai de 1 a 5. Em ambos os casos foram emitidos atempadamente avisos mas, enquanto as vítimas mortais nos EUA foram 82, em Moçambique atingiram um número próximo de mil. Comentou ainda que a grande diferença consistiu no facto de nos EUA as pessoas terem saído das áreas de risco nos seus carros, enquanto que em Moçambique não havia meios para retirar milhões de pessoas. Numa reportagem da RTP, o jornalista Pedro Martins relatou que habitantes de uma aldeia desaparecida se salvaram graças a uma vala designada por “Vala do Moura”, construída por um português com aquele apelido. Pressuponho que se refugiaram numa zona do terreno mais elevada formada pela terra removida aquando da construção da vala. Lembrei-me então que no Bangladesh, país frequentemente afetado por cheias provocadas por ciclones ou outras situações meteorológicas, são construídas elevações de terreno estrategicamente distribuídas, com abrigos onde se refugiam habitantes e animais nas vastas zonas frequentemente inundadas. Seria útil as autoridades de Moçambique inteirarem-se do conteúdo do chamado Programa de Preparação para Ciclones (em inglês Cyclone Preparedness Programme – CPP) adotado desde 1973 pelo Bangladesh, onde se poderiam inspirar em medidas tomadas naquele país para mitigar as consequências dos ciclones. Este programa foi desenvolvido sob os auspícios do Governo e do Crescente Vermelho de Bangladesh e, graças a ele, centenas de milhares de vidas têm vindo a ser salvas. Consta essencialmente de medidas relacionadas com avisos, alertas, abrigos, primeiros socorros, evacuação, busca e salvamento, distribuição de meios de subsistência e atividades de reabilitação e recuperação. A violência do ciclone Idai foi comparável à que caracterizou o que ocorreu nas em 1892 nas Ilhas Maurícias, atualmente República das Maurícias, que provocou pelo menos 1200 mortos. Os países têm muito a aprender uns com os outros e a cooperação internacional é um fator primordial para promover esse intercâmbio. A OMM está a preparar uma missão de avaliação do impacto do ciclone e outras agências especializadas das Nações Unidas e ONGs estão já em ação. Vem este texto a propósito da consciência profissional de alguém sempre pronto a alertar sobre fenómenos meteorológicos gravosos e, de passagem, para relembrar o tempo não muito longínquo da meteorologia sem computadores. Entretanto, nunca é demais alertar para facto de que as alterações climáticas são uma realidade, e os desastres naturais de carácter meteorológico poderão aumentar de intensidade e, eventualmente, de frequência. *O autor escreve ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico
Olavo Rasquinho VozesTempo, clima, aquecimento global e …menopausa [dropcap]É[/dropcap] frequente a confusão entre “tempo” e “clima”, no entanto são conceitos totalmente diferentes. “Tempo” refere-se às condições meteorológicas que ocorrem num dado momento ou num período relativamente curto. Quando falamos de clima já nos estamos a referir aos valores médios das variáveis meteorológicas (temperatura do ar, pressão atmosférica, humidade, nebulosidade, visibilidade, vento, etc.) referentes a um período longo. Assim, por exemplo, ao afirmar que neste momento está muito calor e a chover em Macau ou que em Pequim está muito frio, estamos a referir-nos ao tempo. Por outro lado, se dissermos que Macau é uma cidade sujeita ao regime de monções e que é caracterizada pelo facto de o ar ser geralmente muito quente e húmido nos meses de maio a setembro, já nos estamos a referir ao seu clima. São de tal maneira diferentes estes dois conceitos que para caracterizar o tempo basta conhecer os valores das variáveis meteorológicas num determinado momento, enquanto que para caracterizar o clima são necessários valores médios desses parâmetros referentes pelo menos a… trinta anos! Trinta anos é o período mínimo preconizado pela Organização Meteorológica Mundial, agência especializada das Nações Unidas, para caracterizar as condições meteorológicas médias de uma determinada região ou local. Não é raro ver-se escrito ou ouvir-se em alguns meios de comunicação social que, por exemplo, não se realizou um determinado evento ao ar livre devido às “condições climatéricas”. Esta expressão está de tal maneira arreigada na linguagem corrente que é também frequentemente usada por altos dirigentes do Estado. Nem sequer se recorre ao termo “climáticas” em vez de “climatéricas”, o que seria mais elegante, apesar de continuar a ser errado o seu uso naquelas circunstâncias. Não há nenhum profissional das áreas da meteorologia e da climatologia que utilizem o termo “climatérico” em vez de “climático”, embora alguns dicionários classifiquem estas palavras como sinónimas. Além de que o termo “climatérico” se pode prestar a confusão, pois designa-se por “climatério” o conjunto de sintomas que surgem antes e depois da menopausa. Corre-se o risco de se querer referir ao tempo e acabar-se por falar em… menopausa! Ainda a propósito de tempo e clima, foi muito comentada a nível mundial a seguinte mensagem através do “Twitter” do Presidente dos EUA, Donald Trump: Donald J. TrumpVerified account @realDonaldTrump In the beautiful Midwest, windchill temperatures are reaching minus 60 degrees, the coldest ever recorded. In coming days, expected to get even colder. People can’t last outside even for minutes. What the hell is going on with Global Waming? Please come back fast, we need you! 6:28 PM – 28 Jan 2019 Trump faz referência a um acontecimento meteorológico que consiste no deslocamento para latitudes mais baixas de uma massa de ar ártico muito frio, que circula numa vasta região depressionária, designada por vórtice polar, que permanece quase estacionária na região polar, no hemisfério norte. No inverno passado ocorreu uma destas migrações de ar ártico, o que afetou os Estados Unidos da América durante alguns dias, período em que as condições meteorológicas foram caracterizadas por valores da temperatura do ar extremamente baixas. O que Trump não sabe é que esses valores da temperatura aparecerão completamente diluídos nos tais pelo menos trinta anos que são necessários para caracterizar o clima! No entanto, cético como é sobre o aquecimento global, não perde a oportunidade para criticar o que milhares de cientistas em todo o mundo já aceitaram como verdadeiro. Mas… terá Trump razão para duvidar do aquecimento global e, consequentemente, das alterações climáticas causadas pelas atividades humanas? Na realidade não é só ele a duvidar, pois há mesmo alguns cientistas que partilham esta atitude crítica. Um dos argumentos que os detratores do aquecimento global apresentam em sua defesa consiste no facto de que, em muitos casos, o ambiente envolvente das estações meteorológicas se ter degradado devido à expansão das zonas urbanas. É um facto que as cidades ao crescerem, envolvendo as estações meteorológicas que anteriormente se encontravam em áreas não urbanizadas, poderão influenciar os valores da temperatura do ar. É sabido que as grandes cidades constituem verdadeiras ilhas de calor, falseando os valores que a temperatura do ar deveria ter se as estações meteorológicas não sofressem essa influência. No entanto, este argumento não é muito válido na medida em que também é detetado aumento de temperatura nas estações que permaneceram em ambientes rústicos. Vem até mesmo reforçar o que tem vindo a ser afirmado por milhares de investigadores, que o aquecimento a nível global se deve a atividades humanas. Na realidade, a causa principal do aquecimento global é o aumento da concentração dos gases de efeito de estufa provenientes das atividades humanas desde o início da era industrial, ou seja, desde há mais de cento e cinquenta anos. O conceito de clima é muito mais vasto do que aquele que mencionamos quando comparamos os significados de “tempo” e “clima”. Como afirmam os Professores José Pinto Peixoto e Abraham H. Oort, na obra “Physics of Climate” (publicado em 1992 pelo American Institute of Physics), “the climate is always evolving and it must be regarded as a living entity”. O autor escreve ao abrigo do novo acordo ortográfico
Olavo Rasquinho VozesA propósito do sismo de 28 de Fevereiro de 1969 [dropcap]S[/dropcap]ão poucos os dias em que os meios de comunicação social não nos trazem notícias sobre desastres naturais que ocorrem algures pelo mundo fora. Dentre este tipo de desastres, os de carácter meteorológico são os mais frequentes: tufões no Pacífico Ocidental e Mar do Sul da China, furacões no Atlântico e Pacífico Oriental, ciclones no Índico, frio intenso na América do Norte, vagas de calor na Austrália, incêndios florestais na Europa Meridional, enfim, numerosos títulos inundam com frequência os jornais, as televisões e as redes sociais. Mesmo Portugal tem sido afetado ultimamente por fenómenos extremos, não usuais, como o furacão Ofélia que, em outubro de 2017, contribuiu grandemente para a intensificação do incêndio florestal que alastrou por vastas áreas do nosso país. Também a tempestade Leslie, que chegou a ser classificada como furacão, afetou o território continental em 13 de outubro de 2018, já como tempestade pós-tropical, causando elevados estragos. Mais raramente surgem notícias sobre sismos. Quando estes fenómenos naturais acontecem são alvo, durante dias, da difusão de imagens impressionantes de destruição de vastas zonas urbanas, cenas de populações em pânico, deslizamentos de terras, etc. Mas estes acontecimentos caem rapidamente no esquecimento. É contra este esquecimento que se levou a cabo a evocação do sismo de 28 de fevereiro de 1969, o de maior magnitude que afetou Portugal deste o terramoto do 1º de novembro de 1755 e também o de maior magnitude na Europa desde essa data. Assim, a Sociedade Portuguesa de Engenharia Sísmica (SPES) e a Associação Portuguesa de Meteorologia e Geofísica (APMG) resolveram contrariar a tendência que a sociedade em geral tem para deixar diluir na memória estes fenómenos naturais, tanto mais que Portugal se encontra numa zona do globo onde têm ocorrido sismos de magnitude significativa, principalmente nas regiões localizadas no vale do Tejo e no Algarve, no território continental e, nos Açores, principalmente nas ilhas Terceira, Faial, Pico, São Jorge e São Miguel, as mais povoadas do arquipélago. A SPES e a APMG escolheram a Fortaleza de Sagres para evocar essa ocorrência de há meio século. A escolha foi intencional, na medida em que se pretendeu, de forma simbólica, estar no local do território nacional mais perto do epicentro do sismo, junto das áreas mais afetadas em termos de vítimas e danos, evidenciando que o risco sísmico existe e é uma realidade. A presença do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, na sua qualidade de Presidente da República, mobilizou certamente a participação de numerosas entidades, nomeadamente presidentes das câmaras municipais do Algarve e da Junta da Freguesia de Sagres; representantes dos Bastonários das Ordens dos Engenheiros e Engenheiros Técnicos; Presidentes do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, do Laboratório Nacional de Energia e Geologia, do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, do Infraestruturas de Portugal; representantes da Autoridade Nacional de Proteção Civil, do Laboratório Nacional de Energia e Geologia, da Infraestruturas de Portugal e Presidente do Centro Europeu de Riscos Urbanos. E foi de toda a conveniência a presença destas entidades, na medida em que ouviram de viva voz as preocupações dos representantes da SPES e da APMG e do próprio Presidente da República. Os sismólogos e os geólogos, contrariamente aos meteorologistas, lidam com fenómenos geológicos praticamente imprevisíveis. Enquanto que atualmente se fazem previsões do tempo com elevada fiabilidade para períodos de alguns dias, com recurso a modelos físico-matemáticos, os sismólogos, apesar da investigação mundialmente levada a cabo nas universidades e institutos geofísicos, pouco progresso têm conseguido na previsão de sismos atendendo à complexidade destes fenómenos naturais. Houve, no passado, quem tentasse ligar a ocorrência de sismos ao estado do tempo, tendo-se mesmo referido numa publicação de 1757, “Advertência aos Modernos que aprendem o Ofício de Pedreiro e Carpinteiro” (escrita pelo mestre pedreiro Valério Martins de Oliveira) que a “terra treme entre as onze e o meio dia, e mais no verão do que no inverno, por causa das exalações e calor do sol”. Mas, claro, tratava-se de conjeturas sem base científica. No campo científico, muito se tem avançado na identificação e estudo das fontes de geração sísmica, mas pouco no que se refere à sua previsão. A invenção do sismógrafo no século XIX, instrumento que deteta e regista sismos, deu grande ímpeto ao conhecimento dos mecanismos geológicos que despoletam estes fenómenos naturais. Curiosamente o precursor do sismógrafo, o sismoscópio, foi inventado em 132 d.C. pelo astrónomo chinês Zhang Heng, uma réplica do qual se encontra em exposição no Hotel Lisboa, em Macau. O sismo que ocorreu há cinquenta anos foi despoletado numa zona na junção das placas tectónicas Africana e Euroasiática, cerca de duzentos quilómetros a sudoeste de Sagres. A sua magnitude foi de 7,9 na escala de Richter e a intensidade chegou a atingir no território continental português os graus VII, e em alguns locais VIII, na escala de Mercalli modificada. Note-se que a escala de Richter é usada para fazer referência à magnitude dos sismos, ou seja à energia libertada, enquanto que a Escala de Mercalli se aplica para avaliar as consequências dos sismos, isto é, o grau de destruição causada. Assim, por exemplo, um sismo de elevada magnitude pode ter uma classificação muito baixa em termos de Escala de Mercalli numa região desértica, pela simples razão de que nada ou pouco há a destruir. Várias localidades algarvias foram grandemente afetadas, como por exemplo as povoações de Vila do Bispo, Bensafrim, Portimão e Castro Marim, onde muitas casas ficaram danificadas. Em Lagos também houve estragos e o lugar de Fonte de Louzeiros, no Concelho de Silves, ficou praticamente em escombros. O número de vítimas foi indeterminado, constando que houve duas vítimas mortais devido a causas diretas e treze por causas indiretas, como ataques cardíacos. Em Marrocos e em Espanha o sismo também se fez sentir. Próximo do epicentro, no mar, a navegação foi afetada. Segundo o Diário de Lisboa de 1 de março de 1969, o 3º piloto do navio mercante Manuel Alfredo, que navegava próximo do local onde o sismo foi gerado, declarou que “parecia que estávamos a andar por cima de rochas, que o navio subia escadas” e que “se o sismo durasse o dobro teríamos ido para o fundo”. Com magnitudes inferiores, muitos mais sismos ocorrem no nosso território e nas suas vizinhanças, muitas centenas por ano, na ordem do milhar, na sua esmagadora maioria microssismos apenas detetados pelos sismógrafos. No entanto, tal como resulta das leis estatísticas, mais tarde ou mais cedo ocorrerão outros de maior magnitude. Pode-se afirmar que o sismo de 1969 foi um “pequeno” sismo quando comparado com o de 1755 e que sismos com magnitude pelo menos igual a este último ocorrerão no futuro, estando identificadas fontes sísmicas capazes de os gerar. É tudo uma questão de tempo. Não só nos Açores, mas também no Algarve e no vale do Tejo, existem fontes sísmicas locais capazes de gerar sismos que, embora de menor magnitude, ocorrem a muito curta distância das zonas atingidas, pelo que, nessas zonas o grau de destruição será comparavelmente elevado. Sismos como todos os dos Açores e os de Lisboa em 1531, Portimão em 1719, Tavira em 1722, Loulé em 1856 e Benavente em 1909, são exemplos desse outro tipo de sismos que no passado também causaram vítimas e destruição no território nacional. Os eventos sísmicos de grande magnitude estão também ligados à ocorrência de tsunamis, como aquele que, em 1755, os portugueses sentiram em toda a costa algarvia, em grande parte da costa atlântica e em estuários como o do Tejo. É algo que os portugueses também esqueceram ao ocuparem desregradamente algumas zonas costeiras e estuarinas e, em especial, ao aí colocarem algumas infraestruturas vitais. O esquecimento, a rejeição e a negação da evidência científica ou a inação perante essa evidência são atitudes que contribuem para nos conduzir ao desastre. O crer que os sismos com potencial destrutivo são fenómenos do passado, ou o acreditar que nada pode ser feito perante a sua ocorrência, ou ainda confiar que estamos suficientemente protegidos são atitudes conducentes à tragédia. Há que combater estas atitudes e promover a sensibilização dos portugueses, em especial dos que têm capacidade para com as suas decisões e ações mitigar o risco a que estamos expostos. É necessário o Estado investir mais nos serviços de Geofísica para que se possa intensificar a investigação na área da sismologia tendo em vista um melhor conhecimento das falhas potenciadoras de futuros sismos; dar relevo nos curricula das escolas primárias e secundárias à explicação sobre desastres naturais, com especial realce para os sismos; intensificar as campanhas de informação e de sensibilização dos cidadãos acerca dos riscos e das atitudes a tomar, informando-os sobre os procedimentos adequados em caso de sismo; evitar que os cidadãos, ou as instituições, por ações, ou inações, contribuam para aumentar o risco sísmico a que estão expostos; garantir eficazmente o adequado comportamento das infraestruturas que suportam a nossa vida face aos eventos sísmicos. É neste contexto que o Estado tem de aperfeiçoar os mecanismos de fiscalização do cumprimento da regulamentação antissísmica que existe em Portugal desde há algumas décadas, mas que na prática não é aplicada com rigor. Atendendo a que os sismos não se podem evitar, nem prever, há que atenuar as suas consequências. É que se os sismos são inevitáveis, as tragédias podem ser evitáveis. *O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Olavo Rasquinho VozesUm dia o lobo virá… (Texto a propósito do tufão Hato, do Dr. Fong Soi Kun e da sanção sobre ele decidida) [vc_row][vc_column][vc_column_text] [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo subdirector e director dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos de Macau (SMG), no período 1996-1998, ainda com Macau sob administração portuguesa, tive a oportunidade de conhecer o Dr. Fong Soi Kun, que nessa altura desempenhava as funções de diretor adjunto dos SMG. Mais tarde, de Fevereiro de 2007 a Abril de 2015, durante as minhas funções como Secretário do ESCAP/WMO Typhoon Committee, Fong foi designado o elo de ligação entre o Secretariado do Comité e o governo da RAEM. Tive então a oportunidade de testemunhar a contribuição que Fong teve para o prestígio de Macau na área da Meteorologia junto dos países membros do Comité, tendo sido durante 2007 presidente desta organização intergovernamental. Devido a este prestígio, Macau foi local de importantes eventos internacionais nas áreas da Meteorologia, Hidrologia e Redução de Riscos de Desastres, as três componentes do Comité. Também se deveu a Fong Soi Kun, coadjuvado pelo então subdirector, António Viseu, a transferência do Secretariado do Comité de Manila para Macau, na sequência de decisão tomada por escrutínio secreto entre os membros desta organização intergovernamental, tendo Macau sido seleccionado pelas condições vantajosas oferecidas pelo Governo da RAEM, com o apoio da China. No que se refere às acusações de que Fong é alvo devido às consequências do tufão Hato, é de frisar que as previsões meteorológicas, embora baseadas nas ciências Física e Matemática, estão sempre imbuídas de um certo grau de incerteza, o que motiva decisões que posteriormente poderão ser consideradas erradas. A incerteza é tanto maior quanto mais um determinado fenómeno se comporta de maneira anormal. O não levantamento mais cedo dos sinais 8, 9 e 10, no caso do tufão Hato, poderá ser justificados por essa incerteza. Entre as várias acções em que Fong Soi Kun colaborou como Diretor dos SMG, destaco um evento promovido em 8 de Junho de 2010 pelo Dr. Jorge Morbey, professor da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau, que consistiu num painel sobre “Riscos e Proteção contra Catástrofes Naturais em Macau: o tufão de 22/23 de Setembro de 1874”, que decorreu em Macau no Clube C & C, nos escritórios do Dr. Rui Cunha. Os organizadores convidaram todas as entidades de Macau relacionadas com questões respeitantes a desastres naturais: Capitania dos Portos; Comité de Tufões; Corpo de Bombeiros; Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro; Direcção dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos; Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes; Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental, Gabinete para o Desenvolvimento de Infraestruturas; Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais; Laboratório de Engenharia Civil de Macau; Protecção Civil. Destas entidades, apenas três estiveram disponíveis para participar na discussão: os SMG (representados por Fong e a meteorologista Chrystal Chang), o Comité dos Tufões (representado por mim) e o Laboratório de Engenharia Civil de Macau (representado pelo saudoso Eng. Henrique Novais Ferreira e Eng. Tiago Pereira). Uma palestra muito bem concebida sobre o tufão de Setembro de 1874, que recriava a sua formação, aproximação e consequências, foi apresentada pelos SMG. Durante a discussão foram lançadas dúvidas se a RAEM estaria preparada para enfrentar as consequências de um tufão semelhante. A resposta foi dada em 2017 com a passagem do tufão Hato, de menor intensidade. Alguns dirigentes que foram convidados e não compareceram a esse evento ocupam, actualmente, altos cargos na administração da RAEM. Apesar de não ser raro, os responsáveis dos Serviços Meteorológicos serem chamados pelos respectivos governos ou assembleias legislativas a aprestarem esclarecimentos sobre previsões relacionadas com eventos meteorológicos gravosos, numa tentativa de dar resposta às pressões pública e mediática, foi com grande surpresa que tomei conhecimento da pesada sanção decidida pelo governo de Macau em relação ao ex-diretor dos SMG, baseada em relatórios elaborados a quente por elementos alheios à meteorologia. É estranho não ter sido tomado em consideração o relatório de uma equipa de especialistas que incluía meteorologistas, nomeada por entidades governamentais da China (Comissão para a Redução de Desastres, Ministério para os Assuntos Civis e o Gabinete para Assuntos de Hong Kong e Macau), no qual está expresso que o tufão Hato constituiu um fenómeno com evolução difícil de prever, tendo sido caracterizado por extrema anormalidade. A expressão “extrema anormalidade”, usada nesse relatório, reflecte bem a dificuldade da sua previsão. Não se pode prever eficientemente algo de anormal. Do conhecimento que tenho do Dr. Fong, trata-se de uma pessoa muito discreta mas muito racional, que desempenhou as suas funções com competência e representou condignamente a RAEM em diversos eventos de Meteorologia e de Geofísica, contribuindo para o prestígio de Macau nestas áreas. Teve um grande azar: no fim da sua carreira foi alvo de graves acusações devido a um fenómeno que se comportou de maneira anormal, na medida em que, contrariamente ao que é estatisticamente comprovado, o Hato intensificou ao aproximar-se de terra. Também o mínimo da pressão atmosférica coincidiu com a maré alta, o que implicou a subida do nível do mar junto à costa. A pesada sanção, que mais parece um assassinato de carácter, constitui uma atitude muito grave de quem decidiu, na medida em cria um clima de medo sobre os que futuramente vão decidir sobre içar ou não um determinado sinal de tufão ou de storm surge. No futuro, em situações de dúvida, é altamente provável que sejam emitidos avisos com maior frequência, o que vai implicar situações de “aí vem o lobo…” tantas vezes repetidas que criarão no público o descrédito na informação meteorológica. O pior é que, um dia, o lobo certamente virá…[/vc_column_text][vc_cta h2=”Post Scriptum” h2_font_container=”font_size:28px|color:%23e83535″ h2_google_fonts=”font_family:Oswald%3A300%2Cregular%2C700|font_style:300%20light%20regular%3A300%3Anormal” shape=”square” style=”flat” use_custom_fonts_h2=”true”] Depois de ter escrito o texto acima, tomei conhecimento de um artigo científico de especialistas do Tokyo Institute of Technology (Hiroshi Takagi, Yi Xiong e Fumitaka Furukawa) intitulado “Track analysis and storm surge investigation of 2017 Typhoon Hato: were the warning signals issued in Macau and Hong Kong timed appropriately?” em que se menciona “A nossa análise do padrão da tempestade sugere que as decisões das duas regiões relativas à emissão de sinais podem ser consideradas razoáveis ou, pelo menos, não podem ser simplesmente responsabilizadas, dada o rápido movimento e intensificação do Hato e os riscos económicos associados em jogo.” (Our analysis of the storm’s pattern suggests that both regions’ decisions regarding signal issuance could be considered reasonable or at least cannot be simply blamed, given the rapid motion and intensification of Hato and the associated economic risks at stake). [/vc_cta][/vc_column][/vc_row]