Fang Cong e o que está dentro e fora do portão

Bai Juyi (772-846), o poeta da dinastia Tang atento às mais pequenas alterações da vida quotidiana, no poema em que celebra a renovação da casa que acabara de comprar, na Primavera, termina com os versos:

«Se há uma coisa que convém ao meu espírito,

São dez mil complicações parecerem esquecidas.

Supondo que para lá do portão da minha residência,

Algo acontece – nada saberei sobre isso.»

E esse portão de uma casa ou de um mosteiro, muitas vezes enclaustrando um jardim, um espaço mentalmente ordenado, mais do que um limite fisíco marcava uma fronteira espiritual.

Ao longo dos séculos do regime imperial esse ideal de sentir-se longe estando perto, perduraria na vida de literatos que gostariam de viver livres como eremitas, mas que não se podiam retirar das cidades devido às suas obrigações com o governo imperial.

Foi esse também o caso do seu contemporâneo Pei Du (765-839), que escreveu num poema;:

«No caminho para o meu portão

avista-se um rio límpido,

Velhas árvores crescem uniformes

em redor dos beirais de telhados de colmo.

A poeira vermelha voa

mas não chega tão longe,

E de vez em quando escuta-se

o chilrear de um passarinho.»

O eminente pintor e teórico Dong Qichang (1555-1636), citou muitos anos depois os versos de Pei Du no rolo vertical Paisagem (tinta sobre papel, 130,5 x 39,2 cm, no Smithonian) feito para um amigo que o visitou em Xangai, pouco depois do Ano novo de 1617.

Nele, não se vê nem um portão nem qualquer pessoa mas nas margens do rio que domina a representação, em primeiro plano, um salgueiro-chorão assinala a presença de uma ausência. Esse mesmo salgueiro que se encontrará mais tarde em várias pinturas de um dos pintores da corte de Qianlong.

Como na Paisagem de 1770 (tinta sobre papel, 26,3 x 33,3 cm, no Museu Cernuschi) em que o uso do pincel com pouca tinta e uma habitação vazia evocam a aparente simplicidade da pintura de Dong Qichang, executada porém com uma calculada disposição geométrica dos vários planos.

Fang Cong (c.1749-1790) de Zhejiang chegara à corte em 1736 com outros pintores que se destacariam como Zhang Zhongchang ou Ding Guanpeng e mereceria a aprovação de Qianlong, notada em poemas que o imperador escreveu sobre as suas pinturas.

Sobre uma sua Paisagem de neve, feita numa folha de álbum (tinta e cor sobre papel, 26 x 32,8 cm, no Museu Cernuschi) percebe-se a vantagem de estar abrigado atrás do portão mas a beleza do cenário branco provoca uma inquietante indecisão.

Tal como o salgueiro-chorão designado liu, que era usado em despedidas, dada a homofonia com uma palavra que significa «fica», embora a pessoa vá partir. Mesmo protegidos dentro de casas, por vezes enclausurando um pátio pelos quatro lados (siheyuan), por trás do portão o espírito voa pressentindo que há algo lá fora que é importante e não deve ser perdido.

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