Os olhos do dragão oculto no traje da Imperatriz Zhang

Xuanren, mais conhecida como a imperatriz Gao (1032-1093), sendo regente entre 1085-93, tornar-se-ia um exemplo da flexibilidade do silente exercício do poder, tendo um papel decisivo e discreto no regresso do poeta Su Shi (1037-1101) do seu exílio em 1086.

O que seria recordado de modo elucidativo numa pintura atribuída ao pintor Zhang Lu (1464-1538) quando reinava uma outra formidável imperatriz. Nesse rolo horizontal, O regresso à corte de Su Shi (tinta e cor sobre papel,32,4 x 629,9 cm, no Museu de Arte de Berkeley, Universidade da Califórnia), o poeta é figurado a caminhar, rodeado de senhoras mas onde a imperatriz está significativamente ausente. E, se todos naquele tempo poderiam reconhecer essa ausência, a todos seria igualmente patente a coincidência do que então ocorria com a imperatriz viúva Xiaochengjing, mais conhecida pelo nome do seu clã, como imperatriz Zhang (1470-1541).

Num retrato póstumo (tinta e cor, 64,2 x 52 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé) como era usual, feito antes de 1505 quando se dá a transição para o novo imperador seu filho, Zhu Houzhao (1491-1521) que reinaria como Zhengde, ela é mostrada com a sua imponente fengguan, a «coroa de fénix», no sebasto do seu vestido como era habitual, dois comuns e decorativos dragões bordados.

Porém do decote, nas vestes interiores notam-se como espreitando, oblíquos, dois grandes olhos de dragão que na sua assimetria denunciam o movimento, a poderosa e inquietante força do dragão. O nascimento desse seu filho fez parte da sua inédita trajectória de aquisição de poder, manifestada logo no facto singular de ser a esposa do único imperador adulto (Hongzhi, r. 1488-1505) que não teve outras esposas ou concubinas. Tendo casado em 1487, o filho de ambos só nasceria quatro anos depois, após ela ter participado em 1490 em elaboradas cerimónias propiciatórias dirigidas pelo quinquagésimo Mestre do Céu do Daoísmo, Zhang Guoxiang (c.1577-1612).

Zhang, a imperatriz, faria parte em 1493, de outro ritual em que como outros imperadores, foi ordenada sacerdotiza na Escola daoísta Zhengyi, do Tianshidao. A excepção será porventura, tê-lo feito seis anos antes do imperador seu marido.

Essa cerimónia de legitimação ficaria registada num longo rolo horizontal (tinta e cor sobre papel dourado, 54,6 x 2743 cm, no Museu de Arte de San Diego) que mostra, entre nuvens, uma procissão de seres celestiais, deuses, Zhang Guoxiang visto de frente e a figura da imperatriz vestida com as vestes adequadas mas estranhamente pintada sobre um papel diferente colado no rolo.

Numa longa inscrição refere-se Jiutian Xuannu, a «misteriosa Senhora dos nove céus», com quem se identifica a imperatriz e sobre quem uma fonte daoísta comenta; «De modo a sufocar o mal e fazer regressar a rectidão, foi preciso aprender a tornar-se invisível.»

12 Ago 2024

Sobre a pintura mil quilómetros de rios e montanhas de Wang Ximeng

Xi Chuan, China (1963)

trad. Jorge Sousa Braga

As cores verdes e as cores azuis fluem juntas e formam montanhas vazias. Embora algumas pessoas caminham por elas, continuam a ser montanhas vazias, como se as pessoas que caminham por lá não tivessem rostos. Mesmo assim são pessoas. Ninguém deveria tentar reconhecer-se nessas figuras ou tentar ver as verdadeiras montanhas e águas deste mundo, nem deveria pensar em tentar obter elogios casuais de Wang Ximeng. Wang Ximeng conhece essas pequenas figuras e nenhuma delas é ele mesmo.

Estas não são as suas figuras e ele não pode citar nenhuma delas pelo nome. As figuras adquirem as montanhas e as águas, assim como as montanhas adquirem a esmeralda e o lápis-lazúli, assim como as águas adquirem vastidão e barcos.

O imperador Huizong contratou Wang Ximeng aos dezoito anos, sem saber que Wang morreria logo após terminar estes milhares de quilômetros de rios e montanhas. As montanhas e as águas não têm nome. Wang Ximing percebe que as pessoas sem nome são apenas figuras decorativas nas montanhas e nas águas, assim como os pássaros que voam sabem que são insignificantes para os jogos dos homens. Os pássaros encontram-se no céu.

Entretanto, as pessoas que caminham nas montanhas têm os seus próprios itinerários e os seus próprios planos. Essas pequenas figuras de branco caminham, sentam-se à vontade, vão pescar, negociar, rodeadas de cores verdes e azuis, assim como hoje as pessoas de preto vão a banquetes, concertos e funerais, rodeadas de cores douradas e mais cores douradas.

Estas pequenas figuras vestidas de branco nunca nasceram e, portanto, nunca morreram; tal como a utopia paisagística de Wang Ximeng, são imunes à poluição e à invasão e isso merece uma consideração cuidadosa. Assim, as pessoas que estão longe dos controlos sociais não têm necessidade de ansiar pela liberdade e as pessoas que não foram destruídas pela experiência não estão preocupadas com o esquecimento.

Wang Ximeng permitiu que os pescadores tivessem um número infinito de peixes para pescar, permitiu que águas ilimitadas corressem das montanhas. Segundo ele, felicidade significa a quantidade exata de bênção para que, imersas no silêncio entre montanhas e águas, as pessoas possam construir pontes, azenhas, estradas, casas e viver tranquilamente, como as árvores que crescem nas montanhas, ao longo das margens dos rios ou ao redor de uma aldeia e das pessoas que a habitam.

Ao longe as árvores parecem flores. Quando elas se agitam é o momento em que se intensifica o vento claro. Quando o vento claro se intensifica é a altura de as pessoas cantarem. Quando as pessoas cantarem é a altura de uma montanha vazia se tornar numa montanha vazia.

24 Jul 2024

Três Procissões Pintadas Durante a Dinastia Tang

Wu Daozi (c.680-759) foi um pintor da dinastia Tang cujo nome evoca a habilidade de criar em pinturas murais cenários tão credíveis, «ousados e livres como as ondas que se desenrolam no mar» num dos quais ele, na presença de um imperador, entrou e desapareceu por entre volutas de nuvens.

Se é certo que hoje originais das suas obras ainda se não encontraram e, como ele, há muito tempo desapareceram, aqueles que as viram não esqueceram. Zhang Yanyuan escrevendo em 847, exclamou com admiração que «os deuses devem ter-lhe dado uma mão; porque a sua obra sondou a criação até ao extremo» (Lidai Minghua ji).

Para além de Wu Daozi, outros executaram pinturas murais ou para serem penduradas nas paredes de templos e são hoje testemunho do espanto e do valor que tiveram naquele tempo e para diferentes religiões, certas atitudes e práticas.

Alguns fizeram-no agindo para a corte da dinastia Tang e por isso reflectiram o sofisticado gosto dos soberanos e aristocratas. Um tema, no entanto, parece ser comum a vários delas. Para o Daoísmo, que mais do que em textos se exprime numa ortopraxia, olhar essas figuras entendíveis no contexto da prática religiosa é ao mesmo tempo deslumbrante e misterioso.

Como se vê no rolo vertical Divindade daoísta da terra (tinta, cor e ouro sobre seda, 125,5 x 55,9 cm, no Museu de Belas Artes de Boston) que já foi atribuído a Wu Daozi representando Diguan, o que perdoa os pecados numa procissão, possui a gravidade com que os soberanos impressionavam os súbditos quando passavam, ocupando e dignificando o espaço que percorriam.

Como também faz o Buda das luzes resplandecentes (tinta e cor sobre seda, 80,4 x 55, 4 cm, no Museu Britânico) que mostra a figura do Buda Tejaprabha deslocando-se num carro acompanhado de cinco planetas e que tem o mesmo efeito de sacralizar os lugares por onde transitavam.

Zhang Huaiqing o discípulo que doou a pintura em 897, colocou nela o seu nome mostrando assim a eminência dos doadores e encomendadores no complexo de Dunhuang (Gansu) de onde provém esta invulgar representação. Pintores de outras religiões figuraram um mesmo desfile sagrado com o sentido próprio da sua tradição.

Raras pinturas murais datadas dos séculos VII-IX, descobertas no início do século XX nas ruínas da antiga cidade de Qocho (Gaochang, Xinjiang) nas fronteiras do deserto de Taklamakan revelaram a antiguidade ali da presença da religião de Cristo. Uma delas mostra a procissão de Domingo de ramos (no Museu de Arte Asiática de Berlim) como se deduz por três personagens empunhando ramos de palmeira que se viram para uma figura maior (um sacerdote?) que traz na mãos um recipiente para a água e um turíbulo de onde se soltam volutas de incenso evocando o espírito, esse real invisível a que o pincel do poeta ou do pintor é capaz de dar um nome e uma aparência local.

22 Jul 2024

Alopen e Yuchi Yiseng: Estrangeiros em Chang’an

Li Shimin (598-649), que reinou como o imperador Tang Taizong, (r.626-649) numa magnimidade disponível, recebeu na sua capital Chang’an as mais exóticas personalidades, com quem partilhou a elevação do seu espírito. Nessa cordialidade para com os estranhos, que correspondia a uma calculada opção estratégica e cultural de posicionar o seu reino como guanzhong, uma terra «entre desfiladeiros», recebeu um dia um missionário oriundo de uma terra longínqua que veio caminhando ao longo da grande via continental hoje conhecida como a «Rota da Seda».

De acordo com a inscrição numa estela encontrada no século XVII em Xian (Shaanxi), a antiga Chang’an, ele vinha de Daqin (o Império Bizantino) «descobrindo por entre o azul e as nuvens, trazendo os verdadeiros e sagrados livros; contemplando a direcção dos ventos, enfrentando dificuldades e perigos», e lá chegou no ano 635.

Diz nessa inscrição que se chamava Alopen (Aluoben) e enunciava a religião de Jesus de Nazaré. Ouvindo falar o estrangeiro, Taizong não só o acolheu como permitiu que criasse uma igreja e continuasse a sua missão, que não viu muito diferente dos seus já conhecidos heróis daoístas ou sábios confucionistas, promovendo o convívio de todos.

Até quase ao fim da dinastia Tang foi permitido aos missionários, os que vieram com o cristão assírio Alopen e depois deles, a estadia no Império. Até que foram expulsos, só regressando trezentos anos depois. É possível que o carácter «portátil» da religião de Alopen, necessitando de escassos meios para se mostrar; palavras, uma cruz, pequenas figuras pintadas ou esculpidas, facilitasse o procedimento de fazer esquecer a nova religião.

Algo diferente sucedeu com a religião de Buda Sakyamuni, para a qual a existência de pinturas murais é parte integral do espaço construído dos seus templos para elucidação dos crentes e perplexidade dos visitantes. Na era de Taizong também chegou a Chang’an um artista budista cuja memória permaneceria nos tratados da pintura.

Yuchi Yisang (Visa Irasanga, activo no século VII) veio do Reino de Khotan, na Ásia central (actual Xinjiang) para servir como guarda do palácio imperial, mas logo se notabilizou na decoração de templos budistas e daoístas nas regiões de Chang’an e depois de Luoyang.

Sobre ele Zhu Jingxuan, escrevendo no fim dos Tang, a meio do século IX disse: «Os temas estrangeiros na pintura, figuras de fantasmas e formas exóticas, todos praticados por Yuchi Yiseng, foram quase completamente descontinuados.» (em Tangchao Mighua lu, «Sobre pinturas famosas do período Tang»).

Da sua obra restam escassos exemplos e de difícil autenticação, entre eles, as figuras de duas mulheres do reino de Kusha, pintadas a tinta e cor sobre seda (Villa I Tatti, Florença). O seu corpo, a primeira fronteira da expressão do espírito, move-se em harmonia numa dança.

15 Jul 2024

Yu Sheng e os Compêndios de Pássaros e Animais

Ferdinand Verbiest (Nan Huairen, 1623-88) o missionário jesuíta flamengo que mostrou ao imperador Kangxi (r. 1661-1722) o vasto alcance da ciência desenvolvida no Ocidente, tem os nomes de duas das suas obras traduzidas como atestado de autoridade num dos extraordinários compêndios em que a arte e o conhecimento científico, unidos, fizeram a justa fama do admirável reino do imperador Qianlong (r.1735-96).

Esse ambicioso albúm descritivo, escrito em duas línguas com caracteres manchus e sinográficos e meticulosamente ilustrado é também ele, não só testemunho do modo como o labor de pintores Europeus na corte imperial alterou certas percepções da representação dos volumes, como do sempre afirmado respeito pelos antigos, e até do sentimento de deferência e estima (xiao), traduzido habitualmente como «piedade filial» sentido por Qianlong em relação ao seu avô.

No minucioso Niaopu, «Compêndio das aves» (tinta e cor sobre seda, 41,2 x 43,9 cm, nos Museus do Palácio de Pequim e Taipé) de 1751, onde se encontram aves reais e mitológicas, nativas e estrangeiras e que é entendido como um tributo ao imperador em reconhecimento do poder do seu reino de múltiplos mundos, as obras de Verbiest asseguram a origem do perú como ave originária do México, conhecimento adquirido pelas navegações europeias.

Logo no início é afirmado que esta se trata de uma cópia de um original pintado por Jiang Tingxi (1669-1732) com poemas de Wang Tubing cerca de 1721 no tempo do imperador Kangxi e que nele se encontram os «trezentos e sessenta animais de penas» identificados no Liji, o Livro dos Ritos atribuído a Confúcio, e de que o fenghuang é «entre todos, o líder».

Que é o primeiro pássaro representado, seguindo uma longa tradição, nomeado já na dinastia Shang (1600-1946 a. C.) e aqui pintado com o mesmo cuidado que os outros, que denotam uma atenta observação das aves na natureza, por dois pintores da corte, um dos quais se distinguiria no género huaniaohua, a «pintura de pássaros e flores» que inclui também a figuração de peixes ou insectos.

Yu Sheng (também escrito Yu Xing, 1692-depois de 1767) fez o álbum das aves com Zhang Weibang (c.1725-c.1775) com quem continuou a inquirição taxonómica através de um Compêndio de animais, Shou pu (tinta e cor sobre seda, 40,1 x 42,5 cm, no Museu do Palácio em Pequim).

Nele, a mesma atenção aos detalhes das figuras e dos textos escritos em duas línguas por oito altos funcionários, baseados em descrições em primeira mão de quem os observou, muitos deles emissários enviados pela corte ou por autoridades locais. Para além destes ambiciosos projectos,Yu Sheng dedicou uma particular atenção às flores, silenciosas manifestações de contínua renovação cujo perfume é capaz de evocar outros tempos, outros lugares, despertando nostálgicos sentimentos até dos confins do Império.

8 Jul 2024

O Pincel Simpatico e o Carimbo Fiel de Wen Peng

Wen Zhengming (1470-1559) regressou a Suzhou em 1527 depois de três desanimadores anos na corte para cumprir um antigo ideal dos literatos, materializado no relato do poeta Tao Yuanming (365-427), em que se entende o lugar do exílio como uma oportunidade para reconhecer e partilhar com alegria, e ao mesmo tempo, a vida interior, a natureza moral do indivíduo e a beleza do local que o acolhe. E aí se fala de Jiangnan, a «Sul do Grande rio Changjiang», em cujo espaço se encontra a grande cidade de Suzhou.

Nela Wen Zhengming viveu, como convidado, num estúdio do famoso Zhuozheng yuan, o «Jardim do inábil administrador» que lhe inspiraria um ensaio e muitas pinturas e poemas. Nesse jardim que tem recantos com designações poéticas como Baixio das imensas fragrâncias, Horto que atrai os pássaros ou o Pavilhão dos pensamentos de grande alcance, o pintor reflectiu entre outras coisas, no modo como se poderiam transmitir as artes do pincel.

Numa pintura recordou as palavras do seu mestre Shen Zhou (1427-1509) ao observar uma obra que ele fizera usando os estilos de dois antigos e venerados mestres: «Não se pode simplesmente tomar Jing Hao e Guan Tong e dizer que se tem um estilo de pintura. Só quando a arte vem de dentro é que se possui rios e montanhas.»

E ele faria essa aproximação interior, notada noutras obras em que o seu pincel se confundiu de propósito com outros, como no rolo horizontal (tinta e cor sobre seda, 31,5 x 541,6 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé) A última ode do penhasco vermelho, imitando Zhao Bosu (c. 1123-82), onde também copia o texto de Su Shi que está na sua origem. Doutro modo, o seu nome apagou-se para que aparecesse o de Shen Zhou, numa prática reconhecida como daibi, «pincel emprestado».

Wen Peng (1498-1573), o filho mais velho de Wen Zhengming, viria por sua vez a assumir essa discreta adesão ao modo de fazer do seu pai. Uma vontade de partilhar presente nas duas odes de Su Shi que os dois admiravam. Numa passagem da primeira, que o seu pai ilustrou e que se vê no Instituto das Artes de Detroit (rolo vertical, tinta sobre papel, 143 x 33,5 cm), lê-se: «A brisa clara sobre o rio, o luar resplandecente entre as montanhas; o ouvido recebe primeiro criando um som, o olhar encontra o objecto e surge a cor. São coisas que podemos receber de graça e nunca se gastarão. Porque estes são os infindos tesouros da Natureza, que estão aqui para tu e eu desfrutarmos juntos.»

No álbum de pinturas Panoramas de Yixing (tinta e cor sobre seda, 31, 7 x 24, 2 cm, cada uma das dez folhas duplas, vendido na Christies) em cada cenário estão sempre dois amigos animados na partilha da beleza à sua frente.

Wen Peng distinguir-se-ia também e sobretudo no entalhe de carimbos que, se é certo que atestam com autoridade o indivíduo, são uma marca a ser reconhecida pelos outros.

1 Jul 2024

O aniversário das flores no álbum de Dong Gao

Cui Xuanwei, um velho eremita daoísta que vivia a Leste de Luoyang na dinastia Tang, regressava de uma longa jornada em busca de ingredientes para fazer um elixir, quando notou com admiração que plantas silvestres cresciam no seu jardim abandonado.

No fim desse belo e inesperado dia de Primavera, a meio de uma noite banhada pelo luar, sentiu uma leve brisa e, do lado de fora da casa, apareceu-lhe uma jovem que, com as suas irmãs, lhe pediu abrigo para passar essa noite. Entraram no pátio doze ninfas que lhe explicaram que precisavam de se refugiar ali porque nesta altura do ano estavam sujeitas a grandes ventanias.

Ele aceitou acolhê-las e, quando elas partiram no dia seguinte, dando-lhe como recompensa umas singulares pétalas que ele usou num remédio que lhe garantiu uma longa vida, disseram-lhe para colocar do lado oriental da casa uma bandeira vermelha.

No ano seguinte quando, numa manhã de Fevereiro veio uma tempestade, as flores do jardim permaneceram intactas e assim sucedeu todos os anos a seguir. A história que associa os ventos chuvosos do fim do Inverno ao despontar das flores é relatada na Extensa relação da era Taiping xinguo (Taiping guangji) do século X, mas só publicada na dinastia Ming, retomada entre outros por Feng Menglong. E é referida como estando na origem da «Festa da manhã das flores» (Huazhaojie) que se celebra em Pequim no décimo quinto dia do segundo mês lunar e explica a razão do uso nesse dia das bandeirolas vermelhas.

À comemoração das flores também se quiseram associar os literatos. O filho de um eminente pintor e funcionário imperial, Dong Bangda (1699-1769) encontraria uma forma original e engenhosa para celebrar as boninas.

Dong Gao (1740-1818), igualmente funcionário imperial influente que também foi poeta e pintor, faria um álbum de doze folhas com vinte e quatro pinturas, todas acompanhadas de poemas e que está no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, designado Ventos floridos da promessa.

Partindo da ideia de que a chegada dos ventos da Primavera mostravam o cumprimento anual de um compromisso dos Céus de conceder a beleza e as cores ao Mundo para serem apreciadas por quem as soubesse admirar, ele ilustra os vinte e quatro ventos da promessa com flores que desabrocham nesse período de quatro meses. E que correspondem a oito termos solares (jieqi) do antigo Calendário lunisolar conhecido já na dinastia Zhou (1050-771 a.C.), chamado Tang li ou Nongli. Começando a seguir ao solstício de Inverno, no vigésimo terceiro termo chamado «pequeno frio» (xiaohan) quando «a energia do yang começa a aumentar» no início de um novo ciclo, Dong mostra a abundante variedade da natureza desde as flores da ameixieira (meihua) até às perfumadas e quase púrpuras flores da amargoseira do Himalaia (melia azedarach, fulin) no sexto período, da «chuva do milho» (guyu).

17 Jun 2024

O Retrato Fictício da Senhora Hedong

Feng Menglong (1574-1646), o escritor e poeta da actual Suzhou (Jiangsu), em muitas das suas obras daria forma a um culto das emoções que se generalizava nesse final da dinastia Ming, desenvolvido em torno da palavra qing, que se refere a uma desinteressada e ardente simpatia pelos outros que, ao focar-se na importância das relações humanas, acabaria na acentuação do progressivo reconhecimento de mulheres inspiradas e inspiradoras.

Na sua ambiciosa «História das emoções» (Qingshi), parte do sofisticado impulso enciclopédico que visa não apenas conhecer o Mundo mas também o discurso sobre o Mundo, Feng Menglong recolhe mais de oitocentas histórias que provam que «as coisas nesta vida são como moedas soltas; as emoções (qing) são a corda do cordel que as junta todas.»

Entre esses relatos está o da jovem bela e talentosa Feng Xiaoqing, que não sobrevive à leitura do romance do Pavilhão das orquídeas (Mudanting, peça escrita em 1598 por Tang Xianzu) e cuja crónica confirma a fatídica relação entre o engenho e a tragédia quando entretecidos pelas emoções.

Outro influente literato do tempo, Qian Qianyi (1582-1664) achava a história demasiado perfeita para ser verdade, desconfiando da imaginação do coleccionador de emoções, sem saber que a sua própria biografia se desenrolaria como um desafio à credulidade dos leitores. A sua relação com a cantora, dançarina e poeta Liu Yin (1618-1664) que escolheu o nome Liu Rushi, «ser como um salgueiro», a árvore que simboliza a emoção da dor da separação, foi-se contando ao ritmo de palavras ordenadas como coincidências ou rimas. A saudade que ela não quis sentir, fê-la despedir-se da vida quando ele perde a sua. Quem soube desses acontecimentos, guardou a memória dessa poetisa cortesã com admiração. E os retratos pintados com a sua figura seriam acolhidos com curiosidade.

Wu Zhuo, um pintor activo no século dezassete, mais conhecido por pintar paisagens, figura como autor de um elegante e problemático retrato de Liu Rushi, aí designada por outro dos seus nomes artísticos. Nesse rolo vertical (tinta e cor sobre seda, 119,5 x 62,3 cm, no Museu de Arte de Harvard) pode ler-se numa inscrição: «Pintado para a senhora Hedong por Wu Zhuo de Huating, no Outono de 1643 na quinta de montanha da Água que limpa (Fushui shanfang)».

Referências tão específicas, como o nome artístico de Liu Rushi, Hedong Jun ou o nome da quinta de Qian Qianyi, emprestam um tom de veracidade desmentida pela própria pintura. Como a pose descontraída, carismática com uma perna levantada e indecorosa para a esposa de um circunspecto literato.

Porém, o seu olhar directo para o observador transmite uma intranquila sensação de proximidade. E é esse olhar que serve de ponte entre «os que expressam as emoções e aqueles que as não revelam e vivem em mundos diferentes», como Feng Menglong escreveu.

3 Jun 2024

A cadeira longa de Feng Xioaoqing

Su Xiaoxiao (c.479- c.501), a poeta, cantora e bailarina nascida em Qiantang (actual Hangzhou, Zhejiang) junto do rio com o mesmo nome que daria origem, no século oitavo, ao Lago do Oeste, sentia-se acolhida por um lugar único, que a recebia como se fora feito para ela viver nele.

Aqueles que guardaram a sua história para a posteridade concordaram que não podia existir melhor cenário para espelhar a sua inteligência, a sua inspiradora vitalidade poética e a sua beleza.

Os seus últimos desejos evocados numa cadenciada sequência de palavras: «Nascida em Xiling, morro em Xiling, serei sepultada em Xiling, merecedora desta paisagem.»

O imperador Qianlong, nas suas Viagens ao Sul em 1780 e 1784, faria das visitas ao túmulo de Su Xiaoxiao, um ritual imprescindível de respeito pela tradição cultural do império. Era, no entanto, apenas um dos muitos factos e lendas que até hoje servem para contar o inexplicável encanto do Lago do Oeste.

O poeta Su Shi (1037-1101), que tal como o poeta Bai Juyi, na sua qualidade de funcionários imperiais lá tiveram responsabilidades administrativas e criaram baías com os seus nomes, comparou-o à beleza fatal da cortesã Xishi, a «Senhora do Oeste», por quem «os peixes se afundaram, os cisnes tombaram, a lua se escondeu e as flores se envergonhavam», e cuja beleza fatal, distraindo o senhor da guerra, causou a derrota do Estado de Wu em 473 a. C..

Uma outra jovem e inspiradora poeta, Feng Xiaoqing (1595-1612), cuja vida breve dir-se-ia envolta nas brumas que recebem o Lago nas manhãs de Primavera, lá viveu e morreu exilada.

Da sua biografia consta um funesto presságio feito por uma freira a sua mãe para que conservasse a criança iletrada; o casamento precoce como concubina de um homem rico de nome Feng cuja primeira mulher, por ciúmes, sempre se esforçou por prejudicá-la. Estando o marido ausente, obrigou-a a viver isolada numa ilhota do Lago do Oeste, em cujas águas ela mergulharia para sempre. Procurou até destruir a sua obra literária, queimando-a. Alguns, intrigantes poemas, porém sobreviveriam.

Cui Hui, pintor activo em Pequim cerca de 1680-1720, retratou Feng Xiaoqing deitada, macilenta, com largas vestes brancas acentuando a sua magreza derramando-se sobre uma cadeira longa, por vezes chamada chundeng, «cadeira de Primavera» por ser adequada a afectuosas conversações. Que lhe seriam negadas.

Está diante de um painel com uma paisagem numa varanda onde atrás se notam folhas de bananeira que abanando tornam sensível o som do vento. Que também nada lhe diria. Num poema, ela cisma numa possibilidade:

Se, acabada de maquilhar,

fosse comparada a uma figura pintada,

quem sabe o grau que alcançaria

no Palácio Zhaoyang.

Admiro o meu reflexo pálido

nas águas do rio de Primavera.

Oh… mas ele terá de se compadecer de mim,

como eu dele me compadeço.

28 Mai 2024

A corrente entre a Beleza, a Estranheza e o Saber de Yu Ji

Hongli (1711-99), que reinaria como o imperador Qianlong (1735-96), quis como o seu avô Kangxi (1654-1722) que o seu poder reflectisse, como num espelho, todo o brilho da sabedoria acumulada ao longo de séculos. Assim, como o seu avô iniciara a grande recolha e esclarecimento de todos os caracteres da língua escrita, no dicionário designado Kangxi zidian de 1716 e na Colecção completa dos clássicos, ilustrações e livros desde os tempos remotos até à actualidade (Gujin tushu jicheng), também ele iniciaria em 1772 um formidável esforço de pesquisa e colecção do saber que nos seus três mil trezentos e oitenta e um volumes excederia a fabulosa enciclopédia de 1403-8 Yongle dadian, com os seus onze mil e noventa e cinco volumes, do imperador dos Ming, Yongle (r.1402-24).

Para concretizar esse ambicioso projecto que duraria dez anos, intitulado Siku Quanshu, «Biblioteca completa dos quatro tesouros», que são os quatro capítulos, Clássicos (jing), História (shi), Cartas (ji) e Mestres (zi); Qianlong contou com o cotributo dos sofisticados funcionários eruditos (shi dafu) da Academia Hanlin.

Um deles pode ser visto, sentado à vontade sobre uma pedra, as pernas cruzadas, um livro nas mãos, no seu jardim com dois criados, numa pintura do Museu Britânico, que o identifica no título O Senhor Shen Shuyan a ler (rolo horizontal, tinta e cor sobre papel).

O influente Ruan Yuan (1764-1849) sintetizaria o ideal que a figura pintada evoca, ao escrever no seu epitáfio: «Shen Shuyan cumpria os deveres filiais com os mais velhos, apreciava a beleza da natureza e era um ávido leitor. Empregou boa parte do seu tempo a escrever e dedicou toda a sua vida aos livros.»

O autor da pintura, o literato de Hangzhou, Yu Ji (1739-1823), membro da Academia Hanlin, participou desse grandioso desígnio do imperador Qianlong como editor da Siku Quanshu. Também como editor, foi coordenador da primeira edição impressa do curioso livro, Liaozhai zhiyi, «Estranhos contos do Estúdio de conversação» que transpõe com facilidade as fronteiras entre o mundo natural e o sobrenatural.

Yu Ji, na sua dedicação à pintura, mostrou no entanto o seu muito natural olhar fascinado pela beleza feminina, dentro daquele que era então um florescente e inovador género da pintura chamado meiren hua. Que visualmente adoptou, nalguns casos, a perspectiva europeia com um único ponto de vista e moralmente afirmou o talento, os méritos, os sacrifícios e a virtude moral de mulheres que viviam dedicadas a agradar a homens cultos, algo que elas também eram. Como se comprovará no rolo vertical Senhora num banco (tinta e cor sobre papel, 100,3 x 45,7 cm, no Museu Walters, Baltimore, MD). Com um pincel na mão, ela pondera a resposta a dar ao poema que, numa folha de árvore, lhe foi escrito e enviado no brando curso de água de um ribeiro.

20 Mai 2024

O Vento e o Guarda-vento de Wang Yun

Tianguan, o «alto funcionário da corte celeste», que na fluidez da iconopraxis das figuras do Daoísmo foi saindo dos muros dos templos e apropriado para a devoção particular, concretizada em rolos de pinturas que permitiam alguma liberdade aos seus criadores na concepção das suas formas humanas, surge numa pintura feita no período de Kangxi (1661-1722) como que empurrado pelo vento, dele se desprendendo um morcego que, por homofonia da palavra fu, se tornara um popular símbolo de felicidade.

E essa era mesmo a função de Tianguan: conceder a felicidade aos seres humanos. Na história da pintura a representação de morcegos vinha já do tempo do preclaro pintor dos Tang Wu Daozi (680-740), que os incluiu numa figuração da divindade daoísta Zhong Kui, o caçador de demónios, feita a pedido do imperador Xuanzong devido à sua capacidade de ver fantasmas de noite.

O autor desse retrato de Tianguan feito em 1716 (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 162,8 x 106, cm, no Museu de Arte de Indianapolis), o pintor de Yangzhou Wang Yun (1652-1734) faria outras figurações desse mundo descrito em relatos daoístas, como A ilha dos imortais, Fanghu, «O vaso quadrado» (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 141,9 x 60,3 cm, no Museu de Arte Nelson-Atkins) uma visão da fabulosa ilha com a forma de uma mandorla, no centro da qual se percebem palácios protegidos por grandes rochas e montanhas no meio de brumas e ondas alterosas embaladas pela ventania. Sobre uma rocha resistem, repousando, alguns grous, sinais da longevidade, quiçá da imortalidade.

Aos oitenta e um anos, o mesmo pintor representou um invulgar encontro (rolo vertical, tinta e cor sobre seda no Museu Britânico) entre um homem de barbas brancas, o seu criado e um recluso daoísta, reconhecível pelo saiote de folhas e uma cabaça, trazendo na mão um pêssego de tamanho desproporcionadamente grande, símbolo da longa vida. Estranhamente, apenas as roupas do recluso daoísta ondulam ao vento.

Wang Yun colaboraria com Yuan Jiang (1671-1746), outro pintor de Yangzhou, em duas pinturas feitas para dois biombos onde em oito painéis dobráveis (weibing) estão representadas paisagens onde se aninham palácios (246 x 490 cm cada um, no Museu Nacional de Quioto). Este objecto de mobiliário decorativo chamado pingfeng, traduz-se como guarda-vento.

É possível que esse vento que se não vê mas se guarda, enfuna as vestes dos daoístas, anima as ondas alterosas que protegem um paraíso, e se solta do imortal Tianguan conferindo felicidades, seja uma alusão à alegria. O poeta Li He (c. 790-c.816) escrevendo sobre o que está para cá e para lá de um guarda-vento autorizará essa intuição. Num poema que termina assim:

Ao luar a brisa sopra o orvalho,

Que frio do lado de fora do biombo!

Enquanto corvos crocitam nas muralhas da cidade,

Vai adormecendo a rapariga de Chu.

13 Mai 2024

O rolo consolador que Wang Ximeng fez para Huizong

Su Shi (1037-1101), no seu desassossego natural de poeta que, transbordando, deu forma a toda a sua actividade como funcionário imperial e político, envolveu-se de modo empenhado nas grandes polémicas do seu tempo. Referindo-se criticamente às Novas políticas (Xinfa) do seu adversário Wang Anshi (1021-86) cuja repetida oposição lhe haveria de custar o exílio, escreveu o poema:

Como poderia não haver falta de comida ou secas?

Os altos funcionários e as suas políticas carecem de mérito.

Quando se perde a noção adequada de governar, desastres ocorrerão.

Nenhum deles sabe como se auto-analisar.

Quando chove, rezam por céus limpos,

Quando há uma seca, desejam a neve.

Essa relação entre a acção humana e o clima desfavorável, entendido como um «castigo dos céus», estava no centro de uma estupefacção sentida por todos os que habitavam aquela região naquele tempo, um fenómeno que hoje se conhece como Anomalia Medieval do Clima, que provocou súbitas alterações climáticas com consequências funestas na agricultura. O que era tanto mais grave quanto se entendia ser o imperador, através dos adequados rituais, o regulador do bom funcionamento da cadência das estações. Com a disrupção, mais se difunde um inquietante e supersticioso sentimento de instabilidade.

Tendo ocorrido de modo especialmente gravoso durante a dinastia Song (960-1279) com o aquecimento entre 1100-1200, que atravessou o reino do imperador Huizong (1100-26) o monarca esteta, pintor e poeta, adequou a sua resposta à adversidade à expressão artística, encorajando quem lhe mostrava indícios de possibilidade, sinais auspiciosos. Um deles foi o alto funcionário Cai Jing (1047-1126) que o tranquilizaria sobre outro fenómeno tido como não auspicioso; o alinhamento de cinco planetas que foi interpretado como um potencial de desastres.

Cai Jing, súbdito erudito recorreu à memória:

Os cinco planetas movendo-se em uníssono no céu, é uma visão auspiciosa significando um futuro de grande paz. O vosso servo recorda que, de acordo com a História dos Han, quando o império alcança grande calma e tranquilidade, os cinco planetas estavam alinhados e obedeciam à regra (…)

O nome de Cai Jing aparece numa pintura invulgar, encomendada por Huizong, feita por um jovem chamado Wang Ximeng (1096-1119) de quem não se conhecem outras obras. No extenso rolo horizontal de 1113, Mil li de rios e montanhas (tinta, cores sobre seda, 51,5 x 1193 cm, no Museu do Palácio, em Pequim) Wang usou o azul e o verde (qinglu), cores ligadas à busca da imortalidade, para pintar o panorama do monte Lu e do lago Poyang, em Jiujiang. Huizong podia olhar as seis vistas sucessivas de montanhas, ligadas por pontes ou cursos de água, e tranquilizar-se naquele ritmo reconfortante que Cai Jing diz ser o seu aspecto em Abril, indicando prosperidade no ano seguinte.

8 Abr 2024

A conversação ambígua encenada por Gu Kaizhi

Zhang Hua (232-300), que foi político e poeta durante a dinastia Jin Ocidental, foi também autor de uma obra singular, o Bowuzhi, «Registo dos mais diversos assuntos», que recolhe uma plêiade de desconformes conhecimentos; desde as observáveis maravilhas da natureza até à enumeração de anomalias ou histórias sobrenaturais, do género literário zhiguai.

Entre esses relatos está, por exemplo, a descrição de uma comunidade de «mulheres selvagens», as Yenu, que viveriam isoladas no Sul e sem o acompanhamento de homens. E se não foram estas, outras mais refinadas mulheres ocuparam o seu espírito de forma constante ao longo da sua vida.

De modo significativo o seu destino político ficaria ligado a uma ambiciosa mulher, a rainha Jia Nanfeng (257-300) que reinaria «por trás dos biombos» no lugar do seu marido o imperador Huidi (290-307) que teria dificuldades intelectuais. Seria através dela que ele viria a ser nomeado para o influente cargo de ministro no Departamento de obras públicas (Gongbu). Da relação entre os dois terá nascido uma série de poemas sob o título Advertências da instrutora do palácio para as senhoras da corte, escrito como vários dos seus poemas a partir de uma voz feminina, e que teria a intenção de refrear o carácter excessivo da rainha.

Esses poemas de intenção didáctica estão na origem de um dos mais célebres rolos horizontais na aurora da pintura de ilustração narrativa, tradicionalmente atribuído a Gu Kaizhi (345-406). Dessa pintura, Nushi zhen tu, existem hoje duas cópias; uma no Museu do Palácio em Pequim e outra no Museu Britânico (tinta e cor sobre seda, 25,5 x 377,9 cm) com algumas diferenças no número de cenas e na execução. Nelas se notará como os caracteres inscritos ao lado das pinturas silentes, contêm avisos eloquentes. O que é especialmente evidente numa das cenas que só consta do rolo do Museu Britânico.

Gu Kaizhi mostra aí uma situação íntima quando um imperador se senta para conversar com uma concubina na sua alcova. A forma negligente como os dois se apresentam reforça uma impressão de hesitação e ambiguidade: ela com um braço apoiado no espaldar da cama, ele com um pé descalço, o outro ainda meio calçado, nada é evidente.

Ao contrário das palavras precisas que, como em todas as outras cenas do rolo, seriam depois nele inscritas com o texto poético de Zhang Hua, que dizem:

Se aquilo que disseres for por bem, as pessoas poderão entendê-lo à mais longa distância. Se este princípio for atacado, então até mesmo o teu companheiro de cama olhará para ti com desconfiança.

As duas formas paralelas de expressão, trocando as suas vocações, ajudam naquilo que Zhang Yanyuan (c.815-c.877) descreveu:

Ao concentrar o espírito e a meditação profunda entende-se o que existe por si só; esquecem-se ambos, a coisa pintada e o ego, a realização separa-se da forma.

25 Mar 2024

A Elegância Clássica da Família de Wang Chen

Sikong Tu (837-908) o poeta da dinastia Tang falou da natureza fugídia, intangivel, daquilo que «é natural» (ziran) com palavras que seriam acolhidas pelos estudiosos da pintura como uma maneira de descrever a mais alta categoria do seu labor, aquela mais dificilmente atingível e que se afasta sempre, como a linha do horizonte: «Curve-se e aí está;/ Não se procure à direita e à esquerda,/ Todos os caminhos para ela se afastam./ Mas com um toque, aí está a Primavera!/ Como quem depara com flores a desabrochar,/ Como quem contempla a chegada do novo ano,/ De facto não a agarrarei/ Forçada, desaparecerá».

Mas interrogar-se diante do espectáculo sublime das mutações da natureza, contemplando lugares particulares em que mais facilmente se sente um arrebatamento dos sentidos, era o mais grato dever dos poetas. Como fez Li Bai admirando a Cascata do monte Lu; «Será o Rio de prata (a Via Láctea) deslizando das nove direcções do céu?» Pintores literatos seguiriam esse olhar do vate, tornando a Montanha Lu, perto da cidade de Jiujiang na Província de Jiangxi, que era já um jardim literário desde o século V, num persistente motivo das suas pinturas em busca desse toque que tornava manifesto esse quase imperceptível fluxo do que «é natural», o ziran.

Alguns, nessa demanda projectada sobre o Monte Lu, foram célebres no seu tempo como Shen Zhou (1427-1509) autor do rolo vertical feito a tinta e cor sobre papel (193,8 x 98,1 cm) no Museu do Palácio Nacional, em Taipé. Outros, terão recebido esse olhar como uma herança de seus maiores, como Wang Chen (1720-97) que representou o Monte Lu (rolo vertical, tinta sobre papel, 132 x 63,5 cm, vendido na Sotheby’s) da forma que o poeta Sikong Tu descreveu como a «elegância clássica» (dianya), «calma como pétalas caindo e modesta como despretensiosas flores do campo».

Wang Chen vinha de uma distinta família de que fizeram parte Wang Shimin (1592-1680) e o neto dele Wang Yuanqi (1642-1715), que era seu avô. Além desse legado, ele mostrou uma disponibilidade para ser interpelado por outros como se observa no rolo horizontal Estúdio para escutar a chuva (tinta e cor sobre papel, 122 x 40,5 cm, no The Walters Museum), nome do jardim do coleccionador Zha Ying, que conta com contributos de eminentes personalidades do tempo, como Pi Yuan e Sun Xiangyan.

Numa das folhas do álbum Paisagens do natural, poesia e arte (tinta sobre papel, 41,7 x 33,5, cm, na Colecção do Instituto de Arte de Minneapolis) lembrou o poeta da cascata do monte Lu: «Uma manhã entrei no mar procurando Li Bai. Buscando em vão entre pinturas de meros mortais pelo Imortal da tinta.» E noutra página recordou outra relação entre avô e neto: «Usei o método do pincel de Shuming (Wang Meng) para pintar no estilo do velho Songxue (Zhao Mengfu). Há uma semelhança porque eles são da mesma família.”

18 Mar 2024

Livro com textos sobre obras clássicas chinesas lançado em Lisboa

Foi lançado esta quarta-feira, no Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM), em Lisboa, o livro “Textos Clássicos sobre Pintura Chinesa – Séculos VI-XVIII”, com selecção, tradução e notas de Paulo Maia e Carmo, colaborador do HM. A edição, com a chancela da Grão-Falar, pretende revelar ao público português alguns dos principais textos sobre pintura escritos pelos próprios pintores. Desta forma, podem ser lidos textos de Xie He, Yao Zui, Jing Hao, Guo Xi, Zhang Yanyuan, Zhang Geng, Shitao, Shen Hao e Wang Yuanqi.

Paulo Maia e Carmo, especialista em pintura chinesa, explicou que o trabalho de tradução destes textos se baseou em traduções já feitas do chinês para o inglês e francês, dado Portugal não ter ainda um grande “corpus crítico” sobre esta área. “Textos Clássicos sobre Pintura Chinesa” transpõe para a língua portuguesa os escritos clássicos de artistas chineses do período clássico que sempre se preocuparam em descrever o seu trabalho na tela.

Trata-se de “textos feitos por pintores”, que desde o início “tiveram a preocupação de dizer o que estavam a fazer, não apenas pintando, mas pensando sobre o que faziam, o que é algo extraordinário”. “Os pintores fizeram [essa reflexão] desde o século VI, essencialmente no período da dinastia Tang, mais com retratos. A partir do século X começam-se a pintar mais montanhas e paisagens”, frisou.

“Tendo em conta a diferença tão grande que há entre a nossa tradição e a chinesa, acrescentei neste livro bastantes notas, não trazendo só o texto. Considerei importante ter explicações sobre várias coisas que nós não conhecemos, que não são tão comuns nas nossas conversas sobre pintura”, disse ainda o tradutor.

Escrever com o pincel

Paulo Maia e Carmo destacou também, na apresentação, o facto de a pintura clássica chinesa “falar sobre tudo”. “A cultura está toda ali, desde a história ou filosofia, e a pintura constitui, de facto, uma maneira interessante de entrar na cultura chinesa.”

As diferenças face à pintura ocidental começam logo pelo uso do pincel. “A pintura chinesa é de facto muito diferente, e isso tem a ver com o uso do pincel. Começa pela ideia de que o pincel serve para escrever e para pintar, e o chinês, nesta tradição dos pintores literários, diz que vai escrever uma pintura. A ligação entre a pintura e a escrita é muito próxima. A partir do século X, o pintor escreve, pinta e faz ainda um poema por cima desse espaço. É um poema que joga com a pintura, é uma relação de complemento ao que está pintado.”

Carlos Morais José, director do HM e fundador da Grão-Falar, destacou que a edição de livros em português sobre a cultura chinesa é fundamental “para a defesa da nossa língua, para que não seja necessário recorrermos a outros idiomas para termos acesso a grandes textos”.

Importa alimentar, com estas edições, “o fascínio que é conhecermos outras culturas que não a nossa e com elas aprendermos e encantarmos”. “Este é um livro fundamental para compreendermos a estética oriental, chinesa, e aprendermos o foi escrito ao longo dos anos pelos teóricos chineses”, rematou o editor.

15 Mar 2024

Liu Shiru: de Noite o Frio, as Flores e o Ramo Ressequido

Yan Xiyuan (act.1787-1804) no seu livro de Biografias ilustradas de cem mulheres belas, com novos poemas (Baimei xinyong tuzhuan) recorda a famosa história da Princesa Shouyang que ficaria para sempre associada à surpresa anual do nascimento de flores em pleno Inverno. Pétalas dessas flores de pefume subtil, brancas, cor-de-rosa ou vermelhas, traduzidas habitualmente como flores de ameixieira, na verdade da árvore caducifólia prunus mume (meishu) originária do Leste da Ásia, cujas características são comuns a ameixieiras e a damasqueiros, caíram um dia sobre a face adormecida da Princesa Shouyang.

Esse sétimo dia do primeiro mês lunar quando a princesa passeava no palácio Hanzhang e se sentou para descansar, fechando os olhos, sendo despertada pelas suaves pétalas que lhe caíam no rosto, ficaria na memória e foi assim que o poeta a lembrou no seu livro, acompanhado de uma xilogravura feita a partir de um desenho do célebre pintor Wang Hui (1736-95). Aí, ela está sentada nos degraus do palácio, um braço apoiado no corrimão, dormitando, à espera que se cumpra o destino que se aproxima nas flores que já se vêem tombando.

Mas, se a história da princesa cativava a imaginação popular, pintores eruditos de há muito descobriam uma outra, sucinta forma de figurar aquela surpresa das flores que desafiam o frio. Um dos mais memoráveis foi o pintor da dinastia Yuan, Wang Mian (1287-1359), admirado e copiado tanto nas formas das suas pinturas como no processo até lá chegar. Nelas se observavam os elementos essenciais do assombro revelado no tempo invernoso: a noite que em breve será dia, as flores, meihua, que na homofonia mei referem a beleza feminina e alguém, um literato que as saiba contemplar e relatar com deleite, figurado nos humildes ramos ressequidos que sustentam as flores. Um dos que o imitaram nesse duplo procedimento foi um pintor de Shanyin (actual Shaoxing, Zhejiang).

Liu Shiru (c.1517 – depois de 1601) no decurso da sua longa vida dedicou-se com perseverança tanto ao estudo das pinturas de Wang Mian como à observação das reais flores prematuras. No seu rolo vertical Ramo de flor de ameixieira (tinta sobre seda, 180,3 x 98,4 cm, no Museu de Arte de Harvard) referiu um dragão, símbolo da natureza e dela, a possibilidade da nova vida «Um dragão verde ergue-se alto no ar, dir-se-ia que alcança a Via Láctea,/ Borboletas de jade voam em formas irregulares e, imaculadas, são intangíveis pela lama./ De súbito, o deus do vento Fengbo lança um assobio lancinante,/ E o esplendor da Primavera estende-se por todos os lados, de Leste a Oeste.» Liu também publicou o manual ilustrado sobre a pintura de prunus mume, Xuehu Meipu, «Manual de pintura de ameixieiras do lago de neve», repleto de elogios, provas do apreço daqueles que, como ele, de noite continuavam de olhos abertos.

14 Mar 2024

A Viagem de Huang Xiangjian em Busca Dos Seus Pais

Sakyamuni, o Buda histórico, é muitas vezes representado na companhia de dois dos seus discípulos: Ananda à sua esquerda e Mahakasyapa, à sua direita. Deste último, o reservado amante da solidão Mahakasyapa, diz-se que se recolheu numa gruta entre três picos da montanha Kukkutapada, em Magadha na Índia, onde está meditando à espera de Maitreya, o Buda do futuro, para lhe entregar as vestes e a tijela de esmolas que recebeu de Sakyamuni.

De modo sobrenatural monges budistas que viviam na montanha das Nove Curvas, Jiuqu shan, na Prefeitura de Dali, no sudoeste de Yunnan, relocalizaram ou sobreimpuseram nesse lugar, desde então sagrado, a montanha indiana e passaram a designá-la, traduzindo o nome original como montanha Jizu, a «montanha do pé de galinha», porque é formada por três elevações à frente e uma atrás, exactamente como os dedos das patas das galinhas.

Na altura da transição Ming-Qing, a montanha Jizu tornara-se uma das Cinco montanhas sagradas do Budismo, depois de Wutai, Emei, Putuo e Jiuhua e povoada, nas palavras do viajante Chen Ding, por «setenta e dois grandes templos, trezentos e sessenta mosteiros e um número incalculável de pequenos santuários.»

O pintor de Wuxian (actual Suzhou, Jiangsu) Huang Xiangjian (1609-1673) fez uma pintura (Jornada para a reunião familiar, rolo horizontal, tinta e cor sobre papel, 31,4 x 550 cm, no Museu de Arte da Universidade de Hong Kong) figurando uma peregrinação a esse lugar invulgar como parte de uma não menos excepcional viagem em que mostrou a sua elevada consideração e cumprimento da virtude da ética confuciana sobre o Amor pelos pais (xiao). Tendo o seu pai, Huang Kongzhao, sido nomeado em 1643, magistrado na distante Província de Yunnan no fim da dinastia Ming, dá-se o conflito dinástico. Ao fim de sete anos sem saber notícias dos pais, resolveu iniciar uma caminhada de quinhentos e cinquenta e oito dias, percorrendo cerca de seis mil quilómetros para os ir buscar.

Huang Xiangjian descreveria as dificuldades que passou: (…) «Vendo que as rachas nas rochas tornavam impossível caminhar, rastejei com as mãos e os joelhos durante mais dois ou três li para atingir o templo Tuzhu, lá no cume.» Mas no fim da pintura, em que mostra trinta e um lugares históricos, religiosos ou marcos geográficos faz uma grata exclamação: «Mas o meu pincel não consegue descrever as maravilhas para lá de maravilhosas e os perigos para além de perigosos que atravessei em dez mil li. Chegando ali perguntava-me se não estava já deveras numa outra esfera.»

Quando voltou dessa viagem em busca dos pais, refez a memória da jornada em pinturas que evidenciaram o seu carácter leal. Porque ao percorrer territórios e pressentindo que na paisagem, como na montanha Jizu, algo dentro parecia palpitar, cumpriu a vontade do pai que se tornara um devoto budista.

29 Jan 2024

A Via da Descoberta de Fang Yizhi

Nicolas Trigault (Jin Nige,1577-1628), o missionário jesuíta que publicou em Hangzhou no ano de 1626 um primeiro glossário de romanização de palavras chinesas, o Xiru ermu zi, «Auxílio para os olhos e ouvidos dos literatos ocidentais», fê-lo como o nome indica para ajudar os Europeus que contactavam com uma língua muito diferente da sua. E, no entanto, alguns anos depois, entre os literatos locais houve quem estivesse atento a esse sinal pioneiro de compreensão, como de resto estava a muitas outras formas e meios de expressão.

Fang Yizhi (1611-1671) elogiou esse modo económico e elegante de fazer «cada conceito ligar-se a uma única palavra e cada palavra a um único sentido, como no distante Ocidente, onde os sons se combinam com os conceitos e palavras se formam de acordo com os sons». Era a livre opinião de um letrado que fez parte daqueles súbditos dos Ming que se sentiam incómodos durante a mudança dinástica (yimin) o que influiria de modo drástico na sua vida.

Nascido em Tongcheng (Anhui) numa família onde se cultivavam as letras e desde cedo ligado a um grupo literário designado Fushe, «Sociedade da restauração», razão porque teve de partir para o Sudeste disfarçado de vendedor de remédios, ramo do conhecimento que viria a dominar. A percepção que teve desse caminho em adaptação constante – dele são conhecidos trinta e nove nomes – expressou-a no poema Du wang, «Vou sozinho»:

Meus queridos companheiros estão todos dispersos,

Pela minha parte vou sozinho para os bosques.

Num único ano mudei de nome três vezes,

Nove em dez palavras atormentam os meus ouvidos.

Habituei-me a ouvir notícias da guerra,

A minha mágoa aprofunda-se com a chuva e o vento.

Não será difícil cessar de existir,

Mas a falta de algum amigo causar-me-ia imensa dor.

Fang Yizhi deixaria tocantes pinturas que são as pegadas dessa via em que se fez acompanhar da memória de antigos pintores, como na folha de álbum Velhas árvores e pinheiros, imitando Nizan (26,8 x 2 cm, no Museu de Hunan). Mas ele que viria a abraçar a vida de monge itinerante do Budismo chan, com o nome monástico Yaodi Yuzhe, o «humilde galeno», sabia de lugares onde peregrinos eram acolhidos como a natureza recebia a vida humana, o que figurou no rolo vertical Um templo oculto nas montanhas (215,5 x 84 cm, tinta sobre papel, no Museu Nacional de Arte da China). Sentindo-se acolhido dispôs-se a conhecer de um modo objectivo. Foi o que propôs no livro Wuli xiao shi, «Notas sobre o princípio das coisas» onde se lê: «

Entre o céu e a terra tudo é medicina, tudo é uma coisa, tudo tem uma causa. Não há nada sem yin e yang, qi ou sabor bem como mutuas interações e transformações.

Com um método:

Quando seguires a razão até um ponto que não consegues entender, vira-te para algo que entendas, para o dominar – usa o concreto para compreender o escondido.

23 Jan 2024

O Regresso de Lu Guang na Primavera

Su Dongpo (1036-1101), o poeta e pintor que conhecia a vontade dos pintores se identificarem com o objecto pintado, interrogando-se sobre a pintura Eminentes moradas de imortais, do inclassificável Guo Zhongshu (c.929-977) e enlevado sobre a paisagem figurada escreveu: «Um templo daoísta pousado no meio da neblina, quem é aquela pessoa debruçada na cerca?»

A questão constantemente repetida pelos homens de cultura que conheciam a tradição, ainda reverberava no século dezoito quando o erudito autor do tratado Pushan Lunhua, Zhang Geng (1685-1760) lembrando autores que admirava, disse: «Xu Ben era honesto, puro e muito refinado enquanto Lu Tianyou e Fang Fanghu foram para lá do mundo objectivo e assim ficaram livres da poeira do Mundo e não enclausurados nos limites dos caminhos vulgares. No Liji, o Livro dos Ritos diz-se que “Aquilo que nasce da virtude é superior e o que se faz por métier é inferior”, o que é uma grande verdade.»

Um desses pintores, Lu Tianyou, também conhecido como Lu Guang (c.1300-depois de 1371) que, possuindo grande erudição, viveu livre das obrigações dos funcionários imperiais durante a transição dinástica Yuan-Ming, que ocorreu cerca de 1368, exerceria um grande fascínio sobre outros eminentes pintores.

Entre aqueles que assumiram a influência do seu espírito independente encontram-se o monge Hongren (1699-1769) ou Fang Yizhi (1611-1671). No rolo vertical Amanhecer de Primavera no terraço do elixir (Dantai chunxiao, tinta sobre papel, 61,6 x 26 cm, no Metmuseum) feito à volta de 1369, figurou uma imponente montanha onde se aninha um templo daoísta e, mais acima, um terraço com uma cerca onde não se avista ninguém debruçado. No suave amanhecer em que regressava à sua nativa Suzhou, o pintor parece pressentir o Mundo em mudança como um exemplo da alquimia do Dao.

Lu Guang, nessa pintura que fez para o seu amigo Boyong, acrescentou o poema:

Durante dez anos vagueei, sem morada certa

e longe de todos os cuidados do Mundo,

Agora, regressando pelo rio, vejo coisas

diferentes da maioria das pessoas;

Vapores transparentes como o jade

flutuam no céu sem chuva,

Raios de um elixir sobem

irradiados de um poço

e tornam-se nas nuvens do amanhecer.

De pé ao vento seguro-me ao meu bastão

rematado por uma crossa de dragão,

Há muito tempo que sinto saudades

de escutar a música que tocavas,

soprando o teu luansheng ao luar.

Feliz de estar com o venerável imortal

e longe de estrategas militares,

Sentados, admirando pinturas,

falamos sobre literatura.

Estariam também olhando, debruçados sobre a montanha pintada, atentos ao sopro da mudança, quiçá recordando aquela qualidade que o historiador Sima Qian (145-86 a. C.) notou sobre as Três montanhas sagradas: «À distância parecem nuvens, mas à medida que nos aproximamos alojam-se na água e no fim acabam sendo sopradas pelo vento.»

15 Jan 2024

Jin Chushi e o Quinto Rei Dos Infernos

Bao Zheng (999-1062), nascido perto da actual Hefei (Anhui), mais conhecido como o «juiz Bao», permaneceria na memória popular como um homem justo, defensor de camponeses e gente comum contra injustiças perpetradas por corruptos. Quando estava no seu posto de magistrado em Duanzhou (actual Zhaoqing, também conhecida como Shiuhing, Cantão) escreveu um poema que é uma declaração de princípios:

A essência da governação consiste

em possuir sempre um coração limpo,

A estratégia da vida é seguir

sempre vias direitas.

Um caule elegante tornar-se-á num pilar

e o aço refinado nunca será torcido

até se tornar um gancho.

Ratos e pardais alegram-se

quando as tulhas estão cheias,

assim como raposas e coelhos se preocupam

quando os prados secam.

Os livros de História contêm as lições

dos que já morreram;

Não deixais apenas desonras

aos vossos descendentes.

Na evolução do sincretismo religioso em que a mitologia popular vai recebendo influências do Budismo e Daoísmo, a fama do juiz suscitaria a suspeita de que ele era na verdade o quinto rei, Yanluo wang, da série dos misteriosos Dez Reis do Inferno que actuam como juízes, e como tal aparece ainda hoje nas populares «notas do inferno» que se queimam nos templos. Na radiosa capital Youdu, ele reinaria sobre todos os outros reis de Diyu, um lugar correspondente ao conceito budista Naraka, e que se traduz como «prisão da Terra», um purgatório onde são julgadas as faltas dos que morreram e se preparam para reencarnar. Um conceito que se prestava às mais ousadas expressões da fantasia e como tal foi sendo recriado em pinturas murais de templos, como avisos.

Entre os seus augustos autores conta-se o célebre Wu Daozi (act. c. 719-c.760) que terá feito uma pintura a fresco desse lugar tormentoso no templo Jingyun de Chang’an. Uma renovada curiosidade surgiria no século X quando aparece o apócrifo «Sutra dos dez reis». A que responderam atelieres de pintura, como um situado em Mingzhou, actual Ningbo (Zhejiang).

Jin Chushi, um leigo budista dessa cidade, activo no fim do século XII, é o nome que consta numa série de dez rolos verticais (tinta e cor sobre seda, 129,5 x 49,5 cm, no Metmuseum) onde aparecem os dez reis-juízes sentados em faustosas cadeiras diante de painéis com paisagens apenas sugeridas, cada um com a jurisdição sobre um tipo de faltas e de pessoas. Atrás das suas barras, os magistrados têem a cabeça coberta com o tongtian guanfu, que indica uma «ligação directa com o céu», usado por imperadores em ocasiões especiais.

Em baixo, figuras de pesadelo empurram os réus na expiação dos seus erros. No caso do quinto rei, algo que se verá noutras representações, existe um espelho para onde um demónio obriga o penitente a olhar. Será esse outro tribunal, o da consciência, o mais severo, que recordará as admonições de Bao Zheng?

9 Jan 2024

O engenho do autor do Engenho de Água

Li Zhi (1059-1109), um letrado da dinastia Song do Norte que entre os seus amigos contava eminentes espíritos livres, recordados na obra Jinan Xiansheng shiyou tanji, «Discussões com mestres e amigos», escreveu sobre outros antigos pintores que o impressionaram. Como o excêntrico e engenhoso Guo Zhongshu (c.910-977), autor do rolo vertical Viagem no rio quando a neve ia clareando, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, uma das mais impressionantes pinturas feitas no estilo jiehua, «pintura de limites». Em 1098, ao reflectir sobre dezanove Jardins famosos de Luoyang (Luoyang mingyuan ji) elogiou-o:

«Quanto à pintura de construções arquitectónicas, torres, e pavilhões, Shuxian (seu nome alternativo) alcançou o seu próprio estilo, que era o mais maravilhoso de todos. Nas suas pinturas, as vigas dos telhados, as traves, pilares e barrotes são mostrados com espaços abertos entre eles, através dos quais nos podemos movimentar. Umbrais, lintéis, janelas e vestíbulos parece que podem realmente ser atravessados, abertos e fechados (…) E de tal modo que, ao desenhar um grande edifício tudo esta à escala e não existe a mais pequena discrepância.»

Essa sofisticação da representação que impressionava os observadores alcançaria um ponto alto numa pintura em que o modo da figuração se adequa ao objecto representado. Esse rolo horizontal, que se encontra no Museu de Xangai, o Engenho de água (tinta e cor sobre seda, 53,3 x 119,2 cm) suscita imensa admiração e está envolto em dúvidas sobre a sua autoria ou o período histórico exacto em que foi feito. Wei Xian, um pintor das Cinco dinastias (907-960), é um dos nomes de autores apontados, porém uma interpretação daquilo que está na representação indicia um tempo posterior. O desenho meticuloso leva outros autores a atribuírem a sua autoria ao polímata que foi astrónomo e engenheiro mecânico entre outros, Zhang Sixun (activo durante o século X) já na dinastia Song.

Zhang Dunli (?-1100), genro do imperador Yingzong (1032-1067), e a quem são atribuídas pinturas muito diferentes que mostram a vida despreocupada de aristocratas, como Jogando cuju num pátio como passatempo (folha de álbum, tinta e cor sobre seda, 28,2 x 29,7 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé), é outro possível autor da pintura do Engenho de água.

Nela se percebe a vontade dos imperadores Song de alardear as inovações administrativas e tecnológicas. Como a da máquina que usava a força da água movendo uma azenha para moer o arroz e outros cereais, separando os grãos comestíveis da casca. Mas, desde os planificadores que, no canto superior esquerdo, se sentam para estudar o projecto, até à taberna no canto inferior direito onde trabalhadores descansam, existe todo um sistema tão organizado e laborioso que houve quem ali visse uma representação do neidan shu, a alquimia interna do daoísmo.

3 Jan 2024

A Exactidão do Palácio Mirífico de Yuan Yao

Qinwang Zheng, ou Zheng, o rei de Qin (259-210 a. C.) depois de vencer seis Estados combatentes em 221 a. C. imaginou um reinício da História que começava pela sua própria designação que passou a ser Qin Shihuang di, o «Primeiro monarca esplendoroso». Das diversas leis, formas e práticas vigentes nos outros Estados fez uma só, das muitas muralhas que protegiam cada um deles, fez só uma Grande muralha de dimensões desmesuradas, Wanli changcheng; mandou queimar livros que pudessem pôr em causa o seu pensamento e para alardear o seu vasto poder mandou erigir um fabuloso palácio em Epang no ano 212 a.C..

O destino das várias acções seria desigual. É certo que huangdi passaria a ser a nomeação de todos os futuros poderosos dirigentes a que chamamos «imperadores»; a extensa muralha, sempre acrescentada, permaneceria como um desafio; as ideias que se lhe opunham, pela sua natureza, nunca seriam contidas; o palácio de dimensões exageradas não seria acabado e como clara figuração do seu poder, objecto da ira do rebelde Xiang Yu que acabaria por conquistar Xianyang, a capital do seu reino, situada perto da actual cidade de Xian.

Mas o fogo que consumiu o palácio Epang, além das ruínas, deixou intacto o ambicioso sonho de pedra. Muitos anos depois o poeta dos Tang, Du Mu (803-852) que nunca o viu, refez na imaginação a prodigiosa construção (…) «que se estendia por mais de trezentos li, tapando o sol no céu e desde o Norte da montanha Lishan ziguezagueava para Oeste e depois virava direito para Xianyang. Dois rios (Wei e Jing) fluíam no seu curso brando em direcção aos muros do palácio. A cada cinco passos havia uma torre, a cada dez passos, um pavilhão com corredores que serpenteavam como seda ondulando. E as pontas dos beirais eram projectadas como bicos de pássaros. Cada estrutura tirava partido do terreno, mas todos estavam engenhosamente entretecidos, ou cada um aposto ao outro.» (…)

Yuan Yao (activo entre 1720-80), o pintor profissional de Yangzhou (Jiangsu), propôs mais de uma vez as formas que poderia ter o palácio que se estendia numa colina entre dois rios. Numa dessas pinturas no Museu de Belas Artes de Boston, a Vista imaginada do palácio Epang (tinta e cor sobre seda, 172,6 x 127 cm), ele utilizou o método jiehua, «pintura de limites» ou feita com réguas, e o estilo gongbi, o pincel minucioso para reproduzir o efeito de espanto que causaria a visão da construção que figurou em harmonia com a paisagem.

Adequação entre o estilo e o deslumbramento do objecto pintado que Yuan Yao partilhava com o seu familiar Yuan Jiang (1670?-1755?) outro pintor de Yangzhou com quem foi por vezes confundido. Mas se a impressão de opulência e esplendor do palácio na pintura espelhava a estabilidade política e económica do tempo, isso contrastava fortemente com a era da imensa vontade de Qin Shihuang.

18 Dez 2023

Lu Wenying, as Cores da Pintura e a Intuição da Chuva

Huizong (r.1100-1126), o imperador que cultivou as artes do pincel, terá lançado uma provocação entre os pintores da sua corte que consistia na figuração em pinturas de versos que ele propunha.

Um desses versos pode ser traduzido como: «Vai o cavalo galopando pisando flores, os seus cascos exalando fragrâncias.» Houve quem respondesse pintando um cavalo galopando livre numa floresta de flores caídas. Porém o que mereceu o aplauso do monarca mostrava: indícios de tinta vermelha no centro, o perfume, e duas borboletas esvoaçando assustadas, o cavalo acabara de passar.

Essa escolha sobre como representar ideias imbuídas do ritmo da vida, o desafio próprio da pintura, foi revelando o engenho dos autores. Um pintor na dinastia Ming mostrou em dois exemplos, uma particular adequação da intenção do criador ao formato da pintura. Juntamente com Lu Ji (act. c. 1439-1510), Lu Wenying (1421-1505) encenou num rolo horizontal a celebração num jardim, como era já então um tema habitual entre eruditos, o sexagésimo aniversário de três altos funcionários.

Nesse Encontro no jardim de bambu (Zhuyuan shouji, tinta e cor sobre seda, 33,8 x 395,4 cm, no Museu do Palácio, em Pequim) estão pintados, de maneira ritmada e em etapas como convém a um lento desenrolar, doze literatos sentados, alguns nas sofisticadas cadeiras portáteis de «costas de ferradura», jiaoyi. São reconhecíveis pelas suas cabeças ornadas pelo wushamao, o tipo de chapéu de tecido preto com duas asas exclusivo dos funcionários da corte, e estão acompanhados de sete jovens criados, um dos quais dança com um grou, o pássaro da longevidade. Todos estão identificados com uma espécie de filactério. Entre eles estão retratados os dois autores do rolo, vestidos cada um com uma das duas cores com que por vezes é referida a própria arte da pintura, danqing, o vermelhão do pigmento do cinabre (dansha) e o verde-azul do ciano (qinglu, azurite).

Lu Wenying, pintor de Zhejiang, que tal como Lu Ji foi chamado à corte no reinado de Hongzhi (r.1487-1505), também intuiu a vocação do rolo vertical para apreender uma visão única. Na pintura Tempestade numa vila junto do rio (Jiangcun fengyu, tinta e cor sobre seda, 170,5 x 103,4 cm, no Museu de Arte de Cleveland) o olhar, pelo enganoso processo da percepção simultânea, inunda-se com a violência da água precipitando-se, inclemente.

Mas se é certo que estão figuradas ondas alterosas, bandas oblíquas de tonalidades da tinta que sugerem bátegas e mesmo dois homens que se protegem com uma cobertura de palha e um guarda-chuva, o olhar descobrirá uma pequena figura que parece sorrir numa janela. Dentro de casa, protegido da intempérie, um rapaz observa o mesmo que nós: está dentro e fora da pintura. Como alguém que esteja diante da pintura, ele olha a chuva que cai mas que não saíu do pincel do pintor.

27 Nov 2023

As Dez Etapas do Chan e os Cinco Bois de Han Huang

Chen Hongshou (1598/9-1652), com a linha livre e caprichosa do seu pincel, fez uma pintura representando o momento em que Laozi (571-471 a. C.) está na iminência de passar um curso de água, uma fronteira em direcção ao Ocidente, a partir da qual mais ninguém tornaria a ver aquele que o historiador Sima Qian afirma ter sido incumbido de preservar documentos históricos.

O sábio é representado na pintura (folha de álbum, tinta e cor sobre seda, 30,2 x 26,7 cm, no Museu de Arte de Cleveland) seguindo vagarosamente montado num boi e já cumpriu a sua missão, deixando para trás o clássico do daoísmo, o Daodejing que através dos tempos iria assegurar a sua fama e glória, como indicam as flores de híbisco que na pintura estão atrás dele.

O animal lento, paciente, confiável e obstinado que o transporta também teria um lugar na memória dos vindouros, com um vínculo particular ao budismo chan. Num dos instrumentos experimentais do chan, o gong’an, mais conhecido com o nome japonês koan, há um que conta como um monge que trabalhava na cozinha do mosteiro foi interpelado pelo mestre àcerca do que estava fazendo. «Nada de mais», respondeu o monge «apenas pastoreando o boi». O mestre perguntou-lhe então «como» o estava fazendo. O monge respondeu: «Cada vez que o boi se afasta para ir comer erva, levo-o de volta ao trabalho.»

No século XII o mestre do chan, Kuoan Shiyuan (activo c.1150) propôs uma série de dez etapas de meditação, para o que escreveu dez poemas e dez ilustrações, que o praticante devia seguir para purificar o corpo e o espírito, que tem no centro a figura do boi, antiga analogia referida no Sutra do Lótus como o «boi branco», metáfora para a transcendência do samsara, o ciclo contínuo da morte e da vida. Em Shiniu tu, o mestre começa com o poema Em busca do boi, cujo primeiro verso diz: «Na grande vastidão afastando os matos, vou procurando, perseguindo-o». Nessa dinastia Song (960-1279) a figuração da figura do boi alcançaria grande popularidade mas antes já fora objecto de uma pintura excepcional.

Han Huang (723-787), um alto funcionário da dinastia Tang (618-907), é o autor do rolo horizontal Cinco bois (Wuniu tu, tinta e cor, 101,5 x 55,3 cm, no Museu do Palácio, em Pequim), considerada a mais antiga pintura sobre papel. A representação não possuía nenhum carimbo ou palavras a acompanhá-la mas tem hoje as marcas de poemas e carimbos dos coleccionadores, como imperadores, que a possuiram.

Mas dir-se-ia que a expressividade do traço gracioso e seguro de Han Huang herdara a mestria de pintores e calígrafos que o precederam, cada boi surgindo inteiramente eloquente só no risco. No final do processo proposto por Kuoan Shiyuan, o praticante, encontrado o boi, está de Regresso ao Mundo e, acompanhando o poema, o mestre mostrou-o radiante de alegria diante do Budai, o buda que ri.

30 Out 2023