EventosPatuá | Antigo crioulo de Macau sobrevive em grupo de teatro que recusa contos de fadas Hoje Macau - 2 Dez 2024 Proibido nas escolas pela administração portuguesa e confinado às casas macaenses, o patuá, crioulo de Macau, sobrevive hoje no palco, pelas mãos dos Dóçi Papiaçam. Contam histórias de escárnio, para fazer rir, e recusam contos de fadas. Ainda José Carion Jr. era um miúdo, e o avô, vizinho no Largo da Companhia, centro de Macau, assomava à porta e gritava: “Vôs hóji ui-di janota, undi tá vai? Iou pensâ qui vôs tá vai caçâ a-mui” – numa tradução livre: “Estás muito janota, onde é que vais? Acho que vais à procura de namoradas”. O patuá, crioulo de Macau, era então língua corrente na casa dos Carion, como acontecia, aliás, no lar de muitas famílias macaenses, nome dado a esta comunidade euro-asiática, com raízes em Macau, sendo a maioria dos membros lusodescendentes. “O meu avô falava português, mas comunicava muitas vezes em patuá”, conta José, que veste uma ‘t-shirt’ da Liga dos Combatentes e tem ao pescoço um fio com uma “moeda comemorativa dos Descobrimentos”, comprada e mandada cortar em Lisboa, no Castelo de São Jorge. Ao lado, estão sentados o neto Hélio e a filha Paula. No caso desta família, o patuá era utilizado também pela avó de José, chinesa que não falava português e que no crioulo encontrava manifestações da língua materna – ‘a-mui’, por exemplo, significa ‘menina’ em cantonês. O patuá, estabelecido ao longo dos últimos 400 anos em Macau e derivado sobretudo da língua portuguesa – embora com outras influências, incluindo o concanim (Índia) ou o malaio – entrou em declínio devido à obrigação de aprendizagem do português nas escolas do território. “Houve a adoção do português padrão como meio de comunicação entre as províncias ultramarinas. Nas escolas, proibia-se o patuá, porque era sinónimo de falar mal português, e isto pegou, ninguém gostaria de ser sujeito à chacota, estávamos num mundo em que falar bem português era sinal de estatuto”, lembra à Lusa Miguel de Senna Fernandes, presidente da Associação dos Macaenses. O patuá foi sobrevivendo entre quatro paredes e ainda hoje se fala à mesa dos Carion. Mas mais por casmurrice, confessam. Outras línguas cruzam os dias desta família: português, cantonês e inglês. Agora é a vez de Paula Carion ‘botâ faladura’ (fazer uso da palavra): “Tento falar às vezes com o meu filho. Somos uma das famílias que tenta preservar o patuá, utilizando-o diariamente”, diz. O único lugar onde esta língua suplanta todas as outras é mesmo no palco. Paula e José fazem parte do grupo de teatro Dóçi Papiaçam di Macau (doce linguajar de Macau), que através da sátira conta histórias da terra. Os Dóçi nasceram em 1993, ano da morte do poeta e acérrimo defensor do patuá José dos Santos Ferreira. Senna Fernandes, hoje à frente do projeto, integrou o grupo desde o primeiro momento, quando subiu ao palco “Olâ Pisidénte” (Ver o Presidente), onde apresentaram a Mário Soares, de visita a Macau, as preocupações da comunidade macaense. Passaram 31 anos, a maioria dos quais, 25, já após a criação da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), na sequência da transferência de administração do território para a China, em 1999. “Com a RAEM, a língua fixou-se no palco, pelo facto de não ser utilizada como meio de comunicação normal”, nota Senna Fernandes, admitindo não saber quantas pessoas falam o crioulo, que atravessa atualmente um “estado mais dormente”. O dramaturgo lembra as conquistas: as peças dos Dóçi começaram a integrar o cartaz do Festival de Artes de Macau em 1997 e, passados dez anos, subiram ao grande auditório do Centro Cultural, “de onde nunca mais saíram”. Em 2021, o teatro em patuá foi classificado património cultural imaterial pela China. E “o teatro não significa nada sem a língua”, diz, considerando esta uma homenagem ao próprio crioulo. Mas o grupo foi apanhado de surpresa quando, este ano, pela primeira vez, as autoridades locais pediram o guião da peça antes desta estrear, dando a justificação, conta Senna Fernandes, de que é necessário para fazer a classificação etária do espetáculo. “A alma do patuá é a capacidade de fazer rir”, frisa o macaense sobre o trabalho dos Dóçi que, ao longo dos anos, tocaram em temas como o sistema eleitoral – não existe sufrágio direto em Macau – ou a política restritiva durante a pandemia da covid-19. Senna Fernandes espera que esta “não seja uma forma desvirtuada de exercer qualquer tipo de pressão”: “A partir do momento que começam a tirar isto ou aquilo, acabou. O que seria? Um teatro de contos de fadas? É o que se pretende? Pelo amor de Deus, eu não estaria aí para isto”, garante. Já quanto ao futuro lugar do patuá, o macaense diz que não tem pretensões de fazer ressuscitar esta “estranha e bonita língua”. Antes fazê-la renascer e ser encarada pela juventude como “uma nova língua” a aprender, “despida do contexto sociocultural do passado”, ainda que parte inalienável da identidade macaense. “É uma língua suscetível de abarcar a realidade moderna, (…) em que não existe uma lógica só de uma língua, mas uma lógica linguística que abarca outros elementos linguísticos. Isto tem muito a ver com os crioulos”, reflete. Paula Carion admite que a produção de manuais e até a criação de cursos, nos níveis secundário ou superior, poderiam ser apostas locais. “Iou já falâ, governo têm qui apoiâ. Nôm têm apoio, patuá já morê [“Já disse, o governo deve apoiar. Sem apoio, o patuá morre]”, sugere José. Paula responde que “apoio tamêm nôm sâm somente sapeca [não é apenas dinheiro]”, mas que são precisas mais pessoas a aprenderem a língua. Há que trazer as novas gerações para o palco, todos concordam. Os Dóçi contaram este ano com novas apostas jovens e, além disso, também um teatro para crianças nasceu pelas mãos do encenador macaense Delfino Gabriel. E Hélio, com quatro anos, mostra que o patuá pode mesmo ser para todos, ao cantar parte de uma música dos Dóçi, que também têm um coro: ‘”Sino-sino lôgo rapicâ/ Sâm Natal, Sâm Natal, Sâm Natal (Os sinos tocam/ É Natal, É Natal, É Natal).