O Gato de Schrodinger

DR

Seis e trinta da manhã. Acordo e testemunho pela nonagésima terceira vez a caricata celebração das nossas gatas à minha mulher, que dorme. São duas, absolutamente idênticas, distingue-as uma pequena mancha preta que a filha tem nas narinas. Felizmente, a minha mulher dorme quase sempre de barriga para baixo.

Quando se apaga de barriga para cima uma delas vai anichar-se-lhe no peito e vela. E, se acordo, dou um pulo – é invariável.

A minha mulher tem sinais no rosto (como a Bambu de Gainsbourg), vivêssemos na Idade Média e há muito que tinha ido para a fogueira: a absoluta comunhão com os gatos e os sinais, provas suficientes quanto ao seu comércio com o Diabo. Vale sermos de outro tempo. Ou ser eu o Diabo, num formato pachola.

E as duas gatas, dada a dificuldade em distingui-las na maior parte dos ângulos, evocam-me o gato de Schrödinger e o poema com que o Dinis H. Machado fecha o seu Eliot, É assim que o mundo termina, um lance onde se medita sobre o tempo e a sua face ondulatória e que para mim fecha o livro esplendidamente.
Dinis funde a caixa de Schrödinger no corpo do poema e faz dela dispositivo para sondar a ambivalência do tempo e a sua pulsação contra o senso comum, no intervalo das difrações e da ferida que as bordas de qualquer decisão impõe sempre ao rasto dos existentes. O gato (sugere-se) metamorfoseia-se num homem, numa mulher, em dois amantes na lâmina do instante que separa ou vincula, numa criança que ainda vacila no primeiro passo, a única constante que o gato ilumina é que o tempo é uma parede de ladrilhos a que a varredura ocasional de luzes oblíquas muda os padrões.

É um belíssimo poema de quatro páginas, uma digressão em torno da nossa fatuidade e da impossibilidade de não nos evadirmos pelo desforço de sermos múltiplos, ainda que retardados pelo erro, mas sem nunca se colocar na ponta dos pés, sem nostalgia nem pathos, e que termina assim:

«Aqui estamos, novamente, junto ao promontório./ Falamos com as ondas que se atiram contra o rochedo teimoso./ Não é a primeira vez e, decerto, não será a última e derradeira./ Nós estamos aqui porque somos incapazes de aprender./ Para nós, apenas existe o que podia ter acontecido,/ o que podíamos ser e nunca o que somos ou fazemos./ Nós estamos fora do tempo. A nossa presença é insignificante./ Nada do que fazemos altera o que o destino nos reserva./ Vemos o nosso rosto debaixo de uma luz defunta,/ extinta num momento em que ainda não éramos./ Tudo o que vemos está morto e deixou de existir./ Esta é a terra morta. A terra que aguarda o decair da estrela./ Nascemos com os mortos e vivemos sob o branco/ nevoeiro que nos cega e encanta com uma canção de embalar./ No final, iremos morrer com o morrer da luz,/ como um sonho que nos abraça e seduz./ Esta é a forma como o mundo acaba./ Esta é a forma como o mundo acaba./ Esta é a forma como o mundo acaba./ Não com um estrondo, mas com um gemido./ O resto é silêncio./ Um silêncio profundo que antecede um novo início.»

Uma primeira nota sobre a inteligência com que o verso repetido três vezes dá ênfase ao fecho do poema, pois se este é percorrido por um sentimento do “fatum”, o seu desfecho, num felino golpe de rins, renova os votos, relembra-nos que a decisão de considerar se o gato na caixa está morto ou vivo só depende de nós; sendo que mesmo a morte que nos atinge no singular não é afinal universal, como anuncia a coda de um poema anterior, A era das máquinas: «Esta impressão (o que o tempo nos faz sentir) é como um fantasma/ que nos persegue e assume a nossa forma quando o sono nos distrai./ Não há uma só morte que nos acompanha no fim,/ mas uma que é só nossa e nos acompanha desde o início.» Pertinente ainda que o verso que instala o silêncio restante seja o mais curto, o que interrompe a métrica, mas o que importa realçar é que se em Dinis H. Machado desponta, unha com carne, o acidental e o trágico que atravessam as estações da vida, o poeta sobrevoa, insurrecto («com uma subtil teimosia»), quaisquer tentações de cair na litania desairosa que antecipa o cinismo e sacode os mantos duma cristalização que de desconforto em desconforto nos alastre a impotência.

Lembremo-nos que, como é dito no prefácio, este livro foi escrito numa dupla injunção, para celebrar e esconjurar o poeta de A Terra Devastada. E lendo este Eliot, só me acode um verso espantoso que Nâzim Hikmet escreveu na prisão: «sou feliz, sou feliz a toda a brida». E diante desta força da afirmação só podemos agradecer. A bruxa acordou, ao meu lado. Embruxemo-nos, que bruxuleantes ficaram as gatas e a manhã.

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