António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasA véspera A véspera A véspera não é nunca apenas “ontem”. Uma véspera é uma forma diferente de olhar para o dia de amanhã. Pode ser cheio de esperança e vivido com expectativa, entusiasmo e excitação. Pode ser desesperante, triste, vivido a querer que não chegue o dia de amanhã. Em ambos os casos testemunha-se com evidência a deposição no dia seguinte, por vir. Não podemos deixar de considerar que todos os dias anteriores são véspera dos dias seguintes que virão amanhã. Mas não esse o sentido que se sublinha com a “véspera”. Invoquemos algumas vésperas importantes. A véspera de ir de férias, a véspera do primeiro dia de aulas, a véspera de uma competição, a véspera de um exame académico ou médico, a véspera da chegada de alguém que vive longe, a véspera da partida para viver no estrangeiro, a véspera do primeiro dia de aulas, a véspera de um casamento e a véspera de um funeral. Todos os dias seguintes são marcados por uma importância significativa na nossa vida. Não aconteceram ainda, porque serão no dia seguinte, amanhã. E, contudo, estão já a implicar-nos neles. Envolvem-nos como uma atmosfera. Estão já a abrir avenidas para eles. Podemos reagir da mais variada forma: não dormimos ou dormimos. Há uma tensão que não nos deixa pensar noutro conteúdo senão no que virá com o dia seguinte. A véspera desses dias seguintes faz deles dias mais significantes do que dias anteriores. Não pensamos nisso, mas habitualmente estamos depostos sempre num futuro mais ou menos próximo que vivemos com maior ou menor tensão. De outro modo, não íamos fazer café, não subiríamos ou desceríamos escadas, não entrávamos para dentro do carro nem saíamos dele, não aquecíamos antes de treinar, não nos preparávamos mentalmente para o que quer que fosse. O mesmo se passa com o início da semana, do mês, do ano, do quer que seja. Já nem nos lembramos mas há um querer que se abre à possibilidade de sermos diferentes de como somos. Ou pelo menos há esse projecto: deixar-se de… e passar a ser de outro modo. Deitar a “carga” navio fora para não naufragar ou então zarpar para outras paragens. A véspera abre também uma janela para o dia seguinte. A importância do dia de seguinte é definida pela véspera. Não há importância dada ao dia seguinte se a véspera não se perfilar no horizonte. Entre nós agora e nós no dia seguinte há a véspera. A véspera dá a importância ao dia. Faz do dia seguinte não um dia qualquer mas um dia importante. É o que acontece com a véspera de Natal. A véspera de um nascimento é a véspera de um acontecimento que não acaba com o dia, mas começa com esse dia. É o princípio de uma vida. Uma vida humana tem um “ser”, uma “actividade”, diferente dos outros seres. Ao começar, inicia-se um horizonte temporal, uma vida lúcida com expectativas, sonhos, aspirações, ambições, vontades e querer e lucidez. Na véspera de Natal espera-se o dia, não um dia qualquer por mais importância que sejam todos os dias. Não é apenas de Jesus, menino, que se está à espera, como de um filho de uma rainha. Nem é o que se espera pelo nascimento de uma menina ou de menino que nas nossas famílias ou do próprio tem uma importância tal que muda toda a nossa vida. A véspera de Natal é a véspera de uma outra vida, com um outro ser no tempo. Não se espera apenas um nascimento singularmente importante. Espera-se um nascimento que não terminará com a morte o percurso vital. Com o nascimento de Jesus todos sem excepção e sem nenhuma acepção pessoal seremos portadores da possibilidade que inscreve cada nova vida e cada instante dela na eternidade. É uma véspera “e peras”. E, contudo, lembramo-nos mais de natais passados do dos natais futuros. Talvez por isso os natais presentes sejam “mais um”. E não são, porque antecipam uma outra possibilidade. E a possibilidade de se perder essa possibilidade como véspera. O Horto das Oliveiras Ele levantou-se sob a folhagem cinzenta completamente cinzenta e solta no horto das Oliveiras E apoiou a fronte cheia de pó no fundo das suas mãos quentes feitas de pó. Depois de tudo:— ISTO. E ISTO era o fim. Agora eu tenho de ir, enquanto cego, e por que queres Tu que eu tenha de dizer que Tu existes, quando eu próprio já não Te encontro. Eu já não Te encontro. Não em mim, não. Não, nos outros. Não, nesta pedra. Eu já não Te encontro. Eu estou só. Eu estou só com toda a amargura dos homens que eu, através de Ti, comecei a aliviar, Tu que não existes. Oh! inominável vergonha… Mais tarde, conta-se, apareceu um anjo-. Porquê um anjo? Ah! veio a noite e folheou com indiferença as árvores. Os pequenos sossegavam nos sonhos. Porquê um anjo? Ah! veio a noite. A noite que veio não era uma qualquer; dessas que há às centenas. Ali dormem cães e há pedras. Ah! é uma noite triste, aquela em que se espera até que seja de novo madrugada. É que os anjos não se aproximam de tais camas, e as noites não são nunca tão longas como aquela. Os que se perderam a si largam tudo, e são abandonados pelos pais e excluídos do colo das mães. (Rainer Maria Rilke, 1907. Trad. minha.)
António de Castro Caeiro Artes, Letras e IdeiasO possível Para haver liberdade tem de haver uma liberação completa do passado. Mas só uma outra possibilidade de futuro poderá ser essa liberação. O presente da decisão tem de estar sob o encantamento de um futuro. O futuro tem de ser mais poderoso do que a realidade da actualidade. O futuro possível tem de assomar no horizonte. Algo “possível” não aconteceu, ainda. Mas também não podemos dizer que não é nada. O futuro também não é veio até presente e, quando vier, pode não trazer o que queremos ou o que esperamos que venha acontecer. O nosso olhar presente está cheio de um futuro, próximo ou mais ou menos distante, por que estamos à espera. Quando estamos à espera de transporte, estamos de pé, com o corpo virado numa determinada direcção da rua, com os olhos postos lá ao fundo. Se estou na Av. de Berna à espera de transporte para a Praça de Espanha, estou a olhar na direcção do Campo Pequeno, mas não fixo o olhar em nada de concreto. Estou à espera que venha o autocarro, que ainda não veio. Quando peço um café, fico à espera que o tragam. Quando marcamos consultas, há um acordo tácito entre nós e quem marca um dia e uma hora para um local, mesmo que meses depois, quando digo “entre!”, espero que alguém entre no gabinete. Quando faço uma encomenda, espero que ela me chegue. Quando digo “fica bem!”, espero que alguém fique bem por muito tempo, na verdade para sempre. Há coisas por que esperamos anos. Quando nos matriculamos numa universidade, para estudar. Por outras, esperamos a vida inteira: “quando eu tiver o que eu quero”, melhor: “quando eu for como eu determino”. O possível depende do feitiço que nos lança, para que fiquemos virados para a própria possibilidade. A possibilidade com a qual nos podemos criar tem de ser inventada para poder ser encontrada. Qualquer que seja uma possibilidade positiva, terá de destruir o dique que erigimos a toda a nossa volta. O possível que chega até nós é pessoal e cheio de sentimento. Desperta em nós uma paixão que nos comove. Não é nenhuma realidade. E, contudo, tem uma eficácia actuante que provém do futuro. A possibilidade é um fiozinho de água, em que não conseguimos ainda mergulhar. Mas a água vem até nós de alguma maneira. Ou será como o fio de lã por onde escorrega uma gota de água que existe entre almas, para as pessoas se compreenderem entre si e poderem aprender umas com as outras, sabendo de que estão a falar? O transmissor temporal entre o futuro e o presente, conecta-nos à alma da vida. É do ser da vida que destila o possível, tal como é daí que vem o futuro do tempo e, assim também, uma opção de vida possível nunca antes encarada. Do interior íntimo, das entranhas da existência, vem a possibilidade. Toda a possibilidade vem do futuro e, contudo, já está a tocar-nos no presente. O possível vai moldando a nossa realidade. Ora quando o futuro nos acende, o presente desprende-se do passado. A véspera má é esquecida. O passado que nos assola, prende e impossibilita, nunca se apaga, mas é transfigurado. Não é apenas lamentado já. É esquecido efectiva e afectivamente. Não traz tristeza já. Não precisamos de o querer fora da nossa vida nem que nunca tivesse acontecido. Agora, é como se estivesse vida fora e nunca tivesse acontecido. Mas o que neutraliza o nosso passado é o futuro. Não um futuro qualquer, mas o futuro que traz um bem possível. “A calamidade morre às mãos de nobres alegrias.// O bem mata o sofrimento e porventura trará o esquecimento.” (Píndaro) É difícil mudar o presente. Somos o resultado das nossas escolhas. Deslizamos na onda do presente que está a ser impelida pelo caudal do passado. O presente não é feito num só dia. É o resultado de todas as nossas escolhas. O que somos foi o que fizemos de nós dia após dia na convicção de que estávamos a obter prazer e a viver como deveríamos, quando, pelo contrário, nos podemos estar a afastar cada vez de nós próprios, quase ao ponto de perder o contacto com a origem. Mas o bem possível vem como uma gota de água. Estanca a sede na atmosfera irrespirável em que nos encontramos. A liberação vem do futuro, vem da nova possibilidade, é sentimental e comove-nos. Dia após dia constrói-se o tecido de uma existência que para atravessar a realidade de cada instante tem de dizer “agora não, talvez mais tarde”. Mas para ultrapassar o instante temos de o atravessar. A boa nova sentimental sintoniza-nos com um bem maior. Contra todas as expectativas uma possibilidade sobriedade é também uma alegria sustentável. Não resulta da abstinência de possibilidades vãs, vazias, falsas. Porque a vida altera-se com o êxtase do manancial de sentimentos, emoções, disposições que agora assomam o horizonte. Para sentirmos o coração da vida é precisa a coragem necessária para estarmos na clareza. A transparência é obtida pela neutralização de tudo o que nos desvia dessa afecção do ser que agora se revela e nos dá a compreender o que há, é para ser. E é possível. “Aí, onde as brisas oceânicas sopram ao redor da ilha dos bem-aventurados. Ardem flores de ouro.// Umas, da terra firme, a partir de árvores esplendorosas. Outras, alimenta-as a água.//Com grinaldas entrelaçam as suas mãos e coroas de flores.” Píndaro. IIª Ode Olímpica.
António de Castro Caeiro Artes, Letras e Ideias hÁgua [dropcap]A[/dropcap] água é o princípio. Tales de Mileto (624/623–548/545 a.C.) exprime o que pode – mas não deve – ser despedido como uma banalidade. Na água está pensada a humidade. Está pensado, por oposição, o seco. O seco é uma característica essencial da terra. Nos quatro elementos ou letras do alfabeto da realidade: água e ar, terra e fogo, encontram-se características que não são apenas estáticas, mas dinâmicas. A água metamorfoseia-se em diversos estados: líquido, sólido e gasoso. Mas os processos com que se transforma são também experimentados por nós. A pedra de gelo derrete sobre o chão da cozinha ou mistura-se com a bebida, arrefece a sopa, refresca o sumo. A água nas couvettes congela no frigorífico, a neve gela. A relva molhada pela rega seca ao sol, ao ar. Do rio sobe uma neblina. Há uma relação entre arrefecimento e humidade e aquecimento e secura. Podemos tentar compreender, assim, os diversos processos que efectivam diversos estados: evaporação que transforma a água em vapor, faz nuvens a partir de rios, lagos, mares, oceanos, mas também de plantas e animais por transpiração. A condensação transforma o estado gasoso em líquido. Cai chuva. A precipitação enche de novo o caudal dos rios. A água é bebida, sorvida e absorvida pelos seres vivos. Não terá Tales pensado a água neste ciclo hidrológico, as características de cada estado, os processos envolvidos na transição de um estado para o outro e a relação existente entre todos? Não é apenas um elemento que foi identificado, uma substância, por mais complexa que seja, mas o próprio processo de transformação, o vir a ser e o deixar de ser, a passagem a ser e transformação de uma mesma estrutura que se metamorfoseia. E a relação de todos os seres vivos com esse elemento, humanos, animais, vegetais, orgânicos e inorgânicos. Bebemos água potável. Respiramos água no ar. Deslizamos no gelo. Não vemos no nevoeiro, neblina. Sentimos a chuva a cair, o caudal dos rios engrossar, aumentar e diminuir a rapidez, nadamos, navegamos, mergulhamos. O ser vivo está implicado, envolvido por, água tanto que a falta de água globalmente põe em cheque a sobrevivência da própria vida. O que se percebe com a água na sua dimensão metafísica, percebe-se com a terra, o fogo e o ar e a versão mais rarefeita do ar, o éter. Mas não é por aqui que vamos. O que importa também ver, para lá da dessubstanciação da água e a compreensão do seu ser “verbal”, ser água é poder ser líquido, sólido e gasoso, é passar de um estado para outro, é relacionar-se com outras características que aumentam e/ou diminuem a sua quantidade: quente e frio, seco e húmido. Talvez seja o que está expresso pelo verbo “aguar”. A ligação da água com outros líquidos primordiais: sangue, suor, lágrimas, sémen é feita não por analogia, mas pelo isolamento de uma propriedade da água num dos seus estados: o estado líquido. A liquidez, a sua produção, no corpo humano, por exemplo, permite perceber à vista desarmada, que somos água, somos líquidos e não apenas por bebermos. Mas para Tales a água não é apenas um elemento físico, fundamental, mas um elemento que tem de ser posto em relação com outros elementos e que existem em estados diferentes. A água é arkhê, princípio. É elemento no sentido em que dizemos que uma atmosfera é um elemento. O nosso elemento humano é terrestre, embora tendamos a conquistar e ocupar outros elementos: os rios, lagos, mares, oceanos, como o ar e o éter do vasto cosmos. A água é uma atmosfera. Há ar líquido, húmido e frio. É onde existimos, o que respiramos e bebemos. Há uma relação entre o exterior e o corpo, uma relação de acção recíproca. Há água dentro de nós e fora de nós, entre nós e as coisas. É conhecida a relação da água com a sobriedade e o cansaço que empapa a cabeça, contrastante com o efeito de outro líquido que também tem água, mas com outros efeitos diferentes do da sobriedade, o vinho que embriaga. “Ter a cabeça em água”, depois de muitas horas de trabalho dedicado a coisas difíceis ou simples, mas depois de muito tempo. “Ter a cabeça nas nuvens”, quando nos distraímos e deixamos de ter os pés assentes no chão. São possibilidades humanas expressas metaforicamente. O vinho com que nos podemos relacionar tem efeitos contrários, mas os efeitos resultam do elemento água nele presente, também aquece e arrefece o corpo, embriaga quando encharca e deixa-nos sóbrios, ao abandonar-nos. A sua actuação no corpo e na mente é diferente da que a água produz. Mas é a água o melhor de tudo, como diz Píndaro na primeira Ode Olímpica? Mergulhamos, nadamos, navegamos nas águas de rios, lagos, mares, oceanos e também em águas paradas: tanques, poços e piscinas. Atravessamos o rio a nado, oceanos em barcos e navios, mergulhamos para nos refrescar sem ir ao fundo ou para sondar as profundezas oceânicas. Na travessia e no mergulho, estamos em elementos diferentes. Estamos expostos à manifestação da superfície das águas: calmas ou agitadas, da maré que enche ou vaza, do rio de maré cheia ou de maré vazia, na tempestade e na bonança. Mas no fundo do mar há correntes em dimensões muito mais complexas do que as águas dão a ver ao manifestarem-se à superfície, com ondas ou sem ondas, vagas sucessivas ou na formação de uma única gigante, no mar alto ou a abater-se sobre a orla marítima, em penhascos ou à beira mar. No mar, mergulhamos em várias correntes, de água quente e fria, que puxa muito ou não existe. Há lençóis de água que os pescadores ou caçadores submarinos conhecem mas nós não. No mar, voamos para o fundo e emergimos para o cimo, para a superfície. O mar é a vida. Talvez Tales de Mileto tivesse um contacto privilegiado com o ser da vida. Não é o mar que é uma metáfora da vida, mas a vida uma metáfora do mar. Píndaro. (2017) Odes Olímpicas. Tradução: António de Castro Caeiro. Lisboa.
António de Castro Caeiro Artes, Letras e Ideias hÉ tempo de… [dropcap]T[/dropcap]udo o que nos aparece tem o seu tempo, a sua hora. Existimos no interior de uma atmosfera temporal. Agora, à tarde. Antes, no princípio da manhã. Depois, ao serão. A cada instante e durante todos os momentos da nossa vida, é como se houvesse um “agora quando…” antes de e entre toda a realidade. Toda realidade – qualquer momento da actualidade presente, mas também passado e futuro – tem um registo no tempo lido nos relógios. Respondemos às horas precisas quando nos perguntam por elas e é com precisão que esperamos que nos respondam à pergunta: “que horas são?”. Mas não estamos sempre a querer saber das horas. Às vezes, porém, sucede que sem disso nos apercebermos, olhamos de soslaio para um qualquer relógio disponível. Ou será que a omnipresença de relógios na nossa época contemporânea nunca deixa de nos dizer as horas? Haverá um relógio interior que nos dá a noção do tempo? Temos noção que há situações que demoram e custam a passar. Há outras que “é um instante”. Passam rápido, como se o tempo tivesse pressa de ir e de acabar o que está a ser. É sempre hora de qualquer coisa. A realidade é aberta primordialmente por uma hora que é o tempo em que qualquer coisa é feita ou deveria acontecer. Agora, é hora de ir. Agora, é hora de começar. Agora, é hora de acabar. Tudo na vida tem o seu tempo, como se disséssemos sempre sem o proferir: “é tempo de…” Agora, é tempo para escrever a crónica. Há pouco, foi tempo de almoçar. Daqui a nada, é tempo de ir treinar. Ser tempo de… é a forma de toda a experiência do mundo. E mesmo quando não fazemos nada é tempo. Dizemos – ou se não o dissermos pensamos – é tempo morto. Também há tempo sem haver tempo para nada, quando temos muitas actividades ou ficamos efectivamente sem tempo. Perguntamo-nos “que horas são ou que tempo é?” A pergunta é feita de nós para nós. Outras vezes, porém, o tempo que é tempo revela-se-nos a nós, interrogando-nos: “não é tempo?” “Que fazes tu do tempo?” Agora, é tempo. Não sentimos o tempo a passar, quando não “vemos horas” – como se pudéssemos ver as horas! O que vemos é só o conteúdo distribuído pelo tempo, dividido em segundos, minutos, meias-horas, horas, dias, semanas, meses, anos civis e lectivos. Há tempo da realidade mas não só no mundo exterior, hoje com a abóbada azul do céu lá no alto, amanhã, cinzento cinza e negro e muita chuva. É tempo também do pensamento que paira sobre nós como uma nuvem. O tempo traz conteúdos do interior que, mesmo íntimo, é o nosso céu. É tempo de abrir a dimensão para ser transportado para o passado, na infância, quando havia nodoas negras nos joelhos e calções e gelados e lanches. Depois, a sesta. E esperávamos 11 meses pelo verão. Depois, é tempo para um pensamento que vem com as asas da música. Ou será que vem com barbatanas e mergulhamos para a profundidade das alturas? Não nos atiramos para o oceano de água, mas para o oceano estrelado do vasto universo. E assalta-nos a antecipação do futuro. Perguntamo-nos de nós para nós como será depois? Como tem sido, é e terá sido depois? Está sempre a dar horas o relógio do tempo. É o coração que pulsa. É esse tempo que vemos medido mecânica ou digitalmente nos relógios. E se o tempo do relógio é o que visamos, quando perguntamos a alguém pelas horas ou só a nós a partir de nós, o tempo da vida não é medido pelo tempo do relógio. Quantas vezes mais será véspera de Natal? Quantos verões sobreviverei à morte dos meus? Quantos dias haverá ainda para ser no tempo? E a pergunta daquele filósofo: “sou eu o tempo?” Que tempo é esse em que se funde com a própria ex-istência (manifestação do tempo a deixar de ser)? Já não há pressa para ir ao encontro de quem se foi. Mas há o tempo todo de mim cá sem todos. E há o tempo vazio em que não tinhas vindo. Mas vieste e tudo mudou. Às vezes olhamos para o relógio para ver quanto tempo falta e cumpre-se a hora com tudo dito e tudo feito. Mais uma aula, mais um treino, mais uma ida ao sítio tão habitual que é como uma outra pele. Mas há tantas paisagens encerradas, tantos sítios onde não vamos já. Não é por não nos deslocarmos lá. É porque o plano de fundo das nossas vidas – colunas do templo grego da vida que vão até ao céu – desmoronou. A cada instante é hora e nem sempre nos abrimos para o exterior ou para o interior. Há tempo, porém, em que o presente não é vivido sem a pujança de tempos idos. Como outrora foi, no princípio, com o fulgor e o encantamento de todas as histórias de amor. Mas o presente pode ser de novo esse haver sido, cheio de amor, cheio de esperança, cheio da potência do poder que faz querer tanto ser que não se pensa em não ser e apenas se pensa no futuro. É o mesmo ter futuro e ser, ter ser e ser futuro. E a vida é tão poderosa que até com o não ser namora. A morte é o tempo todo da eternidade e olha-nos sempre a partir desse futuro em que tudo pode perfeitamente continuar a ser. Sem nós por cá, porém. O presente pode ser olhado como uma outra infância, cheia de histórias. O “era uma vez” é agora e abre-se ao futuro, porque é do futuro que vem o possibilitante. É deixar-nos estar a ser assim. Este deixar-se ser assim não tem tempo nos relógios. Faz também ver, contrariamente ao tempo que queremos “fazer” e “matar”, que nem tudo se esvazia, mas enche-se como como a maré enchente de um rio. Daqui a nada, vou treinar, depois vou ter contigo, amanhã vou acordar na clareza da manhã como se houvesse um grande dia, como nos dias primordiais da infância: primeiro dia de aulas, primeira comunhão e fundamentalmente: primeiro dia de férias. Agora é tempo de acabar a crónica.
António de Castro Caeiro Artes, Letras e Ideias h“Não vos inquieteis é a realidade que se engana” [dropcap]A[/dropcap] frase estava escrita nos muros da NOVA FCSH na primeira metade dos anos 80. Antes de lá ter estudado, fazia de autocarro a Av. de Berna. Não havia hipótese dos 15 aos 17 de saber que ia passar lá as décadas seguintes até hoje, como estudante, primeiro, e, agora, como docente. A frase prendia a atenção para quem era sensível à metafísica. Como é que a realidade se pode enganar. A realidade é a realidade. As pessoas é que se enganam. E, no entanto, aquela Avenida metamorfoseia-se ao longo do tempo: antes de ter ido para a Faculdade, durante o meu tempo de estudante – com várias épocas – e a partir de 1990, quando comecei a dar aulas. E durante estes últimos 30 anos foi sem dúvida diferente, sofreu várias transfigurações e metamorfoses. A própria frase tem sentidos diferentes. A realidade da Avenida é diferente e é a mesma, como a cidade de Lisboa e os seus bairros, como Portugal e a Europa. Todo o mundo se alterou. Ou terá sido a vida que muda? No GPS é no mesmo sítio. E, ainda assim, é completamente diferente. E o que engana? A aparência de ser o mesmo, quando muda? E como é possível mudar a matéria da realidade. O envolvimento perceptivo, a percepção com que percebemos o que se passa tem em si implicadas diferentes realidades. A avenida percorrida é diferente consoante o local para onde vamos. Depende de estados de espírito, do que sentimos, da atenção que prestamos às coisas ou não. Quando olho através da janela do autocarro para o muro sou eu no passado lá sentado quem vê. E quem olha através desse olhar de então agora aqui sentado a olhar para o ecrã? Só coincide no olhar exterior e nem isso. O que eu via através da janela em percepção é o que vejo na lembrança, mas a fase da vida é inteiramente diferente. Tudo mudou. Pessoas que não havia na minha vida, há agora e as que havia já não moram cá. A mudança não está atestada objectivamente ou então muito pouco. Para mim é sempre enigmático como por um lado há uma “substituição” do “valor” do passado pelo “valor” do presente, a que chamamos actualidade. Portanto a realidade é a actualidade do presente, presente que empurra continuamente para o passado a sua própria actualidade. Converte-a sempre em in-actualidade ou, pelo menos, assim percebemos a tendência da vida para o fazer. Por outro, parece que é a eficácia do passado que se sobrepõe à ineficácia do presente. Pensemos no impacto das primeiras impressões nas nossas vidas, sobretudo na “importância” da infância, da juventude, do tempo em que era tempo. Vi isso nos mais seniores. Vejo isso em mim. Como se o passado não fossem ruinas nem se tivesse desmoronado e a mansão do presente fosse composta de adereços postiços ou adornos cinematográficos. A vida resiste em ir-se. A realidade é o quê, então? É a realidade que se engana. Achamos que está sempre presente. Mas o rosto da cidade muda em décadas. E não é como quando vemos filmes do passado e comparamos uma zona que frequentamos, por exemplo, as Avenidas Novas, com o presente dessa localidade. O filme antigo dá a sensação do tempo passado pela qualidade da imagem, do preto e branco ou então das cores do cinema scope. A substituição de edifícios por outros, o surgimento de espaços verdes ou a destruição deles, a reabilitação do tecido urbano ou a sua destruição, tudo isso é feito a um ritmo vital que não nos deixa perceber para onde foi o passado obliterado, bloqueado, inacessível pela percepção do presente, sem termos nenhuma sensação dele. A vida faz-nos crer que só há presente, actualidade, quando está ensanduichada entre um passado e um futuro, inactualidades, não presenças. O passado que se foi e o futuro que virá ou não. E a inquietação? Quer queiramos ou não é inexorável a passagem do tempo e parece que é só o presente que existe. A humanidade sempre foi enfeitiçada pelo presente. Tanto que a eternidade é um presente que existe para sempre, sem passado nem futuro. Ou então é esse o desejo. No fundo sabemos que o tempo verdadeiro, o tempo na sua autenticidade, o tempo da vida não é esse. É outro, completamente diferente. “Não vos inquieteis. É a realidade que se engana”. Esteve durante décadas nas paredes da NOVA FCSH. No princípio dos anos 80, quando fazia de autocarro a Avenida de Berna para ir treinar, estava longe de ir estudar filosofia para a Nova. Mais longe ainda de lá ter ficado e agora já dar aulas há 30 anos. É difícil de reconstituir esse passado. Não sei bem quem era eu aos 15 anos, quando começava a treinar artes marciais, tocava baixo, ia estudar engenharia. Os dados objectivos têm e não têm nada que ver comigo. Por outro lado, essa subjectividade e a realidade desse tempo não desapareceram ou então são meras curiosidades. Agora, porém, o sentido da Av. de Berna, Faculdade, é diferente, ainda que o referente seja o mesmo, como diz o lógico Frege. Chegou até mim. As duas realidades entram em conflito. Não sei se é porque me surgiu uma memória dessa frase, se rebentou em mim uma certa nostalgia por um qualquer motivo desconhecido. O que me deixa perplexo é que também a realidade que eu agora acho actual de 2020 vai com o meu eu de agora e o plano de fundo que lhe dá sentido para o ralo do passado, está a escoar-se. A actualidade está a desaparecer. Mas há uma avalanche de tempo que se aproxima sempre e é de onde vem o tempo, em ondas num afluxo maciço. E chega para ficar presente durante algum tempo ou instantes ou até décadas. E a Av. de Berna há-de perder a sua significância actual e eu agora com essa importância, o que eu cá faço transformar-se no que eu lá fazia, eu agora passo a ser quem eu fui outrora. Ou então, não. Persiste tudo algures, mas sem mim cá. Não vos inquieteis. É a realidade que se engana.
António de Castro Caeiro Artes, Letras e Ideias hUm sentimento É a morte. A morte é o inimigo. É contra ti que eu me lanço, invencível e inflexível, ó Morte! Virgina Woolf, The waves. [dropcap]U[/dropcap]m sentimento nasce e cresce. Mas morrerá? Há sentimentos que saem do horizonte, desaparecem da presença, mas talvez não morram. Pelo menos quando nos nascem, acontecem a seres humanos existentes. Um sentimento é uma personagem, talvez. Temos a sua percepção ao longe, é de sentir que falamos quando sentimos a sua aproximação e vinda. E toca-nos. Há sentimentos isolados daqueles enormes que temos por Deus, quando nos confrontamos com o seu mistério e o seu milagre, talvez. Há sentimentos que vemos nascer por alguém, único, singular, que muda toda a nossa vida. Há sentimentos bons. Há também sentimentos maus e há-os que são frequentes, que nos vibram a vida toda. Cada objecto tem o seu sentimento. Cada pessoa é um sentimento. De manhã à noite temos tantos sentimentos quantos os segundos que passam, os momentos que atravessamos, mesmo sem dar conta disso. Um sentimento não é nada que haja só dentro da minha cabeça nem só na cabeça dos outros. Há sentimentos colectivos e privados, daqueles que não contamos a ninguém e daqueles que não queremos calar em nenhuma circunstância. Quando estamos tristes, não é só o nosso cérebro que está triste, nem a parte da alma onde dói, nem quem ou o quê de onde irradia tristeza. É tudo. Quando se sente a tristeza está-se triste. Pode não haver diferença entre sentir a tristeza e estar triste. Quando sinto tristeza sem estar triste, é uma outra tristeza. Quando estou tão triste que não sou de outra maneira, o sentimento é avassalador. O sentimento tem olhos e vê, não é cego e jamais existe sem olhar. Por vezes, sentimos a sua presença ao longe como um inimigo de atalaia, para nos emboscar e atacar. Outras vezes, suspeitamos da presença de um sentimento bom. Não lhe vemos os olhos nem o rosto, pressentimos só a sua presença, excitante. Vem do futuro, do tempo da promessa. A alegria também não é percebida por nenhuma cognição, nem quando estamos tristes. Mas também pode ser assim percebida. Há alegrias que testemunhamos assim como ninguém quer a coisa. O acto cognitivo que percebe a alegria deixa-a a sangrar, não a deixa viver como ela nasceu e cresce tanto. Nem a nós nos deixa que ela nos atinja. Mas também, tristes, nos podemos lembrar da alegria, tingimo-la com a nossa tristeza. Não é uma mistura de tristeza e de alegria. É a tristeza com que vem até nós uma alegria passada ou meramente possível, no futuro, talvez. Mas a alegria do sentimento que nasce e cresce, o sentimento que faz nascer e crescer a alegria e se confunde com ela é outra coisa. Não podemos dizer verdadeiramente que estamos alegres, quase que deveríamos dizer: somos alegres ou melhor somos com a própria alegria. Há sentimentos que vêm, como pessoas por quem esperamos, prometidas. E assomam o horizonte. Aproximam-se cheias de possibilidade. Sem estar presentes ainda, esperamos já por essas pessoas. Vivemos já a acolher a sua presença futura sem que ainda existam ou então sem se terem convertido em realidade. O sentimento de esperança resulta da lance retroactivo da possibilidade que nos olha já no presente, mas acena do futuro como promessa. Não dá nada a não ser esperança, porque no presente é tudo igual como tem sido, mas já animado agora com a simples possibilidade de que tudo venha a ser diferente, possa vir a ser melhor. Um sentimento nasce e cresce. O sentimento da proximidade da traz consigo a angústia. É do futuro que tudo chega: promessa, esperança, e o desespero ameaçador. Mas a morte é esperada do lado de cá da vida. É todo futuro, quando, já não estarei cá, quando já nunca mais verei nada nem ninguém. E nem a mim me encontrarei. O sentimento da morte diz-me que tudo será sempre assim como tem sido, mas sem mim cá. O sentimento da morte vem já a fazer sombra sobre a vida em mim e assim sobre o mundo e os outros todos. A raiz da morte é o tempo e por isso é de lá que nasce o poder de alastrar a tudo o que existe, do mais pequeno e ínfimo até ao vasto e extenso universo. Mas o sentimento da morte aproximar-se ainda não a traz, ainda não está aí. Se ela tivesse chegado, não diria nada. A morte é sempre vista do lado de cá da vida. Desse sentimento ameaçador não vem só impossibilidade. A sua raiz é a possibilidade. Do impossível nasce o possível, do nada que também é, nasce o possibilitante. Não é como se tudo fosse tudo possível. É sóbria a possibilidade que vem com a morte. Um sentimento de morte nasce e cresce não apenas agora a meio da vida nem mais tarde quando for próximo do fim. Vem de antes de termos nascido. Com o princípio vem já o fim. O futuro mais longínquo existe desde sempre. Desde sempre a morte vem como possibilidade: a possibilidade de nada mais ser já possível. É essa a raiz de todos os sentimentos. É contra a morte que o cavaleiro avança a galope, com a lança em riste.
António de Castro Caeiro Artes, Letras e Ideias hOração da serenidade [dropcap]“D[/dropcap]eus dá-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, a coragem para mudar as coisas que posso mudar e sabedoria para conhecer a diferença.” A oração da serenidade (1943) é atribuída a Reinhold Niebuhr, um dos teólogos mais conhecidos na América, invocado até pelos presidentes Clinton e Obama. Começa a ganhar notoriedade com os alcoólicos anónimos (A.A.) quase logo desde o princípio da sua formação, mas encontramo-la gravada em toda a espécie de objectos, de medalhas a artigos de olaria, nos EUA. É nela que os grupos de ajuda aos doentes de adição dos A.A. já referidos aos N.A. (Narcóticos Anónimos) e outros doentes com outras adicções têm encontrado consolo. A figura principal invocada na oração é a serenidade. Como se fosse um poder quase divino, talvez até se devesse dizer uma divindade, que se afastara da vida. Tê-la-emos conhecido no passado, na placidez dos dias já há muito idos. A serenidade não é apenas mental. Nunca nada do que acontece na existência humana é “só” mental. Em sentido literal, em latim, é sereno o céu e a lua, talvez da palavra em sânscrito para céu “svar” e do grego para raio luminoso “selas”. No céu nocturno, vê-se a lua brilhar. O céu azul é iluminado pelo sol. Na serenidade mental, independentemente do que se passa lá fora, mesmo nos dias de tempestade, tudo é sereno. Na intranquilidade interior, nenhum dia de bom tempo deixa de ser conturbado. A invocação da serenidade faz-se quando há coisas que perturbam, se agitam, fazem perder o sossego. Ninguém aguenta muito tempo atravessar momentos confusos. O que pede a prece? Pede para aceitar o que não eu não sou capaz de mudar, o que eu não tenho o poder para mudar, o que não consigo mudar. E o que é isso? Não pode ser tudo? Não é um convite à desistência? Os doentes de compulsão terão de aceitar a sua adicção? Terão de aceitar a situação global da sua existência? Não é isso aceitar a doença? Não é a morte em vida? Pode ser aceitar o modo de ser como se é. A adicção resulta de uma obsessão compulsiva. A estrutura existencial confunde o centro com a periferia. É difícil estar consigo a sós, quando somos obsessivos e compulsivos. O comportamento adictivo faz-nos sempre querer qualquer coisa a que nos dedicarmos. Tal como São Paulo denuncia o seu estado de escravidão, para se entregar a Deus e à possibilidade que seja feita a Sua vontade, nenhum paciente de uma obsessão é insensível ao seu sentido de vida: querer sempre mais do que lhe dá prazer, substituir o que deixa de dar prazer por outra coisa qualquer que dê prazer. A vida decorre entre a ânsia da obtenção de prazer, o prazer obtido e a ressaca. É aqui que reside a possibilidade de os chocolates terem metafísica. Um chocolate existe na antecipação dele, no momento em que é comido, no arrependimento de ser comido. A serenidade faz ver como somos. Vivemos entre a ânsia de uma possibilidade sem medirmos a consequência da sua perseguição, o momento da contracção de prazer, o arrependimento por todos os motivos, sobretudo porque a agenda da compulsão não é nossa. A tristeza da vida dedicada a conteúdos compulsivos é que não somos os protagonistas das nossas existências. Não temos vontade que seja nossa. Não temos querer. O querer é de uma vontade que nos dá e nos expulsa de nós próprios. A serenidade faz ver esta estrutura de uma forma extrema, como a nossa raiz das coisas. Mas há um outro pedido que fazemos à serenidade, de que interceda por nós junto da coragem. A coragem para mudarmos as coisas que podemos mudar. A mudança é possível. Podemos viver como gostaríamos de viver e não apenas deixar-nos de viver como não gostamos de viver. Não é apenas precisa a coragem para a desistência de uma hipótese de vida que não nos leva a lado nenhum. É necessária a coragem para um encontro com a possibilidade da mudança. A obsessão é a estrutura da própria existência. A vida acontece entre o primeiro momento e o derradeiro não testemunhamos nenhum e, contudo, esses momentos lançam sobra sobre nós, projectam-se ainda e já nas nossas vidas. Fixamo-nos em conteúdos obsessivos por uma confusão entre nós e as coisas, entre um amor e as coisas que julgamos amar, em quem pensamos de manhã à noite, mas que nos podem destruir. A coragem que a serenidade nos dá revela-nos o nosso amor e o nosso amor liberta-nos não nos escraviza. A serenidade dá a ver a diferença que há entre a impossibilidade de mudança da vida e a possibilidade de mudança do conteúdo da vida. A aceitação da estrutura da vida entre o princípio e o fim. A possibilidade de se compreender que o apego ao que dá prazer confunde a loucura da alteração da consciência com amor. O amor é totalitário, mas não prende, não subjuga, não existe entre a ressaca e a bebedeira provocada por uma substância do mundo. Liberta e lança-nos para a sua própria possibilidade possibilitante, faz-nos da altura do céu em toda a sua extensão, com todo o seu azul. O ser que eu sou deixa de estar hermeticamente fechado entre a ansiedade para estar fora de mim e a obrigação em estar em mim na ressaca que só se vence com outro shot, outra aspiração. Eu aceito que sou assim e posso mudar ser assim ao mudar de sentido, não de existência. Na formulação que Reinhold Niebuhr terá preferido da oração da serenidade lê-se: “Deus, concede-nos a graça para aceitar com serenidade o que não pode ser mudado, a coragem para mudar o que deve ser mudado e a sabedoria para distinguir uma da outra.” A serenidade é uma das faces da verdade.
António de Castro Caeiro Artes, Letras e Ideias hCarlos Barretto [dropcap]P[/dropcap]ara um compositor, tudo é música? Para um instrumentista, tudo é música? Nunca mais me esqueci da primeira vez que vi o Maestro Carlos Barretto tocar o seu contrabaixo. Não era só uma dança entre ser humano e instrumento, logo um contrabaixo, de formas ancestrais, femininas e férteis. Não é possível ouvir música da mesma maneira. Não são as mãos que tocam, uma a pisar as cordas no travessão e a outra a fazer vibrar o arco ou, quando nua sacode, puxar e afaga as cordas na barriga do instrumento. É uma simbiose. O contrabaixista não existe em palco sem o contrabaixo. O contrabaixo sem contrabaixista é um vulto pesado, inerte, deitado ou encostado. Mas ali em palco dança. Era o que me parecia. Às vezes, o Carlos Barretto desaparecia, dissolvido na escuridão do palco, confundido com o fundo, e o contrabaixo dançava sozinho, com a base pontiaguda. Mexia-se para a frente e para traz, rodava, inclinava-se como se fosse um dos elementos de um par de dança deixado solitário no palco. E depois via-se o corpo todo daquele humano a encaixar a massa instrumental como num abraço não estático. Umas vezes parecia dançarem um slow e o movimento era lento, lânguido, voluptuoso. Outras vezes, parecia um combate entre dois lutadores que procuram encontrar zonas do corpo do adversário, diminutas, no porte gigantesco do seu corpo, onde encontrassem as pegas. Entre o abraço dengoso do amor malandro ou suave e os movimentos abruptos dos combatentes, não havia ser humano nem instrumento isolados um do outro. Há técnicas rudimentares para agarrar pela mão esquerda ao alto, para descer e subir, para pisar as cordas, para pegar no arco ou tocar com os dedos em cruzamento perpendicular nas cordas. O contrabaixo não pode estar afastado muito nem tão próximo que se asfixie o instrumento e não deixe margem de manobra. O contrabaixo tem de poder ir e vir e ser feito rodar sobre si próprio. Tem de se deixar esse espaço à medida de um braço esticado. Não pode ser abraçado de tal forma que os dedos encontrem as costas do instrumento, no lugar oposto onde estão as cordas. Mas a magia não é nunca surda nem muda, como se o palco estivesse dentro de uma piscina e assistíssemos ao concerto debaixo de água. É a música que dá alma ao instrumento e acorda o espírito no virtuoso. Nenhum movimento, nenhum gesto, nenhuma constelação de movimentos e gestos existe em silêncio. Mesmo o som solto de uma corda tem um tom, um volume, um ritmo, uma melodia. Em conjunto, não sei o que acontece. São muitos pontos para muitas cordas em que o braço pode ser apertado e as cordas podem ser repercutidas. Uma só orelha não dá para acompanhar cada pormenor. A audição capta a massa complexa da música e até os silêncios, as pausas, a lentidão e a velocidade. É das mãos que nasce a música? É nas cordas só como superfície intervencionada do instrumento? É no contacto e acção recíproca entre mãos e cordas? Mas a ponta de metal que serve de base ao contrabaixo tem de intervir na música, também a posição do contrabaixo – de costas para a barriga do instrumentista e virado de frente para o público – tem de intervir na produção do som. É no instrumento? Como se quando está no estojo parece um grande animal enfiado num saco de cama. Nem está mudo. Está em silêncio, quando está arrumado em casa ou no porão de um avião para ser transportado. É no instrumentista? Nos gestos técnicos que fazem voar as mãos sobre cordas e braço? Ela vem do contacto de um com o outro. Não há dúvidas. É de lá fisicamente que procede, mas ecoa no palco e na sala toda. Mas não fica aí, no espaço, parte da expansão e propagação no espaço, precisa do espaço para fazer a sua travessia até ao espectador, repercute-se na epiderme, nas orelhas e viaja fisicamente para o interior anatómico. Mas ninguém ouve só volume sonoro medido em decibéis. Tudo é transformado e há uma transfiguração plástica causada por uma sensação acústica. De onde vem a música? Acontece no interior do maestro ao mesmo tempo que toca ou aconteceu antes, em silêncio na cabeça do Maestro? E quando acontece em silêncio é uma não coisa? Não existe já sem ser escutado um único som? A música tem de acontecer na sua origem como acontece no seu destino, no espírito. O espírito não tem orelhas e se tiver são diferentes dos abanos que temos para captar som. Antes de soar no instrumento ou ao soar no instrumento, não há uma relação mecânica em entre percussão e percutido. Acontece a música como um movimento no coração ou nos pulmões. Não é só a pulsação nem a respiração que tem ritmos e batidas, sons e pausas, intermitências. A vida tem altos e baixos, é lenta até estagnar ou rápida e alucinante. Às vezes afasta-se e não conseguimos ouvir nada. Outra vez está presente nas nossas vidas, como quando amamos. Um músico tem de estar sempre numa relação com o amor, pode ser infeliz e de coração partido, mas pode ser esfusiante e transbordante. É um tradutor numa linguagem audível do que se passa sempre com cada ser humano, sem que se aperceba que na dissonância, cacofonia, desarmonia, barulheira há uma expressão da nossa vida, como num adagio ou na lentidão do pôr do sol, inexorável, mas temporal. Às vezes a vida é ao som de um drum&bass outras vez trash metal, outras ainda sinfónica, outras é silenciosa. O maestro e o contrabaixo são o instrumento da música que pode acontecer sem vibrar, mas insta à produção e tudo transforma, mesmo visualmente, ainda que sendo acústica a sua manifestação e auditiva a sensação que a capta. Não se encontra no espaço ocupado pelo virtuoso e pelo instrumento, não existe apenas na sala, no lugar da sua reprodução mecânica. É atmosférica. O ser humano existe numa atmosfera musical mesmo quando desespera em silêncio ou na pausa absoluta da morte.
António de Castro Caeiro Artes, Letras e Ideias hO desmantelamento [dropcap]P[/dropcap]rimeiro, começa-se pelos móveis grandes. Mas não se tiram logo. Têm de se esvaziar as gavetas e prateleiras. As gavetas e as prateleiras pesam, mas quando estão cheias, tornam-se impossíveis de carregar. Antes de os móveis que não cabem no elevador começarem a ser levados pelas escadas abaixo, temos de abrir gavetas, ver o que há de valor, aquilo com que queremos ficar, separar o trigo do joio, mas sem apego ou sentimento. É uma decisão pragmática. Ficamos com as taças para Champanhe, porque nos lembram as festas de aniversário de tios há já tanto tempo falecidos, mas que outrora fizeram celebraram os seus 40 anos. São mulheres nuas que suportam nos ombros e cabeça a taça propriamente dita. Fica também a caixinha que serviu de porta-medicamento à velhinha tia. Muita coisa tem valor, mas muita não tem. O valor de que se fala é comercial, porque o outro são camadas de tempo, não é sedimento apenas no fundo do rio do tempo que se confunde com a areia e o lodo. As camadas do tempo são o próprio rio que passa sobre as coisas e as alaga. O rio do tempo é apenas suspeitado pelos trabalhadores que vão pegar nos móveis e esvaziar a casa. Para quem lá viveu décadas, lá jantou todos os domingos de décadas de vida, os móveis da casa, as paredes, o tecto e o chão, a janela com a sua paisagem, tudo está habitado pelas vidas das pessoas que viveram nessa casa. As vidas das pessoas mortas não desaparecem quando são cremadas e enterradas. É viscosa, mantém-se agarrada ao mundo interior de uma casa. Está lá com os sobreviventes que se lembram de como os vivos enchiam uma casa. Enchiam tanto que a casa sem eles está vazia. E saem talheres, terrinas, pratos, pires e travessas, copos para todo o serviço, serviços de chá, chávenas de café e chá. Vai a mesa redonda onde tantas vezes tomamos refeições e se falava do que se tinha passado nessa semana no mundo e nas vidas de todos. Tantas alegrias e tristezas partilhadas a olhar para a ponte 25 de Abril, um dinossauro de metal pintado de cor bordeaux, omnipresente na paisagem de Alcântara. Foi o móvel onde estava a televisão e a mesinha com Cognac. Um olhar inspector vê agora a sala vazia, cheia de pó e sujidade, tiras de papel e plástico, a alcatifa velha, a parede atrás do móvel grande pintada ainda com uma cor diferente das restantes paredes. Ninguém via. Não fazia mal. E foi também desmantelada a cozinha onde eles cozinhavam competentemente. Os bifes com ovo estrelado e batata frita para o sobrinho, mas quando vinha o Verão, o pequeno apartamento no meio de Lisboa cheirava a campo e mar com sardinhas assadas ou bacalhau com alho picado. Todos esses cheiros e aromas assomam da casa inteira e têm uma presença poderosa. O corredor fica vago do móvel gigantesco que servia de apoio para se guardar ainda mantas e roupa que não cabiam nos outros armários. Foi uma lufada de ar fresco quando os homens o tiraram de lá para fazer passar a máquina de lavar a roupa e o frigorífico. Já não há roupa para lavar para o dia seguinte nem comida para guardar no frigorífico. Da sala de estar, levaram o móvel da televisão, o sofá-cama, as poucas estantes com livros de contabilidade e engenharia. Eram poucos. Não se lia muito para além das revistas que tinham fotografias e reportagens inventadas ou verdadeiras das gentes que lá aparecem. Aquela pequena mesinha ao centro, circular, com o cinzeiro de casa de quem não fuma onde sempre o tio punha as chaves de casa, para saber onde estavam. Havia na marquise a fechar uma varanda imensa uma arca frigorífica, uma dispensa para garrafas de vinho “fino” e Whiskey. Tudo está a ser levado naquelas horas da manhã, semanas depois do sobrevivente do casal ter morrido. Não tiveram filhos. Do quarto, começaram por esvaziar a roupa vazia dos velhos tios mortos, sem gente para a vestir ou despir-se dela. Ocos foram os roupeiros com roupa de meia-estação, Outono e Primavera e os casacos pesados para o Inverno de Lisboa ou as viagens que faziam ao estrangeiro: Áustria que era “tão linda”. Foram também as roupas leves de Verão, blusas e um casaquinho fresco. Depois, levaram o móvel do espelho, a pequena televisão que tinha sido posta no quarto, quando a velhinha já estava moribunda. Não prestava atenção ao que via, mas ouvia o terço rezado aos domingos. O velho e pequeno altar com um Santo António ou terá sido um Cristo foi despregado e estava ainda no chão. Também foi com as cadeiras que serviam para se sentarem damas de companhia, enfermeiras e a pouca família que ainda restava, quando vinha de visita. A covid-19 não deixou fazerem-se muitas visitas. Os mantimentos eram deixados à porta do prédio. A enfermeira vinha buscá-los de máscara e luvas, em pleno confinamento. A velha tia não pode receber visitas durante muito tempo e quando as recebeu já não era tempo. E a cama onde, deitada, me perguntava: “já vais?”, quando eu ia e dizia que vinha depois da parte da tarde para saber dela. Já não me ouvia dizer que regressaria. Adormeceu. A cama tinha sido desmontada e esperava no corredor para se desfazerem dela. Lá dormiram também de dia, porque a velhice nos prega à cama. Lá terão amado também na noite de núpcias. Nas noites em que se abrasaram, ter-se-ão amado naquela cama. Essas noites de amor e companhia e ternura, essas noites de solidão, frio e velhice até aos ossos não poderem dobrar-se sem dor e desconforto, a vida está nas tábuas arrumadas do que foi a cama deles.
António de Castro Caeiro Artes, Letras e Ideias hOs donos da verdade [dropcap]O[/dropcap] que é a verdade? A pergunta não pode ser isolada da pergunta no sentido contrário: o que á a falsidade? Encontramos várias respostas na filosofia. Verdade é que acontece, da maneira que acontece e, na versão negativa, é o que não acontece da maneira que não acontece. Mas a definição da falsidade implica um olhar que é enganado. Achamos que acontece o que não acontece ou que não acontece o que, de facto, acontece. Ou então achamos que é de uma maneira diferente que acontece o que acontece. Do ponto de vista de Copérnico, o sol está parado e é a Terra que se move. Mas nós vivemos no mundo de Ptolemeu. Vamos ver o pôr-do-sol e não o levantar da Terra ou vamos ver o nascer do sol e não o baixar da Terra. Há evidências científicas ou experiências altamente sofisticas que nos comprovam que a Terra é esférica, mas localmente a Terra é plana ou assim o parece. Achamos que estacionamos o carro num sítio de uma determinada maneira e afinal o carro está noutro sítio e mal estacionado. Enganamo-nos nos dias, horas, sítios de encontros. A verdade é real e objectiva. A falsidade resulta de uma ilusão da lucidez. Com efeito, também a verdade está implicada num olhar de reconhecimento. Sabe-se da verdade, do que acontece e do modo como as coisas acontecem. Este “sabe-se” é uma forma de acesso à realidade, acesso de que somos portadores. Sabemos como as coisas são. Ainda que não saibamos tudo, temos noção das coisas, temos percepção das coisas. É por isso também que podemos ser iludidos e enganados. Quem estiver fora da realidade não pode ser enganado. A falsidade está implicada na realidade. Na mentira, dizem-nos coisas, na aparência, aparecem-nos coisas. Somos atraídos por fantasias, ilusões e coisas que não existem. Outra das definições da filosofia diz então que há uma adequação entre o que se pensa da realidade e a própria realidade, entre a nossa compreensão e as situações que acontecem na realidade. Falsidade é uma desadequação, um desfasamento, sem que tenhamos, porém, noção de que há um desfasamento. Só tem noção da desadequação quem mente. Quem mente diz que algo que acontece, quando não acontece ou se acontece não acontece do modo que diz que acontece. Quem mente diz coisas, mostra-as de alguma maneira. A miragem aparece. De outro modo, não nos enganava. A aparência existe. De outro modo não nos iludíamos. Sem nos apercebermos não existem verdades nem falsidades apenas quando somos chamados a tomar posição acerca de verdades e de falsidades. Não estamos sempre numa situação crítica em que temos de ver melhor para saber o que acontece ou de que modo acontece. Estamos continuamente no modo indicativo, sabemos o que acontece e o que não acontece, sabemos do modo como acontece e do modo como as coisas não acontecem. Não nos apercebemos também que se produz em nós uma adesão e colagem ao que acontece ou rejeição total da realidade. Onde estamos, que horas são, quem somos, o que estamos a fazer, a realidade dos objectos e a fantasia da imaginação, tudo é sabido sem que o digamos de nós para nós. E há situações em que estamos metidos e não percebemos que são fantasias produzidas por mestres prestidigitadores, mágicos poderosos, que sabem de que gostamos e de que não gostamos, das pessoas com quem queremos estar e são amigas e dos outros com quem não queremos estar e são nossos inimigos. As “fake news” são mentiras que se fazem insinuar nas nossas vidas sobretudo a princípio sobre matérias das quais não temos uma prova imediata, apenas remota. Mas depois são mentiras descaradas para quem não se deixa enganar e vê os outros, mesmo uma maioria ser enganada. Basta trabalhar com o ressentimento e todos temos motivos para estarmos ressentidos com a vida que é uma maneria de dizer que estamos ressentidos com os outros. Outro motivo fortíssimo é a inveja, o ciúme, a cobiça. Queremos ter mais e são os outros todos que têm tudo e nós não temos nada. A culpa é dos migrantes, das minorias étnicas, dos que não acreditam no que acreditamos ou dos que acreditam no que não acreditamos: se acreditam ou se não acreditam em Deus, se acreditam no meu Deus ou no Deus dos outros. E mexe connosco quem diz mal do nosso clube, da nossa orientação política. Porque são os outros e não os nossos que estão errados. Já não se pergunta pela verdade. Quer ter-se razão. Quer ser-se dono da verdade.
António de Castro Caeiro Artes, Letras e Ideias hO momento de felicidade [dropcap]A[/dropcap] filha de Clarisse, no filme “As horas”, pergunta-lhe qual tinha sido o momento mais feliz da sua vida. Depois de algum tempo de reflexão em que tenta lembrar-se, responde-lhe. Ou terá respondido logo? Disse-lhe que sabia. Tinha sido há muito tempo. Como o tempo passa! Nem percebemos como, pela sua passagem, morrem não só pessoas como desaparecem coisas. Épocas inteiras são apagadas da face da terra para emergirem à superfície da consciência na sua ausência, quando nos lembramos delas ou elas nos aparecem sem saber como, vindas não se sabe de onde. Acenam-nos de lá de onde têm estado ausentes, numa presença fantasmagórica, morto que tudo está. O lado de nós que assiste a essa ausência está presente e dá conta de que tudo isso que agora nos aparece tem estado desaparecido e que estão mortas as pessoas de que nos lembramos tão vividamente que dá a sensação de que estão vivas. Mas é só a sensação. O lado de nós próprios que esteve imerso na vida com tudo o que desapareceu já não existe. “Eu sei! Eu sei. Foi há anos”. A resposta obriga a um mergulho. Clarisse sonda a vida que viveu. Não será já feliz ou não sabe se ainda o é, se o foi. Saber-se-á sempre quando se é feliz? Sente-se a felicidade muitas vezes por causa de coisas que existem e que nos acontecem. Outras vezes sente-se a felicidade, sentimo-nos felizes: o facto de se estar vivo. É por causa do sentir-se feliz que qualquer conteúdo está ganho. A felicidade projecta-se sobre nós, e tudo, toda a gente, todas as coisas são atingidas. É uma atmosfera em que se está mergulhado. O clima certo em que se caiu. A felicidade é volátil, volúvel, gasoso, inconsistente, momentâneo, incontrolável, existe independente como um capricho dos deuses ou só da meteorologia. “Já fomos jovens”. “Era eu jovem”. A filha escuta e olha para Clarisse com atenção. Sabe lá ela o que é a felicidade. Sabemos lá nós o que é a felicidade da nossa mãe. Sabemos lá nós o que é a nossa mãe uma miúda jovem. Nem quando vemos uma fotografia da nossa mãe recém-nascida vemos uma menina. Vemos sempre uma metamorfose. “Mãe, estás a dizer que foste jovem um dia”. A juventude é uma atmosfera temporal, uma época da vida. Não foi para lado nenhum. O tempo não vai para espaço nenhum. O tempo vem do futuro e do presente vai para o passado. Há, contudo, uma data de vivências que se soltam do passado e chegam até nós no presente. Há locais que só existem geograficamente mas já não podem ser frequentados. Há pessoas que não vemos há tanto tempo. Há os mortos. O tempo em que outrora coincidimos todos vivos é breve, brevíssimo. A felicidade não é um estado de espírito. Não existe estagnada. Não é também só uma emoção nem é um afecto. É um sentimento. Faz-se sentir a partir de si. É um horizonte que se abre. Pode estar ligada a pessoas, com as quais partilhamos a vida. A ser com outros tudo muda. Não se sente o tempo a passar, pois sente-se haver futuro. “Lembro-me de uma manhã”. “Acordei cedo com aurora”. “Havia aquele sentimento, sabes?” O sentimento de possibilidade. Lembro-me de pensar de mim para mim: “Então é isto o princípio da felicidade”. “É agora que a felicidade começa”. Naquele momento, em que pela primeira vez se sente a felicidade o futuro acena-nos e antecipamos a sua possibilidade. E foi isso, então, nessa altura. A felicidade era e foi só isso. Um aceno do futuro como futuro, o sentimento da possibilidade que nos deixa antecipar a sua própria possibilidade. Não havia mais nada, porque tudo o que havia existia na atmosfera desse sentimento. A felicidade foi aquele momento impermeável a qualquer conteúdo ou talvez dependente apenas da juventude, o tempo da possibilidade, a encharcar a praia, a casa de férias de Verão, os outros todos que ainda estavam a dormir mas viriam para a praia, a tarde, o serão.
António de Castro Caeiro Artes, Letras e Ideias hTeoria da Conspiração [dropcap]Q[/dropcap]Anon (Q Anónimos) designa o movimento de adeptos do “whistleblower” que em Outubro de 2017, numa conta anónima no 4chan, divulgou mensagens tóxicas, auto intitulando-se “Q Clearance Patriot”. Os QAnon apoiam o presidente Trump, que consideram “salvador” da humanidade contra uma conspiração alienígena, liderada por lagartos gigantes. Sim, leram bem: “lagartos gigantes”. Mas há líderes humanos representantes desses extraterrestres. São pedófilos envolvidos no rapto e tráfego de crianças. Os nomes dos responsáveis vão do actor Tom Hanks a Hillary Clinton e Bill Gates. Os “maus” são sempre democratas. O principal alvo é, contudo, a negação da realidade seja da epidemia pandémica que a Covid 19 criou, seja do racismo como o demonstram as manifestações do Chega. Há um elemento conspiratório até para explicar a vinda maciça de migrantes para a Europa. O Primeiro Ministro da Hungria, o senhor Viktor Orbán, diz que é o “judeu Soros” o responsável pela vinda dos migrantes para a Europa.O principal objecto da negação é, contudo, agora, o vírus Corona e as medidas tomadas na generalidade dos países para protecção das populações. Os agentes mais conhecidos dessa negação são o Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e o próprio Presidente dos EUA, Donald Trump. Essa negação tem consequências diárias para a população que continua a ser maciçamente infectada num quadro geral de pandemia. A ridicularização do uso de máscara, mas sobretudo a não aplicação de medidas de confinamento têm-se revelado desastrosas nesses países. Sem dúvida que na Europa, a Suécia tentou criar “imunidade de grupo”, ao não decretar o confinamento, mas está por provar se tal é possível sem ser à custa de demasiadas mortes. Neste preciso instante, em Portugal registam-se 1878 óbitos, enquanto na Suécia — com o mesmo número de habitantes, sensivelmente — há a lamentar 5860 óbitos. Irão os que defendem a decisão sueca agradecer a todas as famílias o sacrifício dos seus entes queridos para obtenção da imunidade de grupo dos sobreviventes? O movimento Qanon é sobretudo negacionista, baseado na noção niilista de que cada cidadão não apenas tem deveres e responsabilidades, tem também garantias e o direito a viver a sua vida equivale a fazer o que lhe apetecer. Mas há uma enorme diferença entre a liberdade com respeito pelo outro e afirmação a todo o custo da individualidade. A liberdade promove o bem comum. A vontade individual promove o interesse pessoal. Ninguém no seu juízo perfeito quer viver numa situação de epidemia pandémica ou conviver com um vírus letal. Mas negar a sua existência, revoltar-se contra as medidas de confinamento e sanitárias para protecção dos mais vulneráveis — os mais velhos e as pessoas com doenças que podem ser agravadas com a Covid-19 — é estupidez. É obscurantismo. Para a teoria da conspiração o vírus Corona é um embuste. Só existe para deixar as pessoas apavoradas. Há quem diga até que já há vacina para a Covid-19. Mas terá apenas um efeito placebo, porque a sua utilidade será a de inserir um “chip” para controlar a vida de toda a população mundial. Essas pessoas são denunciadas pelos QAnon. Podem ser “os chineses” (Donald Trump) que fabricaram o “vírus chinês” ou Bill Gates que há já muito tinha advertido o mundo para epidemias pandémicas. A ideologia do negacionismo apoia todos os que são anti-sistema, diz que todas as notícias são falsas. O Presidente Trump cria a realidade em que ele quer que os americanos vivam e assim também toda a população mundial. Os seus interesses são claros, contudo: mandar trabalhar as pessoas que não podem ficar em casa sem morrer à fome por falta de meios de subsistência, criar a ilusão de que as pessoas podem sair à rua e viver como se nada fosse. Algumas semanas de confinamento bastam para as pessoas ficarem sem trabalho, dinheiro no imediato para as necessidades básicas, e a longo termo, sem futuro. É quanto basta para ganhar para o seu campo uma população enfurecida e virá-la contra as medidas de confinamento e depois contra quem as declarou: os governadores dos Estados democráticos. O que os partidos e movimentos de direita radical estão a fazer é negar o óbvio. Os EUA da Qanon são acompanhados por Bolsonaro no Brasil, pela Frente Nacional em França, pela Liga Norte e o Movimento 5 Estrelas, em Itália. O objecto da negação é um conteúdo apenas, que não teria importância se o vírus Corona não fosse letal. É a forma do negacionismo que é importante sublinhar. Se há lagartos ou extraterrestres a comandar o mundo em que vivemos, eles terão de ser democratas. E temos de desconfiar de pessoas que são a imagem da simpatia e desempenharam em filmes papéis de homossexuais e idiotas como Tom Hanks. A extrema-direita está a negar a realidade para tornar confortável que aceitemos tudo o que nos diz. Suaviza a violência policial contra negros, diz que não há racismo em sociedades radicalmente racistas. Em Portugal, o Chega organiza contra-manifestações para esvaziar de conteúdo as manifestações anti-racistas. Na Alemanha, a Alternativa para a Alemanha organizou em Berlim uma manifestação contra as medidas sanitárias de protecção contra a Covid-19 em que os participantes tomam de assalto o Parlamento. Nos estados unidos, a MAGA tour (Make America Great Again) do Presidente Trump nega a realidade dos factos. No Reino Unido mais de 10000 pessoas reuniram-se, em Trafalgar Square, sem máscara, com os mesmos objectivos. Se a repetição da mentira leva a acreditar na sua verdade, a repetição da negação leva à anulação da própria realidade. Facto é que a vida tal como a conhecíamos antes da pandemia mudou. O perigo vem da instrumentalização das camadas da população mais vulnerável e com maior capital de queixas. O movimento da reacção começa por instrumentalizar o descontentamento, a situação incómoda e desagradável em que todos vivemos. Mas não se fica pelo descontentamento. A reacção instalará o medo, encontrará bodes expiatórios, se não os judeus os negros ou os comunistas, serão os dos outros clubes, dos outros partidos, dos outros países. Quando o bode expiatório é o “outro”, o outro pode ser o amigo, o próximo, o familiar. Podemos tornar-nos delatores da inquisição, da Gestapo, do KGB, da Stasi, da Pide. O próximo, quando se transforma no outro, deixa de ser susceptível de amor. Afinal como se pode amar um lagarto gigante?
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasO primeiro dia de aulas [dropcap]O[/dropcap] primeiro dia de aulas” tem vários sentidos. Mas há o primeiro de todos, quando pela primeira de todas as vezes se vai à escola. É a primeira vez que “emigramos” e logo para um outro universo, afastados de toda a gente. É como deixar o planeta Terra para ir para uma outra galáxia longínqua. Nenhuma partida corresponderá à mesma metamorfose. Ou então talvez todas as partidas terão o primeiro dia de aulas como paradigma. Somos obrigados a abandonar os nossos domínios que conhecemos desde que nascemos. A casa da infância é a casa em que nós vivemos até sair para “ir à escola” pela primeira vez. Essa casa não é um “espaço geométrico”. Situa-se num tempo. A casa da infância é uma extensão da barriga da nossa mãe, um interior absoluto sem exterior, porque não nos pertence o que vemos através da janela, a rua, os prédios, as árvores, o céu existem próximos e são-nos impermeáveis. A casa da infância é a nossa vida. Metamorfoseia-se ao longo do dia e das estações do ano. O universo todo é a casa. O mundo todo é visto através das vidas das pessoas com quem vivemos pais, avós e irmãos se já tiverem nascido. No primeiro dia de aulas, o universo absoluto relativiza-se. A escola é a América ou Marte. Fica a poucos quilómetros de distância, mas existe numa dimensão completamente diferente daquela em que temos estado a existir. Acordam-nos nesse dia, vestem-nos, quando ainda mal acordamos, dão-nos o pequeno almoço e sentimos que tudo mudou também nas vidas das pessoas lá de casa. A avó sabe que não ficaremos a partilhar a vida com ela e a casa ficará vazia de nós, mas nós não o percebemos. Descemos as escadas do prédio como se fosse pela primeira vez com os nossos próprios pés, quando até então tínhamos descido ao colo do pai e flutuávamos no ar sem pisar o chão. Conhecemos o condutor da carrinha da escola e a senhora que nos senta e os outros seres como nós, meninas e meninos que nunca tínhamos visto. Alguns tinham a cara contorcida do choro. Era uma experiência de espanto. Nunca tinha visto ninguém chorar sem razão aparente. Ninguém lhes tinha dado uma palmada ou gritado com eles. A dona Ludovica não fazia festas às crianças mas olhava para elas com um cabal entendimento da situação. Devia ser assim sempre todos os primeiros dias de aulas às nove da manhã com avé Marias a ecoar da igreja nas proximidades. A sala de aulas estava cheia de criaturas com bibes e lanche. Alguns já lá estavam sem que se percebesse de onde vinham ou se não tinham lá estado desde sempre à nossa espera. Falávamos com quem íamos ter e outros ficavam à distância. Os lugares eram distribuídos sem qualquer lógica racional. Havia lápis de cera e plasticina. A educadora andava por todo lado. Havia lanche e almoço em refeitórios. Havia o recreio com cantos, o meio, aparelhos para brincar, um túnel que parecia a barriga de um dinossauro e era percorrido com a cabeça baixa. Havia baloiços e caixas de areia, cercas que dividiam a escola da rua, com pessoas do lado de fora. As horas passavam e consoante as escolas inóspitas ou acolhedoras, assim também nós existíamos fora do mundo ou com direito de cidadania. A casa a que regressamos à tarde não é já a mesma, nem a avó nem a mãe nem o pai. Compreendia-se melhor as saídas e vindas dos pais para o trabalho e quando chegavam ao fim do dia. Sair e não ficar é habitar os sítios. Não se deve ir para lado nenhum de onde não possamos sair. Quando se sai, é sem regressar. Podemos voltar aos sítios, mas é só geograficamente. Tudo muda em poucas horas, durante o primeiro dia de aulas. A diferença entre a casa de manhã e à tarde é total. A casa deixa de ser o nosso mundo. No primeiro dia de aulas tudo vai a enterrar e tudo se inaugura. Nada fica como dantes. Somos emigrantes de nós próprios. Quem chega a casa não é o mesmo que saiu. Quando voltarmos a sair, haverá tristeza e alegria. Mas sem sairmos, não regressamos. Sair é já regressar, faz parte do movimento, da mudança, porque temos de passar para se chegar a si, talvez.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasAssalto ao “Reichstag” [dropcap]B[/dropcap]erlim. 30 de Agosto de 2020. Uma manifestação contra as medidas sanitárias impostas pela Covid-19 reuniu facções da Afd (Alternativa para a Alemanha) de extrema-direita. “Horror – escalada de violência nas escadas do Reichstag” lê-se no site do canal ARD. Na página do FB da AfD, lê-se, porém: “Assalto ao parlamento (Sturm auf den Reichstag)”. O título no site da ARD foi, entretanto, corrigido para “Ataque ao coração da nossa democracia (Angriff auf das Herz unserer Demokratie)”. Um eufemismo tão grave não podia passar despercebido. Há uma invisibilidade mais difícil de detectar do que todas as outras. É quando tudo se faz às claras. Os prestidigitadores, os mágicos, os desportistas exímios e como é óbvio os políticos mais hábeis são os grandes mestres da simulação e da camuflagem. A finta consiste em dar a entender uma acção ou um movimento com um sentido contrário do que vai acontecer. Para simularmos é preciso sermos capazes de fazer crer ao outro que a nossa intenção está absolutamente expressa na nossa acção, no nosso movimento, na nossa palavra. O desportista finge que vai para um lado e vai para outro, que sobe e afinal desce. Dá a sensação que vai avançar e recua ou que vai recuar e avança. Adia até ao limite ou antecipa-se. O pugilista finge bater no rosto do adversário com uma mão para bater no tronco com a outra. O nosso olhar absorvido pelas mãos do mágico não tem folga para percebermos como tira o coelho da cartola. O que acontece na simulação, na finta, é trabalhado tecnicamente. Os diálogos de Platão desmascaram a sofística por ser isso mesmo que faz: prestidigitação. Mas é na vida que a dissimulação se forma. Esperamos que se deem coisas que não acontecem. Há outras que, contra a expectativa, acontecem mesmo. O próprio modo como as coisas se dão é diferente do modo como esperávamos que fossem. Há um jogo complexo entre o que achamos que está visível no horizonte e depois o que vem a acontecer. A invisibilidade mais difícil de detectar é a que se dá às claras. Podemos não querer acreditar no que estamos a ver, quando é isso mesmo que está a acontecer. O elemento fundamental da simulação é o tempo. O futuro iminente cria a pressão necessária para termos uma percepção errada do que está a acontecer. Tudo pode mudar para ficar na mesma. Tudo pode parecer que está na mesma e existe em metamorfose. A verdade engana. O povo sabe do que está a falar. Um povo é levado pela verdade, sobretudo pelo poder eficaz com que as verdades são ditas. Elevamos quem nos diz as verdades mesmo que com a aura da impopularidade. Mas quais são as verdades que sempre foram ditas pelos demagogos. A história repete-se quando o povo baixa a guarda. A frustração da desilusão faz baixar a guarda. Ergue-se o ideal de beleza, de triunfo, da juventude, e também o que é anómalo e anormal, o que não cabe dentro desses parâmetros. Nesse ideal de beleza, triunfo e juventude, da “beautiful people”, “jet set” internacional dos célebres e famosos desta vida, não cabem, por exemplo, os judeus ou os homossexuais (Otto Weininger, George L. Mosse), como se pode compreender pela história recente da Europa nem os negros em nenhum lado do ocidente. Mas não são apenas os descendentes da colonização os únicos “apetrechos dotados de alma” – na definição de escravos de Aristóteles – podem ser crianças, mulheres, todos aqueles a quem lembramos sempre que vieram à existência pela porta dos fundos. Os migrantes para a extrema-direita não chegam do norte de África. Existem já nos seus países. São até cidadãos nacionais desses países. Tiveram foi o azar de não pertencerem à étnia da maioria, terem uma pele de cor diferente, outra religião e, quando não, orientações sexuais diferentes, a idade errada. A vida não é para miúdos nem para velhos. O discurso da transparência não usará de subterfúgios. Dirá a verdade. Não poupará palavras na denúncia. Fundará um partido para defesa da “nova ordem” das coisas. Quem manda no partido pode ser um ressentido ou não. Sabe, contudo, para quem fala. Apela ao ressentimento de que todos nós somos portadores e elege um bode expiatório. É que estar vivo é sentir-se ressentido, porque se queremos ter a possibilidade de ter tudo a que temos direito, por outro lado, houve sempre alguém que não nos deixou ter sucesso. Para o homem do ressentimento a força de bloqueio não é apenas quem detém privilégios, a gente bela, as pessoas de sucesso, os que triunfaram. São os outros como eu que estão a mais. O paradoxo é que todos sem excepção estão a mais se não forem os meus. Os outros não têm direito a nada. O ressentimento pode adormecer mas é acordado. Os poderosos sempre souberam acicatar os ânimos. A Krypteia, a polícia secreta espartana, actuava como rito iniciático para os jovens. Abatiam hilotas (a casta dos escravos que trabalhavam a terra) em “raides”. Desde sempre soubemos espalhar o terror. Não pensava Calígula “odeiem-me à vontade desde que me temam (oderint dum metuant)”? Às claras, alastram pela Europa, Portugal não é excepção, manifestações de apego à tradição e ao caracter puro, enraizado das etnias. A alemã AfD (Alternative für Deutschland) voltou a dar sentido às “Mahnwachen (vigílias)”, numa manipulação clara do descontentamento da população contra as medidas sanitárias provocadas pela Covid-19. As manifestações “contra” têm um sentido completamente novo, porque procuram negar a evidência da presença de um mal. Negar as medidas contra o Coronavírus é negar a existência do vírus, como negar as manifestações contra o racismo é negar o racismo. As manifestações destes partidos são anti-manifestações. Não são afirmações da realidade. São formas de perpetuação do escondimento da realidade. Os novos demagogos não têm, como Giges, anéis que os tornam invisíveis. Não precisam deles já. Dizem tudo às claras. Quando o mal é dito às claras, já não estamos perante uma afirmação. Estamos perante uma ameaça, e há ameaças que devemos levar a sério.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasO Anel de Giges [dropcap]C[/dropcap]onta Platão que um certo Giges tinha um anel com poderes extraordinários. Quando punha o anel ficava invisível. Se o tirava, podia ficar à vista de toda a gente. A experiência do pensamento leva Platão a considerar que se um justo pudesse usar esse anel, agiria de forma injusta. Tirava sem pagar o que lhe apetecesse, entrava na casa de quem quer que fosse e deitar-se-ia na cama de quem desejasse, as ruas estariam cheias de cadáveres das pessoas assassinadas por esse justo e as mulheres grávidas dele. Ele libertaria os seus amigos e meteria na prisão os seus inimigos. O justo não poderia ser já considerado justo. Nem sequer poderia usar o nome “justo”. Todas as suas acções seriam injustas. Não esperaria pela calada da noite para praticar os seus actos. De dia ficava invisível. Não tinha de prestar contas a ninguém. Obteria sempre tudo o que lhe apetecesse ter. Não tinha de responder perante ninguém. De manhã à noite o sentido da sua vida seria o dos seus desejos e caprichos, imporia sempre a sua vontade, sem respeito por ninguém e ninguém saberia pôr-se no seu caminho. É uma tese de Sócrates que Platão quer ilustrar. Ser injusto é fazer triunfar a sua opinião de alguém sobre outrem, esteja ela ou não fundamentada. Ser injusto é fazer o que nos apetece, como se isso fosse ter muito poder. Ser injusto é usar o outro como objecto de desejo e das nossas vontades. Ao impor-se o injusto não apenas neutraliza o outro, subjuga-o, submete-o, sujeita-o, violenta-o. Mas será que Giges ou quem tiver o anel fica invisível a si mesmo? Não se apercebe das suas acções? Não compreenderá o que é agir injustamente ou ser, mesmo que uma única vez, injusto? O pensamento na sua experiência tem de projectar a consequência possível de alguém ser injusto e fruir de todas as suas injustiças, mesmo quando achar que se sacrifica por um bem maior. Pode não ser sádico e sentir prazer sempre em ser injusto, mas nunca transformará a culpa que sente em remorso. Há-de repetir sempre o mal que faz. Nunca ser arrependerá ao ponto de arrepiar caminho. Há-de continuar a dizer o que lhe apetece, a impor a sua vontade, a fazer o que lhe apetece, a exercer a violência da mínima à máxima, física à psicológica. E servir-se-á, abusando dos outros todos ou só usando alguns. Sob a capa do anonimato, torna-se invisível para todos os outros, para aqueles sobre quem exerce violência e aos eus próprios olhos não aparecerá como injusto, mas como alguém que forte, audaz, para quem os outros não são vítimas mas fracos. Se não for ele, serão outros a fazer o que ele tem de fazer. Continuará a tomar o que é seu sem qualquer direito a tomá-lo. Não lhe chamará roubo. Será reclamação do direito. Continuará a entrar na casa de quem lhe apetecer e não será arrombamento mas outra coisa. Deitar-se-á com mulheres e homens porque lhe apetecerá e não será violação mas outra coisa. Matará e será execução. Meterá na prisão em nome de uma qualquer justiça. Soltará criminosos e não é por serem amigos, mas para se fazer justiça. No exercício da violência, na expressão da vontade de poder, está a pequenez que Platão identifica. Fazer vingar a opinião não é saber. É fazer vingar a superstição pelo medo ou pelo terror ou por um qualquer sentimento a que se chamará amor mas não é amor a qualquer coisa que se chamará pátria mas não é pátria e concidadãos mas serão apenas parceiros de crime. E todos os que forem executados, todas mulheres e filhas violadas serão em nome do que é guerra, mas é outra coisa e se for guerra é em nome apenas de si, da afirmação de si, do próprio. O injusto há-de prevalecer na sua opinião, condenando e absolvendo os seus, há-de extorquir, expulsar da cidade e matar, há-de violar, há-de fazer o que lhe apetecer. O injusto será finalmente reduzido ao que é, um odre cheio de buracos, uma pipa gigantesca furada, sem nunca ficar cheia e quando fica cheia sem conseguir reter o que quer que seja. Todas as suas vontades são de tudo e nada. De manhã à noite, será escravo de si próprio e o próprio o que é: esse mesmo odre do tamanho do universo, um buraco negro, que aspira tudo, tudo traga e de nada se enche para todo o sempre. Não sabemos se Giges, rei da Lídia terá tido esse anel. Se terá havido um único ou dois não pode ser a nossa dúvida. Enquanto eu for injusto- perdoe-me o leitor falar eu agora na primeira pessoa do singular- ninguém há-se saber, no pensamento, mais do que em acto, quando em acto, é na realidade, a injustiça é bem escondida. Ou assim, acho. Mas não nos enganemos. O anel cai-nos do dedo, mesmo quando em nome da transparência defende o inominável, a injustiça. É que mais vale sofrer a injustiça do que cometê-la. Ao sofrer-se, dói. Mas ao ser-se injusto, perde-se a humanidade. Convidamos a grande besta!
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasRespiração [dropcap]P[/dropcap]ara o pensamento arcaico a sede das emoções e da consciência era o diafragma (R. B. Onians 1951). Não era o coração. Muito menos o cérebro. Para os velhos estoicos, o “eu” estava localizado no externo, porque um grego gesticula como qualquer mediterrânico e toca com o dedo no externo quando diz eu ou bate com a mão violentamente no peito para se revelar corajoso. Para nós, contemporâneos, o coração está arraigado nos nossos idiomas. Aprendemos coisas “de cor”, usando a palavra latina no original para coração. Alguém tem bom coração. Há quem não tenha coração. Acedemos ao passado pela memória, mas quando queremos entrar por ele adentro é pela re-cor-dação, um modo de reverberar o coração. O coração bate rápido e depressa com medo e na excitação do amor. Cai-nos o coração ao chão, quando ficamos para morrer, pelo susto que apanhamos. O valente tem coração de leão. Os santos aproximavam-se do santo dos santos com o coração nas mãos, como oferta, símbolo vivo da vida. A simbologia do coração foi destruída (Sloterdjik 1988) com o advento da anatomia contemporânea. Passamos a falar de “máquina”. A metonímia faz perceber que o coração perdeu a riqueza semântica capaz de significar o aprender, o ficar em pânico, sentir-se apaixonado, lembrar-se do passado, ser corajoso, expor-se vulneravelmente à fé em Deus. Agora, o batimento cardíaco, a pulsação, o ritmo, são interpretados de acordo com a metáfora da máquina como se o coração fosse um motor, com peças substituíveis. O próprio coração pode ser substituído. Não é pessoal nem intransmissível. Já não é pessoal. Lá não estou eu. Nem a quem pertenceu. Um dia poderá ser produzido por material ainda mais consistente do que a carne humana, talvez. Vemos o “coração” como objecto, tal como o coração é, sem aura pessoal, sem metáforas nem símbolos. O ganho claro e maravilhoso da ciência é a perda da metáfora. Onde estou eu senão no coração. A que chamo eu coração então? Para o pensamento arcaico, era no diafragma que se situavam as emoções e a consciência. Não é metafórico também este pensamento? O que é que eles queriam dizer com isto? No oriente ainda há uma atenção dada à respiração completamente diferente da que lhe damos no ocidente. Os guerreiros árabes antes do combate estavam um dia inteiro a fazer colectivamente hiperventilação. Para se perceber o estado em que ficavam, experimentemos inspirar pela boca e expirar violentamente pelo nariz durante umas 20 vezes. Ficamos embriagados. A oxigenação transtorna. O sangue transforma-se. O batimento cardíaco altera-se. Se googlarmos “The Iceman”, verificamos que Wim Hof tem o mesmo método de respiração com preparação para mergulhar nas águas frígidas que congelariam qualquer um. A respiração Luta/Fuga (ofegante) dá lugar à respiração Sossego/Digestão. O controle da respiração tem de ser feito consoante a situação. Se um perigo nos aparecer não vamos querer respirar como o fazemos depois de um almoço tradicional de domingo ou a dormitar em frente à TV. Se quisermos adormecer, não vamos querer ter uma discussão acesa. Como inverter as respirações? O ponto é este. No controlo respiratório, na sua plasticidade, é possível alterar o estado de espírito. A palavra para espírito em grego diz-se pneuma, sopro. A vida para os gregos era um sopro. Todas as formas de respiração não são interiores apenas. São o nosso contacto com o mundo exterior, com a atmosfera, com o ar que respiramos. O ar está em nós e fora de nós. Circula através de nós. Inspiramos oxigénio e libertamos óxido de carbono. A respiração tem uma inspiração que não pode ser infinita e uma expiração que não pode ser infinita. Se inspirarmos e não expirarmos ou se expirarmos e não inspirarmos, morremos. É simples. Qualquer situação tem o seu modo passivo correspondente de respiração. Foi isso que o pensamento arcaico percebeu. No diafragma manifesta-se exteriormente o modo como alguém lida com a situação. Não há interior nem exterior. O ser humano é atmosférico. Há bafos de sorte e podemos ser bafejados. Há algo que “cheira” bem ou mal, que não nos cheira. Sopramos para arrefecer ou bafejamos para aquecer. A palavra para alma em grego, psychê, quer dizer refrescar, sopro vital, dentro de cada um de nós e a envolver-nos a todos nós. Respiramos de alívio, depois de termos ficado sem respirar. Caímos em situações de cortar a respiração. Expiram prazos. Nós próprios entre a primeira inspiração e a última expiração, datamos a entrada do espírito e a saída do espírito. Deus, dizem, não se manifesta no trovão, nem na tempestade, nem no tremor de terra, nem no fogo, mas no “murmúrio de uma leve brisa”. (1 Reis 19:12).
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasTentações [dropcap]N[/dropcap]ão, por hoje. Hoje, não. “Hoje” é muito tempo. Agora, neste instante, por exemplo, o não, não é bem não. Não estou a negar nada. Não me passaria pela cabeça negar o que quer que fosse. Não declino nada, porque nada me é proposto nem por mim. Não me dá para nada. Não tenho vontade disso agora. O tempo do não é o tempo do sim. O tempo da inclinação é o tempo da queda e da possibilidade de me agarra ao que for para não cair. Mas agora, “não” é uma palavra, não tem significado, não é uma intenção, não faz sentido, a minha vida não depende disso. Ah! “Não”, “não”. Falta o quero. Quero não querer. Mas não me dá vontade nenhuma de querer. Para dizer não a sério, com convicção, para mostrar personalidade e carácter, tenho de estar a lidar com a tentação. Tem de ser a hora do diabo. E o diabo não é horrível, nem feio, nem repulsivo. É exactamente o contrário. O diabólico é encantador. Reveste-se de diversas formas, arma-se em toda a gente que nos fascina e oferece-nos toda a ocasião de queda. Aí sim, temos tudo para cair, para dizer sim e outra vez. Pode ser uma rendição triunfante, acompanhada com um “que se lixe!”. Pode inaugurar-se com pompas e circunstâncias: “estão abertas as hostilidades”. Pode ser sem querer. Foi e pronto. Pode ser contrariados, porque não fomos capazes de evitar e estávamos a ver onde íamos parar na loucura já do mundo que se estava a abrir. Aí, sim. O não faz sentido. É naquele instante da loucura. Breve, brevíssimo em que podemos dizer. Agora, não. Podemos dizer de nós para nós. Dura pouco tempo a dizer não. Muito menos tempo do que o tempo do dia a passar. Mas a rendição pode dar-se já neste instante. É agora que é preciso estar atento. Não é de fora, quando ninguém quer a coisa, quando nos propomos a não, que podemos dizer “hoje, não”. Temos de começar por um “agora, não”. E temos de tentar agarrar-nos como uma tábua de salvação ao “não”, mesmo que seja só da boca para fora e repeti-lo como um mantra. “Agora, não”. Acrescentar o “agora” ao “não”. E um “obrigado” antes de toda e qualquer explicação que não virá. O diabo encontra sempre alguém para nos oferecer o que nos quer dar, são sempre pessoas próximas e as mais insuspeitas ou então estranhos que por serem estranhos também são insuspeitos e a hora pode ser uma hora qualquer do dia. E quando é essa hora do dia é a sério. Vem com um cheiro de uma fragrância que nos deixa acesos, vem como os acordes de uma melodia, vem com uma memória de dentro da nossa cabeça. Vem de repente não se sabe de onde e dá-nos uma vontade absurda.Olha para o que nos deu e para o que nos dá e são sempre vontades insanas. Aí a resposta convicta: “Agora, não” pode vir com um “Obrigado”. Tudo fica preso da tentação, da nossa inclinação, da nossa tendência. É só aquilo que há, no que pensamos é só nisso, em queda livre. É o caos. Tudo isso é um breve instante. Um brevíssimo instante. A insanidade é que a alteração da existência dá-se na realidade mais neutra que possa haver. Pode ser no trânsito, pode ser na sala de estar, pode ser no meio de uma qualquer actividade do quotidiano. E não menos insana é a possibilidade de lhe cedermos, de cairmos, de arriscarmos. Tudo tem estado aí e não é como se não víssemos que tem estado aí, todos os objectos da tentação estão lá e é como se estivessem tapados mas à vista de toda a gente. O nosso olhar não é transparente a maior parte do tempo para as nossas inclinações e desejos. Mas também é verdade que não é para sempre que eles estão resolvidos e que é para todo o sempre que lhes estamos insensíveis. O debate pode ser menos frequente, as vontades podem dar-se com menos violência, o desejo pode não ser o mesmo e pode parecer que se ausentou e nós somos outros e ficamos diferentes. E vem como uma vaga, uma onda. E é a sério o que dizemos. Não é por um dia. Hoje, não. Só por hoje, é a eternidade. Tem de haver estratégias para adiar um pouco mais a vontade. Ainda não. Um pouco mais de tempo. Cinco minutos é muito tempo, exposto à vontade tremenda que me dá. Um minuto é insuportável. O poeta contava os minutos em colheres de chá. É ao segundo. Segundo a segundo, trava-se uma batalha tremenda. Estar por cima e estar por baixo torna-nos grotesco. A reflexão cartesiana é originariamente desejo logo existo, mas sou eu que sinto a falta de mim com o meu desejo “matado”. Sou eu que tenho de matar o desejo com o objecto de desejo que eu projecto e que depende dessa projecção que me usa para existir. “Agora, não. Obrigado”. Ainda resisto. Agora, a escrever não faz sentido. Não me apetece nada, não sinto desejo de nada, nada me faz falta. Agora, não obrigado” pressupõe um querer. Agora, não quero. Mas o querer não está vivo, não está activo. Mas quando está é tremendo. Segundo a segundo: não, ainda. Quase a ceder, mas resisto ainda. Como é a súplica? Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. O mal é “isto”. “Isto” é um conteúdo diferente para cada pessoa e para a mesma pessoa pode ser diferente ao longo do tempo. Há pessoas que têm muitos “males”, estão mais expostos e são mais vulneráveis. A multiplicação dos males acelera e alarga o campo de obsessão compulsiva. Os objectos podem não ser nocivos e podem ser tão nocivos que nos convertemos nos escravos desses mesmos desejos e impulsos, só tendo sossego na terra de ninguém, depois da vergonha de lhe termos cedido e quando ainda não estamos a combater pela nossa subsistência, como Santo António e os seus pecados. As faltas, os pecados, as obsessões, as ideias fixas, os desejos, os amores, são o que temos na nossa agenda. A nossa própria existência é propulsionada por um motivo e um objectivo que nos faz estender e ir por aí além, mas resulta de uma saudade de ser independente e autónomo, livre, a olhar para cima e para a frente e não, como os gregos diziam dos animais no prado, a olhar para baixo e a esgotar o horizonte com o tempo breve em que se engole o que há para devorar.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasRecaída [dropcap]O[/dropcap]s distúrbios que admitem uma possibilidade crónica de recaída estão bem caracterizados. As actividades que estão associadas a tais distúrbios são preferidas a qualquer outra actividade. Tais actividades persistem a despeito das péssimas consequências. Qualquer adicção é assim. No limite, quem está agarrado a uma substância intoxicante prefere as actividades que a promovem e estão ligadas ao seu consumo do que qualquer outra actividade mesmo que no passado lhe tenha dado um grande prazer ou em si tenha um grande valor existencial. Um consumidor de heroína ou crack vai dar-se com outros consumidores e fazer o que eles fazem para arranjarem o produto, em vez de estar com a sua família de origem ou a família que criaram, vão dedicar-se de manhã à noite a tentar arranjar droga, antecipar o próximo transe ou a ressacar a pedrada em vez de trabalhar, praticar desporto, fazer o que quer que se possa fazer no dia a dia. Por outro lado, persistirá em levar a cabo o conjunto de actividades ligadas ao consumo, mesmo sabendo que põe a saúde e em última análise a vida em perigo. Mas o que é a recaída? A recaída é a incapacidade de parar de tomar substâncias adictivas para sempre: drogas, álcool, nicotina. Note-se que é possível a abstinência e até por períodos longos de tempo. É até possível que um a adicto nunca mais volte a usar a sua substância de eleição do momento em que suspende a toma até ao final da vida. Mas a recaída é uma possibilidade que existe na vida de uma pessoa propensa ou talvez como se deva dizer com a doença da adicção. E mais. Quanto mais tiver passado tempo desde que deixou de consumir mais iminente está o tempo da recaída. Devemos olhar para a estatística como para uma possibilidade não como para uma realidade que vai fatidicamente acontecer. Como possibilidade dá que pensar. E faz sentido. Logo a seguir à abstinência, o consumidor está num momento revolucionário, está a lidar com várias dimensões da sua vida completamente novas. Provavelmente, está num ambiente diferente do da sua casa. Está numa clínica de desintoxicação. Tem uma agenda própria, com toma de ansiolíticos e se calhar anti-depressivos. Tudo é novo para ele. Tem terapia ocupacional. O corpo regenera e sente energias que nunca tinha sentido. Mas o quotidiano há-de instalar-se e com o quotidiano, virão ocasiões que farão criar situações propícias para a recaída. Tudo o que estiver ligado a stress e ansiedade mas também a prazer e euforia, na verdade, qualquer ocasião de alteração percepcionada relativamente ao estado normal será propícia à recaída. Vem uma vontade enorme de beber um shot da bebida de eleição, dar um cheiro, um shot, tomar um comprido, dar uma passa, seja o que for. Esta vontade não é uma escolha. Vem como uma vontade que dá ao consumidor e é avassaladora, incontrolável. Contudo, o que se passa a seguir é feito sob hipnose ou resulta da sua vontade? É sob o estado hipnótico e contra a sua vontade que vai ao ATM para levantar dinheiro? Se não tiver dinheiro, vai pedir dinheiro aos seus amigos e familiares como? Para roubar tem de tomar medidas, fazer escolhas. Tem de ir a sítios, executar tarefas. Depois, se não arranjar dinheiro, tem de vender os bens que roubou. Tem em todo o caso de levar o dinheiro ao locar onde compra droga ou fazer vir o dealer até si. Só no fim vai para um ambiente da sua escolha onde se sente em segurança para cheirar ou injectar-se. O alcoólico tem a tarefa mais facilitada, porque pode ter tudo em casa. Ainda que se estiver sob medicação, terá de esperar alguns dias para beber sem mal estar. Mas a ânsia, a vontade tremenda, de consumir, ficar bêbedo ou pedrado não é uma escolha. E não tem que ver com prazer. Há uma diferença fundamental entre prazer e necessidade. Querer fumar um cigarro, para inalar a nicotina, é uma vontade desesperante e não tem que ver com prazer. Há prazer associado ao alívio sem dúvida, mas haverá mais prazer ou alívio? Na psicologia da adicção, a recaída é uma inevitabilidade como possibilidade. O facto de uma pessoa recair efectivamente não é uma inevitabilidade. É difícil de saber se alguém terá o seu sistema, a sua existência, a vida do ponto de vista biológico, cerebral, somática, mental tão limpa como a tinha quando não tinha causado danos. Não se sabe se os danos são irreversíveis. Sabe-se, contudo, que a continuação é o estado de morbidez permanente e o lento suicídio. Mesmo com o risco da recaída, não há outra possibilidade. Não é perdido por um, perdido por mil. A abstinência, a sobriedade, é a única possibilidade de regeneração do cérebro e assim do círculo vicioso que se criou para si próprio, em que o sentido da existência é a expectativa de uma subida do prazer, de uma ida às alturas, da euforia, mas só para uma queda inevitável. Quanto mais alta é a subida, de mais alto é a queda. Sobe-se e desce-se muitas vezes, mas nunca se chega sequer à normalidade em que as pessoas normais se encontram. Está-se mesmo lá em baixo, com uma fasquia baixíssima, sem saber se haverá outro dia. O amor por uma substância é a loucura, nem sequer é estúpido. É suicida.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasAnhedonia II [dropcap]N[/dropcap]ietzsche diz que os orientais e os ocidentais têm dois tipos de narcóticos diferentes. Os chineses o ópio. Os europeus, o álcool. Nietzsche acentua a diferença mais na rapidez dos efeitos do que na consequência. Hoje, não a diferença geográfica que N. traça não faz sentido. É interessante o critério que emprega. A rapidez dos efeitos e a duração da eficácia. Quando se fala de eficácia, é de alteração do estado de consciência. A alteração do estado da consciência transforma a biologia do nosso corpo, a psicologia dos nossos comportamentos, a própria forma da nossa existência. A dimensão em que passa a existir quem usa substâncias psicotrópicas é diferente da da realidade. Desde a antiguidade que a lucidez “seca” é diferente da lucidez “molhada”, a vida sóbria e seca opõe-se e contrasta com a vida ébria e encharcada. A invasão do álcool, normalmente, do vinho foi estudada na antiguidade como uma forma de perceber como é que a melancolia, um líquido segregado pelo corpo humano pode afluir ao cérebro e transformar o modo de pensar, a forma de agir, a mentalidade e a própria existência das pessoas. O uso de drogas, mas também o uso das diferenças bebidas, identificam diferentes personalidades. Pode haver quem “goste” de toda a espécie de substância de que se torna adicto, pode haver que tenha substâncias de eleição e não consuma nenhuma outra. Há bebedores que não se drogam. Há quem fume, por exemplo, erva e nunca beba álcool. Há sem dúvida quem nunca use nenhuma substância nem sequer alcoólica. Há também, ainda que mais raras, pessoas que usem mas não possam ser consideradas ou adictas ou alcoólicas. A adicção é uma doença. Desenvolve-se uma obsessão compulsiva por uma substância. O elemento comum, do ponto de vista neurofisiológico, é que ficamos “viciados” em dopamina. O nosso doce preferido na infância, a nossa comida preferida nos jantares com amigos, a nossa bebida de eleição, o rosto da atração erótica, seja o que for tem uma estimulação de dopamina. O que nós chamamos sex-appeall ou sexy, o que é atraente, o que é estimulante, excitante, segrega dopamina. É por isso que o nosso cão de estimação lá de casa rouba bolo de chocolate e não puré de brócolos. Mas o que tem a narcose? O que tem a alteração da consciência? Para quê a alteração da consciência? Há uma procura clara dessa alteração. Ou por curiosidade ou para experimentar ou porque é uma possibilidade já dada na vida. O ser humano gosta da alteração. O ser humano não gosta de estar sempre na mesma. A mudança que se experimenta com a rapidez de um rastilho a queimar-se e com a influência de uma substância do mundo é que é diferente de uma experiência da mudança que se possa ter com a alteração de perspectiva e uma verdadeira mudança de vida. O que há nas drogas, no álcool, no café, no tabaco, no açúcar, na comida ingerida em excesso, é uma busca artificial da experiência rápida da mudança. A alteração pode dar-se mas de tal forma que se ultrapassa o ponto sem retorno. Ou seja, o que gostaríamos de ter era uma consciência ainda da alteração da consciência e não uma perda da consciência ou uma abertura a uma dimensão alucinante onde não existimos, agimos sem pensar, sem ver, como se tudo fosse um sonho, ao sabor dos caprichos, daquilo para o que nos dá, mas sem sermos nós próprios. A outra alteração da consciência seria assim a da toxicidade para a sobriedade. Podíamos pensar que estávamos sempre inconscientes e ganharíamos consciência, que estávamos a dormir um sonho, a sonhar e acordávamos. Ou então podemos pensar que estamos numa situação que os teólogos descrevem como conversão, não víamos e passávamos a ver, não éramos e passávamos a ser. Há uma enorme dificuldade em lidar com a luz, com o estado de vigília, com a consciência que ganhamos da situação em que nos encontramos. Uma das relações que se estabelece com a sobriedade é uma relação com a lucidez, com a possibilidade de ela não se apagar nunca. É difícil viver sem nunca apagar, sem nunca descansar. Viver com a lucidez é extraordinariamente difícil, mas é por isso que algumas pessoas usam drogas ou álcool, porque não aguentam a realidade. Mas a aproximação à lucidez e à sobriedade é uma forma complexa de aproximação à aurora, à madrugada, ao nascimento, ao princípio, à infância, à atmosfera disposicional em que a vida se bastava a si própria como as vibrações sonoras e a cadência temporal da vida. Nietzsche falava dessa outra possibilidade da vida se encontrar com o êxtase, com uma embriaguez que se dá na sobriedade e na lucidez e ainda assim nos deixa fora de nós. Dentro de nós e fora de nós, com a possibilidade mais extrema e radical musical que é a do ser humano. Virá sempre uma fragrância, um entardecer, um lugar à mesa em companhia de amigos em que o êxtase que queremos será aquele rápido e breve, como se não houvesse amanhã, mas a nossa aventura, a nossa demanda pela música será interrompida não se sabe por quanto tempo.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasAnhedonia I [dropcap]O[/dropcap] hedonismo é uma das ideologias de mais fácil adesão na existência humana. A palavra é deriva do adjectivo grego HEDYS, -EIA, Y e tem ainda repercussões na palavra latina SUAUUIS, -E e na inglesa SWEET. O hedonismo corresponde assim ao princípio de acordo com o qual orientamos a vida por uma procura do é doce, suave, dá prazer, satisfaz, gratifica. Por outro lado, rejeita-se toda a amargura, é causa de sofrimento, frustra. A equação existencial estaria matematicamente resolvida. Escolhe-se o prazer superlativo e rejeita-se o sofrimento, também, superlativo. Em caso e impossibilidade de escolha inequívoca, há matizes na teoria abarcante de todas as possibilidades de decisão. Pode escolher-se o menor sofrimento possível em vista de sofrimentos maiores tal como se pode rejeitar prazeres menores em vista de prazeres maiores. Mas a vida parece estar decidida. Em qualquer circunstância, escolhe-se sempre o prazer como um bem. Em qualquer circunstância também, rejeita-se sempre o sofrimento como um mal. A figura do Hedonismo considerada por si não obtém um aplauso unânime e desde a antiguidade que não foi uma ideologia simpática. Antes pelo contrário. Numa primeira leitura de Platão, por exemplo, vemos os prazeres ligados ao corpo – os prazeres sensuais, sexuais, com a comida, bebida, em geral com todo e qualquer conteúdo do mundo – liminarmente excluídos. Platão não é anti prazer e se podemos dizer que é um asceta é apenas no sentido radical da palavra grega, de alguém que se dedica a exercícios espirituais e não quer ficar sob a alçada de nenhuma obsessão compulsiva. A verdadeira história contra o Hedonismo pode ser lida na acção que lhe é movida pela Igreja Católica como uma das faces da destruição. E não sem razão. Não podemos nunca ler superficialmente as coisas. Temos de perguntar pelo sentido das experiências que as coisas têm nas nossas vidas e nas vidas das pessoas. Qual é o verdadeiro sentido do prazer? Qual é a dimensão do prazer na vida de uma pessoa e das pessoas que estão à sua volta? Quais são as consequências para as nossas vidas das escolhas que fazemos quando nos decidimos por viver uma vida dedicada ao prazer? O que é uma vida que rejeita liminarmente toda a espécie de sofrimento? Por outro lado, temos de perguntar também o que leva alguém a atacar os prazeres. Naturalmente, ninguém sente desgosto com as coisas de que gosta. Por isso, atacar o prazer, aquilo de que naturalmente gosta, implica uma dimensão metafísica, um sentido que vai para além da experiência sensível que está a ser tida. O que levará alguém a condenar o “bem” que fazem os prazeres sensuais e que, dizemos, nos leva à loucura ou então à procriação e propagação da espécie, ao Cocktail de hormonas que permite identificar grupos de adolescentes nas praias, locais de lazer ao entardecer, nos cafés, bares e discotecas, ao facto de se apaixonarem e sentirem tensão erótica entre si? Por outro lado, parece já compreensível o que levará à condenação da ingestão de alteradores do estado da consciência que levam a experiências que são descritas pelos protagonistas dessas alterações de estado como viagens transcendentes. Como compreensível é o que levará à condenação do jogo, quando alguém sente o prazer enorme da antecipação da possibilidade enquanto antecipação, independentemente do resultado, da perda ou do ganho. Não fará também sentido condenar a ambição de poder e da luxúria que resulta do seu exercício? Qualquer que seja o conteúdo de prazer, um único prazer, muitos prazeres, todos os prazeres possíveis e imaginários, há uma diferença entre o que cada um de nós é e o conteúdo específico desse prazer. O amante, o alcoólico, o cocainómano, o jogador, o tirano têm uma necessidade inalienável de coisas que não têm neles próprios. São atirados para outros amantes, para substâncias: bebida e cocaína, cartas e dados, outras pessoas, povos para poderem exercerem os comportamentos que os definem. As compulsões dependem de coisas existentes fora de si. Não há nenhuma possibilidade que exista neles mesmos que os satisfaça. Nunca conseguem estar neles. Não sabem conviver com eles. Nunca estão sossegados. Não sabem o que é a tranquilidade. Não conhecem a serenidade. Estão continuamente a antecipar o próximo momento de intoxicação ou a reagir à fúria do último momento. Existem entre amantes, entre bebedeiras, entre “cheiros”, entre apostas, entre violências. O espaço intermédio é o do vazio, o do arrependimento e remorso ou só o do tédio. Depois de esquecida ou superada “a última vez”, começam logo a preparar “a próxima”. O hedonismo é a ideologia que confunde o BEM com o PRAZER. Que bem haverá numa vida que se confunde com a erradicação da ressaca ou que espera pela próxima embriaguez, mas nunca se encontra verdadeiramente consigo nunca?
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasA porta giratória [dropcap]E[/dropcap]sta luz crua, este calor, transportam-me para a Praça de Londres. A viagem de Alcântara até lá não é longa. Mas teria de acrescentar uns 50 anos para a fazer. Havia um Hotel com portas giratórias que me fascinavam, quando era criança. Não sei bem se a luz e o calor eram o elemento comum. Mas identifico-os como elementos da atmosfera em que estava mergulhado. Olhava para a porta giratória, entrava e saia por ela. Era dourada. Havia um porteiro que me conduzia na entrada e saída. Talvez fossem umas duas ou três vezes as que lá terei ido. A minha percepção do que se passou foi transformada pelo tempo. Muitas vezes tenho revisitações desses momentos em várias alturas do ano, em várias estações, em momentos diferentes da minha vida. O Hotel não existe, o porteiro fardado já terá morrido. Já nem sequer vou para aquela zona da cidade onde ia muitas vezes. Ia à Mexicana ter com o meu pai ou ao consultório da rua Guerra Junqueiro. Nem sempre ou quase nunca me lembrava do momento mágico da porta giratória diferente de todas as outras portas. A porta giratória faz-nos entrar para dentro ou sair para fora, mas temos de atenção, para não ficarmos do lado que não queremos. E há portas giratórias que temos de empurrar e outras que são mesmo mágicas, funcionando como se sentissem a nossa presença e deslocação. Mas é esta luz crua e este calor que me transportam para esse momento no tempo que muitas vezes revisito em aproximações de altura como se estivesse a produzir imagens num “Drone”. As minhas lembranças do passado não decalcam nunca as percepções, transformam-nas. Mesmo quando são reproduções do que se passou no plano do chão eu tenho muitos mais pontos de vista do que aqueles que efectivamente se fixaram na realidade. Se vi de frente, de certeza que imagino como é ver de um lado e de todos os lados, de cima e de baixo, de dentro e de fora. Mas imagino também a realidade como se voasse sobre ela. Agora faço todo o percurso do autocarro 756 a voar. Directo à Praça de Espanha que vejo lá em baixo com trânsito, voo sobre a João XXIII e curvo tenso sobre o que foi o cinema Londres e desço de pé sobre o local onde esteve o Hotel. É diferente o sítio onde agora chego e aquele de que me lembrava. Chego agora e é inverno. Tenho provavelmente trinta e muitos anos, quase quarenta. Não há luz crua nem calor. É já um momento melancólico da minha vida. Não há o esplendor inabalável da infância, cheia sempre de relva e beira-mar, relva e beira-mar, pinheiros, azul, que estão também nos edifícios da cidade, nos Hotéis da infância, nas portas giratórias que giram para entrar e sair, mas também só para girar sem ser para girar nem para sair. A essência de uma porta na infância, giratória ou não é diferente da essência de uma porta na idade adulta, tal como a essência de um Hotel é diferente na infância e na idade adulta. A porta giratória é só para girar. O Hotel é só para ter uma porta giratória, uma cidade inteira é só para ter a luz crua, e o sol, o calor. Na idade adulta, a porta é para entrar ou para vedar entrada, para sair ou expulsar. O hotel é para fazer o que se faz em Hotéis, dormir ou tudo o que se faz sem ser dormir, a cidade é tudo o que alberga o cansaço das pessoas que já não encontram nenhum emaravilhamento, para quem a luz crua implica um resguardo de óculos escuros, o calor é uma temperatura de que se gosta ou acha insuportável. Na palavra recordação há mais qualquer coisa do que memória ou lembrança. Tal como em acordar, vemos lá escondida a palavra coração. A palavra recordação exprime um acordar de novo. Não é uma memória. Não é de certeza uma memória intelectual ou das que se pode ter a olhar para fotografias ou das que nos lembram coisas ou pessoas. Recordar é uma acção. Talvez por isso se diga que recordar é viver. Recordar não é viver menos ou o viver possível quando já não se vive. Quando dizemos que recordar é viver achamos que estamos acabados, já não vivemos e agora lembramo-nos do passado, passamos o tempo todo a vasculhar álbuns de fotografias, vídeos de crianças, baptizados e casamentos, férias ao estrangeiro, e eu sei lá o quê. Quando dizemos “recordar é viver” interpretamos mal o que o verbo diz. Não quer dizer que não seja o que se faz, quando se está acabado e há momentos em que nos sentimos acabados, não fazemos fé em nada, não acreditamos em nenhuma possibilidade ou até só que tudo é impossível, o que é uma tremenda possibilidade. Recordar é viver quer dizer: fazer de novo o que fizéramos mas de uma maneira completamente nova. Nenhuma lembrança repete a percepção, nenhuma memória é exactamente como foi na realidade, nenhum sentimento outrora é o mesmo agora. Recordar é possível a partir do coração que pulsa e nos sacode de novo e permite uma repetição, nunca mecânica, mas a partir do interior, de dentro para fora. Temos de aprender a ver e a escutar o que é que as visitações nos querem dizer, porque é que nos lembramos do calor e da luz, do princípio, da sorte que é termos sido principiantes. Temos de testemunhar essa sorte que foi um acaso e agora é inexorável.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasUm dia de cada vez [dropcap]A[/dropcap] vida da vida renova-se a cada instante. Não se sabe de onde vem nem para onde vai. Mas cada novo segundo esperado, expulsa o segundo presente, empurra-o para o passado há pouco. Olhem para o relógio. O modo como os segundos passam digitalmente. 4, 5, 6, 7. Quando está o 4, não está o 5. Quando está o 5, não está o 6, e quando está o 6 não está o 7. A descrição pode inserir advérbios. O ponteiro dos segundos passa pelos algarismos na direcção determinada, no seu movimento próprio, com a sua velocidade. A vida é indicada na presença máxima, quando ponteiro e algarismo coincidem e perde vivacidade logo no instante seguinte ou ainda não ganhou vida, quando está a segundos de se concretizar. Se assim é para os segundos, o que dizer dos dias? O dia de hoje é um enclave entre o dia de ontem e o dia de amanhã. A vida da vida no seu esplendor máximo atinge-se quando é dia, quando é o dia. Há dias felizes e dias tremendos. Não é a vivência psicológica dos dias. Um dia não acontece na mente, nem a todas as mentes. Acontece mesmo quando não estamos a dormir, quando submergimos, quando não tínhamos nascido, quando já tivermos morrido, a toda a humanidade por atacado a dormir e acordados, despertos ou intoxicados. E acontece num período de tempo. Podemos vivê-lo de diversas maneiras. Os dias passam de forma inexorável como os segundos que os perfazem. Amanhã está onde? Vem de onde para se tornar hoje? Não vem do passado, de certeza. É o dia de hoje que vai para o passado. O amanhã vem do futuro e expulsa o hoje de hoje para se tornar hoje e o hoje de hoje converte-se em ontem e o ontem em anteontem. Mas hoje, ontem e amanhã não estão numa linha, de maneira alguma. Nem o hoje é igual em todas as suas partes. O hoje tem muitas horas, muitos minutos e muitos segundos. Cada segundo é e não cheio de tempo. É escorradio, escapa. Ao escapar, o hoje transita para o sonho, perde o seu estatuto de actualidade. O amanhã não é ainda e não se sabe se será. Planeamos o amanhã que há ou não haverá, mas enquanto tal é um dia na nossa fantasia, que o digam todos os que não viveram para o testemunhar se pudessem falar. O amanhã é pura imaginação e o ontem não é senão um sonho. Só hoje há vida. A vida da vida é um dia. Mas os antigos também diziam que a vida era um só dia. Será o ontem o que havia antes de termos nascido? E o amanhã será a imaginação e a fantasia que representamos do que haverá depois de termos morrido? O que houve antes de termos nascido e o que haverá depois de termos morrido não é realidade, não é de certeza actualidade. Quantos dias houve que nos passaram ao lado? Quantas semanas? Quantos meses? Para onde foram todos os anos em que nós vivemos sem saber bem como a fazer não se sabe bem o quê? Para onde foram décadas da nossa existência? Olhamos bem para cada um dos dias? Olhamos bem um só instante que fosse durante um só dia para ver o que estava a acontecer? É que os outros estão a acontecer, os outros estão a ir-se, o tempo está a decorrer, de forma inexorável, o nosso tempo está a passar, a minha vida está a passar e posso correr o risco de ter vindo à existência do nada que foi a eternidade do passado e estar a ir para a eternidade do futuro, amanhã, mesmo daqui a nada. E não olhei bem para um só dia, a essência da vida da vida. Olha para este dia, Porque é a vida, A própria vida da vida. No seu breve curso residem Todas as realidades e todas as variedades da existência, A bênção do crescimento, O esplendor da acção, a glória do poder— Porquanto ontem foi apenas um sonho, E amanhã é Apenas a Visão, mas hoje, bem vivido, Torna todo o ontem num sonho de felicidade e Todo o amanhã numa visão de esperança. Olha bem, portanto, para este dia. Provérbio Sânscrito por Kalidasa, Poeta Indiano e dramaturgo Séc. V.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasRecordar é viver? [dropcap]O[/dropcap]rtega Y Gasset fala das alturas da vida para referir aquilo que nós designamos em Português para falar do tempo, quando dizemos: naquela altura. Quando dizemos naquela altura referimos um tempo passado. Como se constitui? É porque podemos circunscrevê-lo temporalmente como já passado, uma fase que já acabou: o liceu, uma relação amorosa, uma viagem, umas férias, uma época da vida que resulta da intercepção de diversas actividades e da ligação com diversas pessoas, momento histórico relevante? Como nos aparece? A qual dos eus aparece? A mim, mas a quem de mim? A mim como sou agora no presente? Ou sou eu quem lá vou? Encontramo-nos num qualquer ponto do tempo como se houvesse um compromisso, a meio caminho, a meio tempo? Como se dá essa visita? E para aparecer, está morto e enterrado para nós? Percebemos que as disposições estão mortas, que não nos damos com determinadas pessoas, os estados de espírito mudam com a presença e ausência de pessoas, os momentos da vida trazem vibrações diferentes, já nem nos lembramos bem de como era nessa altura pelo menos não inteiramente. Há um “cheirinho” de como era então para nós. Abre-se-nos, revela-se-nos de como estávamos agora a um eu mais sóbrio ou diferente ou pelo menos a uma versão de nós que pode perceber a verdade dos acontecimentos. Haverá só uma verdade? A verdade? A quem aparece o passado que é exumado na vibração, ondulação, estado, espírito, sopro, anelo, modo, modulação, com a voz própria que tinha tido então. Como podemos escutá-lo musicalmente? Ou como mergulhamos? Dá-se esse mergulho na dimensão da época nessa altura não é apenas uma invocação representativa. Conseguimos ir lá pela disposição. É o elemento que faz a homogeneização, que faz o transporte, o elo comum, o transporte temporal faz-se no modo modulação vocalização. Não se faz de nenhum outro modo, descemos ou subimos, transitamos para essa época ou não através do modo maneira modulação ou não transitamos. Como com as nossas próprias vidas, pode estar presente o espírito daquela época e somos assim transportados para lá ou vem até nós e modifica completamente a cidade inteira a nossa vida presente. A actualidade é a linha de surf ou o lençol de água com a temperatura e a corrente que nos leva e isola das outras linhas de água com temperaturas diferentes e correntes em direcções diferentes, mas estamos sempre inexoravelmente na constituição de um tempo unidirecional ainda que perdidos em diversas alturas que parecem descarrilar como carruagens de um mega comboio que embateu e vemos todas as épocas ao mesmo tempo sem perceber a sua repartição cronológica. Tal como o tempo das nossas vidas também não tem uma datação exacta a não ser grandes épocas: a infância, o princípio das nossas vidas, o princípio da juventude, a idade adulta ou então o tempo do trauma. A nossa vida distingue-se entre o tempo do trauma que é o que marca a iniciação trágica a que só sobrevive quem encontra uma possibilidade de superar ou então se afunda e vê apenas a possibilidade perdida do que poderia ter sido e não foi. O dia de ontem está a uma altura mais baixa ou mais alta? O dia de amanhã está a um nível mais alto ou mais baixo do que o dia de hoje? Não estamos no tempo da superfície, estamos num tempo de profundidade ou de relação não compreensível com a superfície e com a profundidade. Quando aparecem memórias de infância não as vemos como olhamos para postais com paisagens ou fotos com pessoas que já morreram. Ao aparecerem têm o poder daqueles aparelhos que agora inventaram com o poder de criar uma realidade virtual que fazem a pessoa que mete o capacete na cabeça com o ecrã incorporado mergulhar no oceano imaginário que está na sala de estar. O passado inteiro virtual tem um poder total sobre a nossa vida. Expulsa a situação presente. Lembra-nos as músicas que ouvíamos, o que fazíamos, as pessoas com quem nos dávamos, a malta do liceu, o ano escolar, a nossa casa de adolescentes. Tudo está organizado pela brisa marítima que efectivamente se faz sentir e quimicamente transforma todas as moléculas do meu ser mudando o meu corpo presente no meu corpo passado, ressuscitando o meu corpo passado no meu corpo presente, transfigurando a Terra e o Universo, fazendo-o ser como era. Recordar é viver?
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasAs alturas da vida I “Não o tempo abstrato da cronologia, que é todo plano, mas o tempo vital ou que cada geração chama o “nosso tempo” tem sempre uma certa altitude, sobe hoje acima de ontem, ou mantém o ritmo ou desce.” Ortega y Gasset [dropcap]R[/dropcap]epresentamos o tempo como uma linha recta, traçada no quadro da sala de aula. À esquerda fica o passado. À direita, o futuro. Mesmo ao meio, à nossa frente, o tempo presente. Como é que o agora não coincide com os nossos olhos, mas está ali à nossa frente no quadro, no ponto zero? Esta representação é a vários títulos ilusória. Temos de mergulhar para dentro da linha. A linha geométrica não tem interior, mas tem de ter extensão. O tempo estende-se. Não me mexi desde que comecei a escrever estas linhas para além dos dedos. E, contudo, o tempo passou. Não precisamos de entrar para lado nenhum. Estamos já no lado de dentro do tempo. Entramos já desde sempre no movimento do tempo que se distende. Se mergulharmos para a linha das abcissas, deixaria de haver lado esquerdo a prolongar-se imaginariamente para a eternidade no passado. Deixaria de haver lado direito, a prolongar-se para o futuro. Haveria, quando muito frente e trás, se fosse uma linha recta ou subidas e descidas sinuosas se representarmos a recta como um rio sinuoso, como o caudal rápido e fluído da corrente de um rio, mas sem sabermos bem onde está a foz e onde está a nascente. Mantidas as regras, o que para nós está à esquerda, estaria atrás de nós, seria a nascente. O que para nós, ao olhar para o quadro, está à direita, o futuro, estaria à nossa frente. Podemos imaginar que a nascente tem o leito do rio mais estreito e que a foz o tem mais largo. Mas podemos imaginar que estamos na parte estreita do rio sem sabermos se estamos a descer para a foz ou a subir para a nascente. Não importa aqui saber se estamos virados para a nascente ou a montante para a nascente. A jusante ou a montante estamos lá dentro, vamos ao sabor da corrente ou debatemo-nos a nadar ou a navegar. O que importa é que estamos na recta, na linha e não estamos de fora a olhar para o que está traçado no quadro ou na nossa imaginação. Mas a imagem não é adequada se pensarmos que estamos lá metidos de uma forma comprimida. A compressão no tempo é de uma outra ordem. A linha do rio é a vida toda. Quando estamos num espaço fechado e estreito como um saco-cama ou uma carruagem apinhada de gente ou quando estamos no cimo de uma montanha a céu aberto, estamos metidos na mesma recta do quadro, embora não o percebamos. Quando estamos a olhar para as nuvens a passar lá em cima, muito altas, no céu, podemos imaginar que elas estão paradas e que somos nós que nos estamos a deslocar. Cada secção da linha é tão extensa que abrange o universo e assim não tem nem exterior nem interior, não tem limite. A sua dimensão é temporal. Tudo transcorre no interior. Não tem exterior. Mas de onde vem o tempo, para onde vai? O trânsito do tempo, o seu caudal, o seu fluxo, a sua correnteza, as suas marés, são precisamente as fases, as épocas com diferentes alturas. Mas há uma estrutura ainda mais complexa. Estamos a ver tudo à superfície e estamos a boiar, por assim dizer, e a nossa relação com a água não é só a relação com a superfície. A superfície pressupõe camadas mais profundas até atingir o fundo. Há alturas, por isso dizemos que um rio é fundo, muito fundo ou pouco fundo. A navegação pressupõe diversas alturas e por isso é perigosa consoante a altura dos cascos e a natureza da navegação. É no mergulho e na profundidade que vemos diversas correntes tridimensionais com diversos lençóis de água e numa relação entre superfície e fundo, imersão e emersão, afundamento e naufrágio, vinda à superfície. A vida implica a compreensão desta representação de ir ao fundo das coisas que não é apenas uma ideia da espeleologia, mas do mergulho, formas de descida até ao fundo do mar e do rio. E subidas formas de emersão à superfície. Ficar escondido do inimigo, os submarinos, os homens rã, os tesouros, o mundo das sombras. O que está escondido no fundo do mar.