O rolo consolador que Wang Ximeng fez para Huizong

Su Shi (1037-1101), no seu desassossego natural de poeta que, transbordando, deu forma a toda a sua actividade como funcionário imperial e político, envolveu-se de modo empenhado nas grandes polémicas do seu tempo. Referindo-se criticamente às Novas políticas (Xinfa) do seu adversário Wang Anshi (1021-86) cuja repetida oposição lhe haveria de custar o exílio, escreveu o poema:

Como poderia não haver falta de comida ou secas?

Os altos funcionários e as suas políticas carecem de mérito.

Quando se perde a noção adequada de governar, desastres ocorrerão.

Nenhum deles sabe como se auto-analisar.

Quando chove, rezam por céus limpos,

Quando há uma seca, desejam a neve.

Essa relação entre a acção humana e o clima desfavorável, entendido como um «castigo dos céus», estava no centro de uma estupefacção sentida por todos os que habitavam aquela região naquele tempo, um fenómeno que hoje se conhece como Anomalia Medieval do Clima, que provocou súbitas alterações climáticas com consequências funestas na agricultura. O que era tanto mais grave quanto se entendia ser o imperador, através dos adequados rituais, o regulador do bom funcionamento da cadência das estações. Com a disrupção, mais se difunde um inquietante e supersticioso sentimento de instabilidade.

Tendo ocorrido de modo especialmente gravoso durante a dinastia Song (960-1279) com o aquecimento entre 1100-1200, que atravessou o reino do imperador Huizong (1100-26) o monarca esteta, pintor e poeta, adequou a sua resposta à adversidade à expressão artística, encorajando quem lhe mostrava indícios de possibilidade, sinais auspiciosos. Um deles foi o alto funcionário Cai Jing (1047-1126) que o tranquilizaria sobre outro fenómeno tido como não auspicioso; o alinhamento de cinco planetas que foi interpretado como um potencial de desastres.

Cai Jing, súbdito erudito recorreu à memória:

Os cinco planetas movendo-se em uníssono no céu, é uma visão auspiciosa significando um futuro de grande paz. O vosso servo recorda que, de acordo com a História dos Han, quando o império alcança grande calma e tranquilidade, os cinco planetas estavam alinhados e obedeciam à regra (…)

O nome de Cai Jing aparece numa pintura invulgar, encomendada por Huizong, feita por um jovem chamado Wang Ximeng (1096-1119) de quem não se conhecem outras obras. No extenso rolo horizontal de 1113, Mil li de rios e montanhas (tinta, cores sobre seda, 51,5 x 1193 cm, no Museu do Palácio, em Pequim) Wang usou o azul e o verde (qinglu), cores ligadas à busca da imortalidade, para pintar o panorama do monte Lu e do lago Poyang, em Jiujiang. Huizong podia olhar as seis vistas sucessivas de montanhas, ligadas por pontes ou cursos de água, e tranquilizar-se naquele ritmo reconfortante que Cai Jing diz ser o seu aspecto em Abril, indicando prosperidade no ano seguinte.

8 Abr 2024

A conversação ambígua encenada por Gu Kaizhi

Zhang Hua (232-300), que foi político e poeta durante a dinastia Jin Ocidental, foi também autor de uma obra singular, o Bowuzhi, «Registo dos mais diversos assuntos», que recolhe uma plêiade de desconformes conhecimentos; desde as observáveis maravilhas da natureza até à enumeração de anomalias ou histórias sobrenaturais, do género literário zhiguai.

Entre esses relatos está, por exemplo, a descrição de uma comunidade de «mulheres selvagens», as Yenu, que viveriam isoladas no Sul e sem o acompanhamento de homens. E se não foram estas, outras mais refinadas mulheres ocuparam o seu espírito de forma constante ao longo da sua vida.

De modo significativo o seu destino político ficaria ligado a uma ambiciosa mulher, a rainha Jia Nanfeng (257-300) que reinaria «por trás dos biombos» no lugar do seu marido o imperador Huidi (290-307) que teria dificuldades intelectuais. Seria através dela que ele viria a ser nomeado para o influente cargo de ministro no Departamento de obras públicas (Gongbu). Da relação entre os dois terá nascido uma série de poemas sob o título Advertências da instrutora do palácio para as senhoras da corte, escrito como vários dos seus poemas a partir de uma voz feminina, e que teria a intenção de refrear o carácter excessivo da rainha.

Esses poemas de intenção didáctica estão na origem de um dos mais célebres rolos horizontais na aurora da pintura de ilustração narrativa, tradicionalmente atribuído a Gu Kaizhi (345-406). Dessa pintura, Nushi zhen tu, existem hoje duas cópias; uma no Museu do Palácio em Pequim e outra no Museu Britânico (tinta e cor sobre seda, 25,5 x 377,9 cm) com algumas diferenças no número de cenas e na execução. Nelas se notará como os caracteres inscritos ao lado das pinturas silentes, contêm avisos eloquentes. O que é especialmente evidente numa das cenas que só consta do rolo do Museu Britânico.

Gu Kaizhi mostra aí uma situação íntima quando um imperador se senta para conversar com uma concubina na sua alcova. A forma negligente como os dois se apresentam reforça uma impressão de hesitação e ambiguidade: ela com um braço apoiado no espaldar da cama, ele com um pé descalço, o outro ainda meio calçado, nada é evidente.

Ao contrário das palavras precisas que, como em todas as outras cenas do rolo, seriam depois nele inscritas com o texto poético de Zhang Hua, que dizem:

Se aquilo que disseres for por bem, as pessoas poderão entendê-lo à mais longa distância. Se este princípio for atacado, então até mesmo o teu companheiro de cama olhará para ti com desconfiança.

As duas formas paralelas de expressão, trocando as suas vocações, ajudam naquilo que Zhang Yanyuan (c.815-c.877) descreveu:

Ao concentrar o espírito e a meditação profunda entende-se o que existe por si só; esquecem-se ambos, a coisa pintada e o ego, a realização separa-se da forma.

25 Mar 2024

A Elegância Clássica da Família de Wang Chen

Sikong Tu (837-908) o poeta da dinastia Tang falou da natureza fugídia, intangivel, daquilo que «é natural» (ziran) com palavras que seriam acolhidas pelos estudiosos da pintura como uma maneira de descrever a mais alta categoria do seu labor, aquela mais dificilmente atingível e que se afasta sempre, como a linha do horizonte: «Curve-se e aí está;/ Não se procure à direita e à esquerda,/ Todos os caminhos para ela se afastam./ Mas com um toque, aí está a Primavera!/ Como quem depara com flores a desabrochar,/ Como quem contempla a chegada do novo ano,/ De facto não a agarrarei/ Forçada, desaparecerá».

Mas interrogar-se diante do espectáculo sublime das mutações da natureza, contemplando lugares particulares em que mais facilmente se sente um arrebatamento dos sentidos, era o mais grato dever dos poetas. Como fez Li Bai admirando a Cascata do monte Lu; «Será o Rio de prata (a Via Láctea) deslizando das nove direcções do céu?» Pintores literatos seguiriam esse olhar do vate, tornando a Montanha Lu, perto da cidade de Jiujiang na Província de Jiangxi, que era já um jardim literário desde o século V, num persistente motivo das suas pinturas em busca desse toque que tornava manifesto esse quase imperceptível fluxo do que «é natural», o ziran.

Alguns, nessa demanda projectada sobre o Monte Lu, foram célebres no seu tempo como Shen Zhou (1427-1509) autor do rolo vertical feito a tinta e cor sobre papel (193,8 x 98,1 cm) no Museu do Palácio Nacional, em Taipé. Outros, terão recebido esse olhar como uma herança de seus maiores, como Wang Chen (1720-97) que representou o Monte Lu (rolo vertical, tinta sobre papel, 132 x 63,5 cm, vendido na Sotheby’s) da forma que o poeta Sikong Tu descreveu como a «elegância clássica» (dianya), «calma como pétalas caindo e modesta como despretensiosas flores do campo».

Wang Chen vinha de uma distinta família de que fizeram parte Wang Shimin (1592-1680) e o neto dele Wang Yuanqi (1642-1715), que era seu avô. Além desse legado, ele mostrou uma disponibilidade para ser interpelado por outros como se observa no rolo horizontal Estúdio para escutar a chuva (tinta e cor sobre papel, 122 x 40,5 cm, no The Walters Museum), nome do jardim do coleccionador Zha Ying, que conta com contributos de eminentes personalidades do tempo, como Pi Yuan e Sun Xiangyan.

Numa das folhas do álbum Paisagens do natural, poesia e arte (tinta sobre papel, 41,7 x 33,5, cm, na Colecção do Instituto de Arte de Minneapolis) lembrou o poeta da cascata do monte Lu: «Uma manhã entrei no mar procurando Li Bai. Buscando em vão entre pinturas de meros mortais pelo Imortal da tinta.» E noutra página recordou outra relação entre avô e neto: «Usei o método do pincel de Shuming (Wang Meng) para pintar no estilo do velho Songxue (Zhao Mengfu). Há uma semelhança porque eles são da mesma família.”

18 Mar 2024

Livro com textos sobre obras clássicas chinesas lançado em Lisboa

Foi lançado esta quarta-feira, no Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM), em Lisboa, o livro “Textos Clássicos sobre Pintura Chinesa – Séculos VI-XVIII”, com selecção, tradução e notas de Paulo Maia e Carmo, colaborador do HM. A edição, com a chancela da Grão-Falar, pretende revelar ao público português alguns dos principais textos sobre pintura escritos pelos próprios pintores. Desta forma, podem ser lidos textos de Xie He, Yao Zui, Jing Hao, Guo Xi, Zhang Yanyuan, Zhang Geng, Shitao, Shen Hao e Wang Yuanqi.

Paulo Maia e Carmo, especialista em pintura chinesa, explicou que o trabalho de tradução destes textos se baseou em traduções já feitas do chinês para o inglês e francês, dado Portugal não ter ainda um grande “corpus crítico” sobre esta área. “Textos Clássicos sobre Pintura Chinesa” transpõe para a língua portuguesa os escritos clássicos de artistas chineses do período clássico que sempre se preocuparam em descrever o seu trabalho na tela.

Trata-se de “textos feitos por pintores”, que desde o início “tiveram a preocupação de dizer o que estavam a fazer, não apenas pintando, mas pensando sobre o que faziam, o que é algo extraordinário”. “Os pintores fizeram [essa reflexão] desde o século VI, essencialmente no período da dinastia Tang, mais com retratos. A partir do século X começam-se a pintar mais montanhas e paisagens”, frisou.

“Tendo em conta a diferença tão grande que há entre a nossa tradição e a chinesa, acrescentei neste livro bastantes notas, não trazendo só o texto. Considerei importante ter explicações sobre várias coisas que nós não conhecemos, que não são tão comuns nas nossas conversas sobre pintura”, disse ainda o tradutor.

Escrever com o pincel

Paulo Maia e Carmo destacou também, na apresentação, o facto de a pintura clássica chinesa “falar sobre tudo”. “A cultura está toda ali, desde a história ou filosofia, e a pintura constitui, de facto, uma maneira interessante de entrar na cultura chinesa.”

As diferenças face à pintura ocidental começam logo pelo uso do pincel. “A pintura chinesa é de facto muito diferente, e isso tem a ver com o uso do pincel. Começa pela ideia de que o pincel serve para escrever e para pintar, e o chinês, nesta tradição dos pintores literários, diz que vai escrever uma pintura. A ligação entre a pintura e a escrita é muito próxima. A partir do século X, o pintor escreve, pinta e faz ainda um poema por cima desse espaço. É um poema que joga com a pintura, é uma relação de complemento ao que está pintado.”

Carlos Morais José, director do HM e fundador da Grão-Falar, destacou que a edição de livros em português sobre a cultura chinesa é fundamental “para a defesa da nossa língua, para que não seja necessário recorrermos a outros idiomas para termos acesso a grandes textos”.

Importa alimentar, com estas edições, “o fascínio que é conhecermos outras culturas que não a nossa e com elas aprendermos e encantarmos”. “Este é um livro fundamental para compreendermos a estética oriental, chinesa, e aprendermos o foi escrito ao longo dos anos pelos teóricos chineses”, rematou o editor.

15 Mar 2024

Liu Shiru: de Noite o Frio, as Flores e o Ramo Ressequido

Yan Xiyuan (act.1787-1804) no seu livro de Biografias ilustradas de cem mulheres belas, com novos poemas (Baimei xinyong tuzhuan) recorda a famosa história da Princesa Shouyang que ficaria para sempre associada à surpresa anual do nascimento de flores em pleno Inverno. Pétalas dessas flores de pefume subtil, brancas, cor-de-rosa ou vermelhas, traduzidas habitualmente como flores de ameixieira, na verdade da árvore caducifólia prunus mume (meishu) originária do Leste da Ásia, cujas características são comuns a ameixieiras e a damasqueiros, caíram um dia sobre a face adormecida da Princesa Shouyang.

Esse sétimo dia do primeiro mês lunar quando a princesa passeava no palácio Hanzhang e se sentou para descansar, fechando os olhos, sendo despertada pelas suaves pétalas que lhe caíam no rosto, ficaria na memória e foi assim que o poeta a lembrou no seu livro, acompanhado de uma xilogravura feita a partir de um desenho do célebre pintor Wang Hui (1736-95). Aí, ela está sentada nos degraus do palácio, um braço apoiado no corrimão, dormitando, à espera que se cumpra o destino que se aproxima nas flores que já se vêem tombando.

Mas, se a história da princesa cativava a imaginação popular, pintores eruditos de há muito descobriam uma outra, sucinta forma de figurar aquela surpresa das flores que desafiam o frio. Um dos mais memoráveis foi o pintor da dinastia Yuan, Wang Mian (1287-1359), admirado e copiado tanto nas formas das suas pinturas como no processo até lá chegar. Nelas se observavam os elementos essenciais do assombro revelado no tempo invernoso: a noite que em breve será dia, as flores, meihua, que na homofonia mei referem a beleza feminina e alguém, um literato que as saiba contemplar e relatar com deleite, figurado nos humildes ramos ressequidos que sustentam as flores. Um dos que o imitaram nesse duplo procedimento foi um pintor de Shanyin (actual Shaoxing, Zhejiang).

Liu Shiru (c.1517 – depois de 1601) no decurso da sua longa vida dedicou-se com perseverança tanto ao estudo das pinturas de Wang Mian como à observação das reais flores prematuras. No seu rolo vertical Ramo de flor de ameixieira (tinta sobre seda, 180,3 x 98,4 cm, no Museu de Arte de Harvard) referiu um dragão, símbolo da natureza e dela, a possibilidade da nova vida «Um dragão verde ergue-se alto no ar, dir-se-ia que alcança a Via Láctea,/ Borboletas de jade voam em formas irregulares e, imaculadas, são intangíveis pela lama./ De súbito, o deus do vento Fengbo lança um assobio lancinante,/ E o esplendor da Primavera estende-se por todos os lados, de Leste a Oeste.» Liu também publicou o manual ilustrado sobre a pintura de prunus mume, Xuehu Meipu, «Manual de pintura de ameixieiras do lago de neve», repleto de elogios, provas do apreço daqueles que, como ele, de noite continuavam de olhos abertos.

14 Mar 2024

A Viagem de Huang Xiangjian em Busca Dos Seus Pais

Sakyamuni, o Buda histórico, é muitas vezes representado na companhia de dois dos seus discípulos: Ananda à sua esquerda e Mahakasyapa, à sua direita. Deste último, o reservado amante da solidão Mahakasyapa, diz-se que se recolheu numa gruta entre três picos da montanha Kukkutapada, em Magadha na Índia, onde está meditando à espera de Maitreya, o Buda do futuro, para lhe entregar as vestes e a tijela de esmolas que recebeu de Sakyamuni.

De modo sobrenatural monges budistas que viviam na montanha das Nove Curvas, Jiuqu shan, na Prefeitura de Dali, no sudoeste de Yunnan, relocalizaram ou sobreimpuseram nesse lugar, desde então sagrado, a montanha indiana e passaram a designá-la, traduzindo o nome original como montanha Jizu, a «montanha do pé de galinha», porque é formada por três elevações à frente e uma atrás, exactamente como os dedos das patas das galinhas.

Na altura da transição Ming-Qing, a montanha Jizu tornara-se uma das Cinco montanhas sagradas do Budismo, depois de Wutai, Emei, Putuo e Jiuhua e povoada, nas palavras do viajante Chen Ding, por «setenta e dois grandes templos, trezentos e sessenta mosteiros e um número incalculável de pequenos santuários.»

O pintor de Wuxian (actual Suzhou, Jiangsu) Huang Xiangjian (1609-1673) fez uma pintura (Jornada para a reunião familiar, rolo horizontal, tinta e cor sobre papel, 31,4 x 550 cm, no Museu de Arte da Universidade de Hong Kong) figurando uma peregrinação a esse lugar invulgar como parte de uma não menos excepcional viagem em que mostrou a sua elevada consideração e cumprimento da virtude da ética confuciana sobre o Amor pelos pais (xiao). Tendo o seu pai, Huang Kongzhao, sido nomeado em 1643, magistrado na distante Província de Yunnan no fim da dinastia Ming, dá-se o conflito dinástico. Ao fim de sete anos sem saber notícias dos pais, resolveu iniciar uma caminhada de quinhentos e cinquenta e oito dias, percorrendo cerca de seis mil quilómetros para os ir buscar.

Huang Xiangjian descreveria as dificuldades que passou: (…) «Vendo que as rachas nas rochas tornavam impossível caminhar, rastejei com as mãos e os joelhos durante mais dois ou três li para atingir o templo Tuzhu, lá no cume.» Mas no fim da pintura, em que mostra trinta e um lugares históricos, religiosos ou marcos geográficos faz uma grata exclamação: «Mas o meu pincel não consegue descrever as maravilhas para lá de maravilhosas e os perigos para além de perigosos que atravessei em dez mil li. Chegando ali perguntava-me se não estava já deveras numa outra esfera.»

Quando voltou dessa viagem em busca dos pais, refez a memória da jornada em pinturas que evidenciaram o seu carácter leal. Porque ao percorrer territórios e pressentindo que na paisagem, como na montanha Jizu, algo dentro parecia palpitar, cumpriu a vontade do pai que se tornara um devoto budista.

29 Jan 2024

A Via da Descoberta de Fang Yizhi

Nicolas Trigault (Jin Nige,1577-1628), o missionário jesuíta que publicou em Hangzhou no ano de 1626 um primeiro glossário de romanização de palavras chinesas, o Xiru ermu zi, «Auxílio para os olhos e ouvidos dos literatos ocidentais», fê-lo como o nome indica para ajudar os Europeus que contactavam com uma língua muito diferente da sua. E, no entanto, alguns anos depois, entre os literatos locais houve quem estivesse atento a esse sinal pioneiro de compreensão, como de resto estava a muitas outras formas e meios de expressão.

Fang Yizhi (1611-1671) elogiou esse modo económico e elegante de fazer «cada conceito ligar-se a uma única palavra e cada palavra a um único sentido, como no distante Ocidente, onde os sons se combinam com os conceitos e palavras se formam de acordo com os sons». Era a livre opinião de um letrado que fez parte daqueles súbditos dos Ming que se sentiam incómodos durante a mudança dinástica (yimin) o que influiria de modo drástico na sua vida.

Nascido em Tongcheng (Anhui) numa família onde se cultivavam as letras e desde cedo ligado a um grupo literário designado Fushe, «Sociedade da restauração», razão porque teve de partir para o Sudeste disfarçado de vendedor de remédios, ramo do conhecimento que viria a dominar. A percepção que teve desse caminho em adaptação constante – dele são conhecidos trinta e nove nomes – expressou-a no poema Du wang, «Vou sozinho»:

Meus queridos companheiros estão todos dispersos,

Pela minha parte vou sozinho para os bosques.

Num único ano mudei de nome três vezes,

Nove em dez palavras atormentam os meus ouvidos.

Habituei-me a ouvir notícias da guerra,

A minha mágoa aprofunda-se com a chuva e o vento.

Não será difícil cessar de existir,

Mas a falta de algum amigo causar-me-ia imensa dor.

Fang Yizhi deixaria tocantes pinturas que são as pegadas dessa via em que se fez acompanhar da memória de antigos pintores, como na folha de álbum Velhas árvores e pinheiros, imitando Nizan (26,8 x 2 cm, no Museu de Hunan). Mas ele que viria a abraçar a vida de monge itinerante do Budismo chan, com o nome monástico Yaodi Yuzhe, o «humilde galeno», sabia de lugares onde peregrinos eram acolhidos como a natureza recebia a vida humana, o que figurou no rolo vertical Um templo oculto nas montanhas (215,5 x 84 cm, tinta sobre papel, no Museu Nacional de Arte da China). Sentindo-se acolhido dispôs-se a conhecer de um modo objectivo. Foi o que propôs no livro Wuli xiao shi, «Notas sobre o princípio das coisas» onde se lê: «

Entre o céu e a terra tudo é medicina, tudo é uma coisa, tudo tem uma causa. Não há nada sem yin e yang, qi ou sabor bem como mutuas interações e transformações.

Com um método:

Quando seguires a razão até um ponto que não consegues entender, vira-te para algo que entendas, para o dominar – usa o concreto para compreender o escondido.

23 Jan 2024

O Regresso de Lu Guang na Primavera

Su Dongpo (1036-1101), o poeta e pintor que conhecia a vontade dos pintores se identificarem com o objecto pintado, interrogando-se sobre a pintura Eminentes moradas de imortais, do inclassificável Guo Zhongshu (c.929-977) e enlevado sobre a paisagem figurada escreveu: «Um templo daoísta pousado no meio da neblina, quem é aquela pessoa debruçada na cerca?»

A questão constantemente repetida pelos homens de cultura que conheciam a tradição, ainda reverberava no século dezoito quando o erudito autor do tratado Pushan Lunhua, Zhang Geng (1685-1760) lembrando autores que admirava, disse: «Xu Ben era honesto, puro e muito refinado enquanto Lu Tianyou e Fang Fanghu foram para lá do mundo objectivo e assim ficaram livres da poeira do Mundo e não enclausurados nos limites dos caminhos vulgares. No Liji, o Livro dos Ritos diz-se que “Aquilo que nasce da virtude é superior e o que se faz por métier é inferior”, o que é uma grande verdade.»

Um desses pintores, Lu Tianyou, também conhecido como Lu Guang (c.1300-depois de 1371) que, possuindo grande erudição, viveu livre das obrigações dos funcionários imperiais durante a transição dinástica Yuan-Ming, que ocorreu cerca de 1368, exerceria um grande fascínio sobre outros eminentes pintores.

Entre aqueles que assumiram a influência do seu espírito independente encontram-se o monge Hongren (1699-1769) ou Fang Yizhi (1611-1671). No rolo vertical Amanhecer de Primavera no terraço do elixir (Dantai chunxiao, tinta sobre papel, 61,6 x 26 cm, no Metmuseum) feito à volta de 1369, figurou uma imponente montanha onde se aninha um templo daoísta e, mais acima, um terraço com uma cerca onde não se avista ninguém debruçado. No suave amanhecer em que regressava à sua nativa Suzhou, o pintor parece pressentir o Mundo em mudança como um exemplo da alquimia do Dao.

Lu Guang, nessa pintura que fez para o seu amigo Boyong, acrescentou o poema:

Durante dez anos vagueei, sem morada certa

e longe de todos os cuidados do Mundo,

Agora, regressando pelo rio, vejo coisas

diferentes da maioria das pessoas;

Vapores transparentes como o jade

flutuam no céu sem chuva,

Raios de um elixir sobem

irradiados de um poço

e tornam-se nas nuvens do amanhecer.

De pé ao vento seguro-me ao meu bastão

rematado por uma crossa de dragão,

Há muito tempo que sinto saudades

de escutar a música que tocavas,

soprando o teu luansheng ao luar.

Feliz de estar com o venerável imortal

e longe de estrategas militares,

Sentados, admirando pinturas,

falamos sobre literatura.

Estariam também olhando, debruçados sobre a montanha pintada, atentos ao sopro da mudança, quiçá recordando aquela qualidade que o historiador Sima Qian (145-86 a. C.) notou sobre as Três montanhas sagradas: «À distância parecem nuvens, mas à medida que nos aproximamos alojam-se na água e no fim acabam sendo sopradas pelo vento.»

15 Jan 2024

Jin Chushi e o Quinto Rei Dos Infernos

Bao Zheng (999-1062), nascido perto da actual Hefei (Anhui), mais conhecido como o «juiz Bao», permaneceria na memória popular como um homem justo, defensor de camponeses e gente comum contra injustiças perpetradas por corruptos. Quando estava no seu posto de magistrado em Duanzhou (actual Zhaoqing, também conhecida como Shiuhing, Cantão) escreveu um poema que é uma declaração de princípios:

A essência da governação consiste

em possuir sempre um coração limpo,

A estratégia da vida é seguir

sempre vias direitas.

Um caule elegante tornar-se-á num pilar

e o aço refinado nunca será torcido

até se tornar um gancho.

Ratos e pardais alegram-se

quando as tulhas estão cheias,

assim como raposas e coelhos se preocupam

quando os prados secam.

Os livros de História contêm as lições

dos que já morreram;

Não deixais apenas desonras

aos vossos descendentes.

Na evolução do sincretismo religioso em que a mitologia popular vai recebendo influências do Budismo e Daoísmo, a fama do juiz suscitaria a suspeita de que ele era na verdade o quinto rei, Yanluo wang, da série dos misteriosos Dez Reis do Inferno que actuam como juízes, e como tal aparece ainda hoje nas populares «notas do inferno» que se queimam nos templos. Na radiosa capital Youdu, ele reinaria sobre todos os outros reis de Diyu, um lugar correspondente ao conceito budista Naraka, e que se traduz como «prisão da Terra», um purgatório onde são julgadas as faltas dos que morreram e se preparam para reencarnar. Um conceito que se prestava às mais ousadas expressões da fantasia e como tal foi sendo recriado em pinturas murais de templos, como avisos.

Entre os seus augustos autores conta-se o célebre Wu Daozi (act. c. 719-c.760) que terá feito uma pintura a fresco desse lugar tormentoso no templo Jingyun de Chang’an. Uma renovada curiosidade surgiria no século X quando aparece o apócrifo «Sutra dos dez reis». A que responderam atelieres de pintura, como um situado em Mingzhou, actual Ningbo (Zhejiang).

Jin Chushi, um leigo budista dessa cidade, activo no fim do século XII, é o nome que consta numa série de dez rolos verticais (tinta e cor sobre seda, 129,5 x 49,5 cm, no Metmuseum) onde aparecem os dez reis-juízes sentados em faustosas cadeiras diante de painéis com paisagens apenas sugeridas, cada um com a jurisdição sobre um tipo de faltas e de pessoas. Atrás das suas barras, os magistrados têem a cabeça coberta com o tongtian guanfu, que indica uma «ligação directa com o céu», usado por imperadores em ocasiões especiais.

Em baixo, figuras de pesadelo empurram os réus na expiação dos seus erros. No caso do quinto rei, algo que se verá noutras representações, existe um espelho para onde um demónio obriga o penitente a olhar. Será esse outro tribunal, o da consciência, o mais severo, que recordará as admonições de Bao Zheng?

9 Jan 2024

O engenho do autor do Engenho de Água

Li Zhi (1059-1109), um letrado da dinastia Song do Norte que entre os seus amigos contava eminentes espíritos livres, recordados na obra Jinan Xiansheng shiyou tanji, «Discussões com mestres e amigos», escreveu sobre outros antigos pintores que o impressionaram. Como o excêntrico e engenhoso Guo Zhongshu (c.910-977), autor do rolo vertical Viagem no rio quando a neve ia clareando, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, uma das mais impressionantes pinturas feitas no estilo jiehua, «pintura de limites». Em 1098, ao reflectir sobre dezanove Jardins famosos de Luoyang (Luoyang mingyuan ji) elogiou-o:

«Quanto à pintura de construções arquitectónicas, torres, e pavilhões, Shuxian (seu nome alternativo) alcançou o seu próprio estilo, que era o mais maravilhoso de todos. Nas suas pinturas, as vigas dos telhados, as traves, pilares e barrotes são mostrados com espaços abertos entre eles, através dos quais nos podemos movimentar. Umbrais, lintéis, janelas e vestíbulos parece que podem realmente ser atravessados, abertos e fechados (…) E de tal modo que, ao desenhar um grande edifício tudo esta à escala e não existe a mais pequena discrepância.»

Essa sofisticação da representação que impressionava os observadores alcançaria um ponto alto numa pintura em que o modo da figuração se adequa ao objecto representado. Esse rolo horizontal, que se encontra no Museu de Xangai, o Engenho de água (tinta e cor sobre seda, 53,3 x 119,2 cm) suscita imensa admiração e está envolto em dúvidas sobre a sua autoria ou o período histórico exacto em que foi feito. Wei Xian, um pintor das Cinco dinastias (907-960), é um dos nomes de autores apontados, porém uma interpretação daquilo que está na representação indicia um tempo posterior. O desenho meticuloso leva outros autores a atribuírem a sua autoria ao polímata que foi astrónomo e engenheiro mecânico entre outros, Zhang Sixun (activo durante o século X) já na dinastia Song.

Zhang Dunli (?-1100), genro do imperador Yingzong (1032-1067), e a quem são atribuídas pinturas muito diferentes que mostram a vida despreocupada de aristocratas, como Jogando cuju num pátio como passatempo (folha de álbum, tinta e cor sobre seda, 28,2 x 29,7 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé), é outro possível autor da pintura do Engenho de água.

Nela se percebe a vontade dos imperadores Song de alardear as inovações administrativas e tecnológicas. Como a da máquina que usava a força da água movendo uma azenha para moer o arroz e outros cereais, separando os grãos comestíveis da casca. Mas, desde os planificadores que, no canto superior esquerdo, se sentam para estudar o projecto, até à taberna no canto inferior direito onde trabalhadores descansam, existe todo um sistema tão organizado e laborioso que houve quem ali visse uma representação do neidan shu, a alquimia interna do daoísmo.

3 Jan 2024

A Exactidão do Palácio Mirífico de Yuan Yao

Qinwang Zheng, ou Zheng, o rei de Qin (259-210 a. C.) depois de vencer seis Estados combatentes em 221 a. C. imaginou um reinício da História que começava pela sua própria designação que passou a ser Qin Shihuang di, o «Primeiro monarca esplendoroso». Das diversas leis, formas e práticas vigentes nos outros Estados fez uma só, das muitas muralhas que protegiam cada um deles, fez só uma Grande muralha de dimensões desmesuradas, Wanli changcheng; mandou queimar livros que pudessem pôr em causa o seu pensamento e para alardear o seu vasto poder mandou erigir um fabuloso palácio em Epang no ano 212 a.C..

O destino das várias acções seria desigual. É certo que huangdi passaria a ser a nomeação de todos os futuros poderosos dirigentes a que chamamos «imperadores»; a extensa muralha, sempre acrescentada, permaneceria como um desafio; as ideias que se lhe opunham, pela sua natureza, nunca seriam contidas; o palácio de dimensões exageradas não seria acabado e como clara figuração do seu poder, objecto da ira do rebelde Xiang Yu que acabaria por conquistar Xianyang, a capital do seu reino, situada perto da actual cidade de Xian.

Mas o fogo que consumiu o palácio Epang, além das ruínas, deixou intacto o ambicioso sonho de pedra. Muitos anos depois o poeta dos Tang, Du Mu (803-852) que nunca o viu, refez na imaginação a prodigiosa construção (…) «que se estendia por mais de trezentos li, tapando o sol no céu e desde o Norte da montanha Lishan ziguezagueava para Oeste e depois virava direito para Xianyang. Dois rios (Wei e Jing) fluíam no seu curso brando em direcção aos muros do palácio. A cada cinco passos havia uma torre, a cada dez passos, um pavilhão com corredores que serpenteavam como seda ondulando. E as pontas dos beirais eram projectadas como bicos de pássaros. Cada estrutura tirava partido do terreno, mas todos estavam engenhosamente entretecidos, ou cada um aposto ao outro.» (…)

Yuan Yao (activo entre 1720-80), o pintor profissional de Yangzhou (Jiangsu), propôs mais de uma vez as formas que poderia ter o palácio que se estendia numa colina entre dois rios. Numa dessas pinturas no Museu de Belas Artes de Boston, a Vista imaginada do palácio Epang (tinta e cor sobre seda, 172,6 x 127 cm), ele utilizou o método jiehua, «pintura de limites» ou feita com réguas, e o estilo gongbi, o pincel minucioso para reproduzir o efeito de espanto que causaria a visão da construção que figurou em harmonia com a paisagem.

Adequação entre o estilo e o deslumbramento do objecto pintado que Yuan Yao partilhava com o seu familiar Yuan Jiang (1670?-1755?) outro pintor de Yangzhou com quem foi por vezes confundido. Mas se a impressão de opulência e esplendor do palácio na pintura espelhava a estabilidade política e económica do tempo, isso contrastava fortemente com a era da imensa vontade de Qin Shihuang.

18 Dez 2023

Lu Wenying, as Cores da Pintura e a Intuição da Chuva

Huizong (r.1100-1126), o imperador que cultivou as artes do pincel, terá lançado uma provocação entre os pintores da sua corte que consistia na figuração em pinturas de versos que ele propunha.

Um desses versos pode ser traduzido como: «Vai o cavalo galopando pisando flores, os seus cascos exalando fragrâncias.» Houve quem respondesse pintando um cavalo galopando livre numa floresta de flores caídas. Porém o que mereceu o aplauso do monarca mostrava: indícios de tinta vermelha no centro, o perfume, e duas borboletas esvoaçando assustadas, o cavalo acabara de passar.

Essa escolha sobre como representar ideias imbuídas do ritmo da vida, o desafio próprio da pintura, foi revelando o engenho dos autores. Um pintor na dinastia Ming mostrou em dois exemplos, uma particular adequação da intenção do criador ao formato da pintura. Juntamente com Lu Ji (act. c. 1439-1510), Lu Wenying (1421-1505) encenou num rolo horizontal a celebração num jardim, como era já então um tema habitual entre eruditos, o sexagésimo aniversário de três altos funcionários.

Nesse Encontro no jardim de bambu (Zhuyuan shouji, tinta e cor sobre seda, 33,8 x 395,4 cm, no Museu do Palácio, em Pequim) estão pintados, de maneira ritmada e em etapas como convém a um lento desenrolar, doze literatos sentados, alguns nas sofisticadas cadeiras portáteis de «costas de ferradura», jiaoyi. São reconhecíveis pelas suas cabeças ornadas pelo wushamao, o tipo de chapéu de tecido preto com duas asas exclusivo dos funcionários da corte, e estão acompanhados de sete jovens criados, um dos quais dança com um grou, o pássaro da longevidade. Todos estão identificados com uma espécie de filactério. Entre eles estão retratados os dois autores do rolo, vestidos cada um com uma das duas cores com que por vezes é referida a própria arte da pintura, danqing, o vermelhão do pigmento do cinabre (dansha) e o verde-azul do ciano (qinglu, azurite).

Lu Wenying, pintor de Zhejiang, que tal como Lu Ji foi chamado à corte no reinado de Hongzhi (r.1487-1505), também intuiu a vocação do rolo vertical para apreender uma visão única. Na pintura Tempestade numa vila junto do rio (Jiangcun fengyu, tinta e cor sobre seda, 170,5 x 103,4 cm, no Museu de Arte de Cleveland) o olhar, pelo enganoso processo da percepção simultânea, inunda-se com a violência da água precipitando-se, inclemente.

Mas se é certo que estão figuradas ondas alterosas, bandas oblíquas de tonalidades da tinta que sugerem bátegas e mesmo dois homens que se protegem com uma cobertura de palha e um guarda-chuva, o olhar descobrirá uma pequena figura que parece sorrir numa janela. Dentro de casa, protegido da intempérie, um rapaz observa o mesmo que nós: está dentro e fora da pintura. Como alguém que esteja diante da pintura, ele olha a chuva que cai mas que não saíu do pincel do pintor.

27 Nov 2023

As Dez Etapas do Chan e os Cinco Bois de Han Huang

Chen Hongshou (1598/9-1652), com a linha livre e caprichosa do seu pincel, fez uma pintura representando o momento em que Laozi (571-471 a. C.) está na iminência de passar um curso de água, uma fronteira em direcção ao Ocidente, a partir da qual mais ninguém tornaria a ver aquele que o historiador Sima Qian afirma ter sido incumbido de preservar documentos históricos.

O sábio é representado na pintura (folha de álbum, tinta e cor sobre seda, 30,2 x 26,7 cm, no Museu de Arte de Cleveland) seguindo vagarosamente montado num boi e já cumpriu a sua missão, deixando para trás o clássico do daoísmo, o Daodejing que através dos tempos iria assegurar a sua fama e glória, como indicam as flores de híbisco que na pintura estão atrás dele.

O animal lento, paciente, confiável e obstinado que o transporta também teria um lugar na memória dos vindouros, com um vínculo particular ao budismo chan. Num dos instrumentos experimentais do chan, o gong’an, mais conhecido com o nome japonês koan, há um que conta como um monge que trabalhava na cozinha do mosteiro foi interpelado pelo mestre àcerca do que estava fazendo. «Nada de mais», respondeu o monge «apenas pastoreando o boi». O mestre perguntou-lhe então «como» o estava fazendo. O monge respondeu: «Cada vez que o boi se afasta para ir comer erva, levo-o de volta ao trabalho.»

No século XII o mestre do chan, Kuoan Shiyuan (activo c.1150) propôs uma série de dez etapas de meditação, para o que escreveu dez poemas e dez ilustrações, que o praticante devia seguir para purificar o corpo e o espírito, que tem no centro a figura do boi, antiga analogia referida no Sutra do Lótus como o «boi branco», metáfora para a transcendência do samsara, o ciclo contínuo da morte e da vida. Em Shiniu tu, o mestre começa com o poema Em busca do boi, cujo primeiro verso diz: «Na grande vastidão afastando os matos, vou procurando, perseguindo-o». Nessa dinastia Song (960-1279) a figuração da figura do boi alcançaria grande popularidade mas antes já fora objecto de uma pintura excepcional.

Han Huang (723-787), um alto funcionário da dinastia Tang (618-907), é o autor do rolo horizontal Cinco bois (Wuniu tu, tinta e cor, 101,5 x 55,3 cm, no Museu do Palácio, em Pequim), considerada a mais antiga pintura sobre papel. A representação não possuía nenhum carimbo ou palavras a acompanhá-la mas tem hoje as marcas de poemas e carimbos dos coleccionadores, como imperadores, que a possuiram.

Mas dir-se-ia que a expressividade do traço gracioso e seguro de Han Huang herdara a mestria de pintores e calígrafos que o precederam, cada boi surgindo inteiramente eloquente só no risco. No final do processo proposto por Kuoan Shiyuan, o praticante, encontrado o boi, está de Regresso ao Mundo e, acompanhando o poema, o mestre mostrou-o radiante de alegria diante do Budai, o buda que ri.

30 Out 2023

A Face Inescrutável de Meng Haoran e Wang Wei

Ding Gao (?-1761), o autor do tratado Xiezhen mijue, «A fórmula secreta para pintar retratos» tinha bem claro que o escrevia numa demonstração de xiao, «amor filial», não apenas como forma de estimar os seus antepassados mas também para servir de exemplo de comportamento moral a quem se quisesse dedicar à arte e à técnica dos retratos pintados.

Como ele explica no texto original escrito em 1766, com o título Chuanzhen xinling, «Compreensão da transmissão da verdadeira semelhança», foi o seu bisavô Ding Yuchen quem primeiro desenvolveu o interesse da pesquisa dos segredos da arte que depois foram transmitidos ao seu avô, e depois a seu pai e que ele mesmo transmite ao seu filho. O tratado só seria publicado pela primeira vez em 1818, pelo seu filho Ding Yicheng (1743-depois de 1823) que também acrescenta um apêndice, Xuxinling, com oito questões, e mostra como uma série de diferenças se foram esbatendo durante a dinastia Qing.

Entre a maneira de pintar os retratos dos vivos, comemorativos ou de dignitários, muitas vezes executados por autores famosos por vezes designados yintu, «pintura das sombras», ou os de familiares falecidos, feitos geralmente por autores anónimos, que celebravam a alma dos antepassados, também chamados fushen «representação da alma».

Mas também se tornava mais ambígua a distinção entre pintores literatos e profissionais. A linguagem utilizada pelos autores junta aspectos da fisionomia popular que via na face um espelho da ordem cósmica mas também se apropria do vocabulário erudito da pintura de paisagens. Como ao dividir o rosto em Cinco Montanhas – a testa, o queixo, o nariz, a maçã do rosto direita e a esquerda; e Cinco rios – as orelhas, os olhos, a boca e as narinas. Mas uma outra categoria, a de retratos imaginados, que possuíam o prestígio da tradição como o Retrato de Fu Sheng sentado no chão, descontraído (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 25,4 x 44,7 cm, no Museu de Belas Artes de Osaka) atribuído a Wang Wei (701-761) adquiriram grande popularidade na dinastia Qing.

Shangguan Zhou (1665-1750), na obra Wanxiaotang huazhuan onde figurou heróis de Estado e da cultura ao longo da História, não terá tido dificuldade em utilizar as feições convencionais de homens corajosos que exibem um excesso de energia ou as clássicas formas de mulheres belas (meiren) em retratos de corpo inteiro, a três quartos, numa linha clara que os torna leves e facilmente reproduziveis.

Há, porém, no seu álbum, dois retratos de poetas que são um desafio à representação do rosto. Meng Haoran (689-91-740), o poeta que despertou preocupado com as pétalas que caíram durante a tempestade, é representado sentado, de tal modo envolto nas suas vestes que do seu rosto só são visíveis os olhos, o nariz e o bigode. Wang Wei está sentado, relaxado, a cabeça voltada, dela apenas se vê a nuca.

10 Out 2023

O Jardim de Qian Weicheng – Era um Retrato de Qianlong

Weize (1286-1354) o monge chan budista que assumiria o nome Tianru, criou em 1342 um jardim em Suzhou (Jiangsu) ocupando uma área vizinha a um mosteiro, em memória do seu mestre, o abade Ben Zhongfeng, a que deu o nome de Shizilin, «O bosque dos leões», leões budistas que aludiam ao poder e à virtude do Buda. Entre as várias justificações para a escolha do nome do sítio, referido como um bosque pela densidade dos bambus ali existentes, incluíam-se: o lugar onde o mestre Zhongfeng atingiu o nirvana, o Pico do leão do monte Tianmu em Lin’an (Hangzhou, Zhejiang), a caprichosa forma das porosas pedras do lago Tai, que eram parte da composição do jardim e lembravam esse animal, e o eloquente Sutra da raínha Srimala do rugido do leão.

O jardim tornar-se-ia um lugar de culto atraindo homens de cultura, entre os quais o pintor Nizan (1301-74) que o recriou numa pintura em 1373, executada na forma que ele definiu; «os traços transcendentais do meu pincel têm uma aparência rústica; não buscam a semelhança com as formas» e que faria parte das colecções imperiais. Kangxi (1654-1722) numa das suas Visitas de inspecção ao Sul, em 1703, visitou o jardim o que, como muitas outras coisas que fez, muito impressionou o seu neto Qianlong (1711-99) que repetiu a visita seis vezes, na terceira das quais em 1765, lá deixou uma placa com dois caracteres zhenqu, «deleite verdadeiro», escrito pela sua própria mão. O que foi apenas uma das inúmeras manifestações do seu imenso apreço pelo jardim.

Na sua primeira visita escreveu um poema onde se nota o olhar previamente cativado pelo rolo de Nizan: «Conheço o Bosque do leão há muito tempo,/ Diz-se que foi criado pelo mestre Nizan./ De início supus que se escondia num vale remoto,/ Depois percebi que se encontrava numa cidade buliçosa. (…) A colina artificial parece uma montanha verdadeira,/ Mortais e imortais estão separados por uma curta distância.» E Qianlong encarregaria um pintor de recriar a forte adesão espritual que sentia ao lugar.

Qian Weicheng (1720-72) que não pertenceu à Academia imperial, viajou com o imperador em duas das visitas imperiais ao Sul e delas fez várias pinturas, confirmando a sua intimidade com Qianlong. Em Vista total do Bosque dos leões (rolo horizontal, tinta e cor sobre papel, 38,1 x 187,3 cm, na Universidade de Alberta) o jardim é reconhecível através da representação das suas feições mais proeminentes e vistas cénicas mas é sobretudo um espaço tranquilo, ao lado de Suzhou, que por metonímia funcionava como um retrato do seu dono, que nele podia passear e agir de modo privado através do olhar e do espírito. Qianlong mandaria repetir o jardim em duas propriedades suas; no Palácio de Verão e no Retiro de montanha para escapar ao calor, em Chengde (Hebei) mas com a pintura bastava desenrolá-la, estender o braço e ver.

11 Set 2023

A versão de Shen Yuan do rolo que evoca Bianjing

Meng Yuanlao (c.1090-1150), um funcionário governamental que viveu em Bianjing (actual Kaifeng, Henan) dos treze aos vinte e sete anos, sendo depois forçado a abandonar a cidade capital dos Song do Norte, partindo para o exílio em Hangzhou, escreveu uma nostálgica recordação desse lugar. Que se lê como uma ilustração da expressão «menghua», um sonho projectado no passado de um paraíso perdido, por vezes referido como a utopia do imperador Amarelo sobre Huaxu, a terra da harmonia e felicidade perfeitas.

Em Dongjing menghua lu, «Sonho do esplendor da capital oriental», editado pela primeira vez em 1187, a cidade é descrita como um lugar onde “A paz se prolongava dia após dia: viviam lá muitas pessoas e havia de tudo em abundância, jovens com longas tranças não se entretinham senão com danças e tambores, os mais velhos com os cabelos salpicados de branco não ligavam a escudos ou lanças. As estações e os festivais seguiam-se uns aos outros cada um com as respectivas situações para apreciar. Noites iluminadas por candeeiros e madrugadas ao luar, períodos de neve e tempos de floração, clamando habilidades e subindo alturas, formando reservatórios e jardins onde se pode passear. Erga-se o olhar e lá estão pérgolas verdes e quartos pintados, entradas bordadas e sombras preciosas. Carruagens decoradas competiam pelo estacionamento na Avenida Celestial e cavalos ajaezados lutavam para passar nas ruas imperiais. (…)”

Mas a mais comum evocação de Bianjiang é uma pintura intitulada Qingming shanghe tu, que se pode traduzir como «Sobre a margens do rio durante o festival Qingming» (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 28,2 x 528,7 cm, no Museu do Palácio em Pequim) cuja autoria, no rolo, é atribuída a Zhang Zeduan (1085-1145) e mostra a buliçosa vida em torno do rio Bian. O seu singular fascínio originou inúmeras cópias e recriações das quais cerca de cem estão hoje em vários museus e colecções.

Shen Yuan (act. 1728-48) é autor de uma das mais intrigantes recriações (rolo horizontal, tinta sobre papel, 34,8 x 1185 cm, no Museu do Palácio, em Taipé) que se diz ter sido apenas um guia para outra versão colorida executada por cinco pintores da corte de Qianlong. No entanto ela exibe um domínio do desenho, da perspectiva e certos pormenores que a tornam ímpar. Nela está a única confirmação de que a cena decorre no festival Qingming, «o dia de varrer as sepulturas», através de três figuras que se vêem na primeira parte junto de um túmulo, num gesto evidente de quem chora, a eloquente expressão do pesar. Na parte central que representa a ponte dita «ponte arco-íris» onde no original um navio de grande porte se encontra em risco de bater ao passar criando um grande alvoroço, Shen Yuan resolve o perigo riscando linhas rectas que são os cabos que puxam o navio, guiando-o a partir das margens.

4 Set 2023

Zhang Ruocheng, a Viela Estreita e o Espírito Livre

Zhang Tingyu (1672-1755), o erudito e historiador que dirigiu a compilação da História dos Ming, foi também um político notável ao serviço de três sucessivos imperadores; Kangxi, Yongzheng e Qianlong, num tempo em que em que a grandeza e o poderio do império dos Qing alcançou um ponto alto. E mesmo se, no fim da sua vida as relações com Qianlong se deterioraram, ele seria o único funcionário oficial superior de etnia han durante a dinastia Manchu, a ter uma tabuleta póstuma em sua memória no Templo dos antepassados, Taimiao, junto da Cidade Proíbida.

Conhecendo a sua biografia, dir-se-ia que essa capacidade de adaptação a um tempo de grande convulsão interna, apoiada numa facilidade de comunicação pela convergência da elevação dos espíritos, era para ele uma herança familiar. Em Tongcheng (Anhui) onde nasceu e de onde era originária a sua família, é conhecida uma história sintetizada num «provérbio» em que o seu pai é o protagonista. Diz-se que Zhang Ying o seu pai, funcionário na corte, recebeu um dia uma carta dos familiares que estavam na casa de família que lhe pediam para resolver uma disputa com o vizinho do lado acerca dos limites das duas casas, que os tribunais locais não conseguiam solucionar. A resposta de Zhang Ying veio na forma de um poema que dizia: «Escrevem-me uma carta de tão longe, a grande distância só por causa de um muro, Toda uma confusão só por causa de um ou dois metros. Olho para a Grande Muralha, longa de dez mil quilómetros, Passado é já o tempo do seu construtor, o imperador Qinshihuang.»

Os familiares entenderam e num gesto de condescendência recuaram o muro, um metro. O vizinho, olhando para o gesto também percebeu e recuou igualmente o seu muro um metro, criando entre as duas propriedades uma congosta com cerca de dois metros de largura. A situação exemplar para a resolução de conflitos seria até hoje referida com os três caracteres liu chi xiang, «ruela apertada, espíritos abertos».

Zhang Tingyu teria três filhos que serviriam o imperador e que se distinguiram nas artes do pincel em que a moral e a estética eram padrões que qualificavam os literatos. Ruoting (1726-1802) na caligrafia, Ruoai (1713-46) mostrou agudeza de abservação e domínio da alegoria na pintura de pássaros e plantas, e Ruocheng (1722-70) faria pinturas de paisagens em que a proporção era indiferente à dimensão. Num longo rolo horizontal, Viajando até ao sagrado cume do Sul (34,9 x 632,6 cm, no Museu de Arte do Condado de Los Angeles) os lugares figurados são identificados em pormenor, como num mapa. Noutro pequeníssimo rolo, vendido no mercado (Bonhams) com inscrição de Qianlong (tinta sobre papel, 3,8 x 16,5 cm) feito para ser colocado numa «arca de muitos tesouros», duobao ge, revela intimidade com o imperador esteta que valorizou a sua própria família como um tesouro.

21 Ago 2023

O Retrato Impossível de Yinyuan Longqi

Yiran Xingrong (1601-68), o monge de Hangzhou que foi para Nagasaki e que foi conhecido no Japão como Itsunen Shoyu, terá sido o responsável pelo convite feito ao mestre do mosteiro Huangbo em Fujian Yinyuan Longqi para vir para o Japão em 1654, no tempo da transição Ming-Qing. Num tríptico, Yiran representou os três mestres da Escola do Budismo chan: Linji, Deshan e Damo (Bodhidharma) os dois primeiros a três quartos, voltados para Damo, de frente e no meio (rolos verticais, tinta e cor sobre papel, 124,4 x 39,6 cm, no Museu de Arte da Universidade de Michigan) do modo como tradicionalmente eram representados os monges budistas desde a dinastia Song, cohecido como dingxiang, neologismo budista que foi a tradução fonética da palavra indiana usnisa, o alto na cabeça do Buda significando a sua iluminação, que se diz invisível ao olhar de seres vivos.

Sobre o retrato de Deshan, à esquerda, outro monge mestre de caligrafia Muan Xingtao (1611-84) conhecido no Japão como Mokuan Shoto, escreveu:

«Um único ponto no grande vazio,

uma única gota num grande barranco,

Ele queimou o sutra

quando lhe surgiu a iluminação.

Com o seu bastão, aponta tanto para os sábios

como para a gente comum,

Neste mundo de Carma, acção e consequência,

ele é um verdadeiro buda.»

Quando Yinyuan se tornou o venerado mestre do mosteiro Obaku no Japão, também retratos seus foram feitos do mesmo modo. Num deles, feito por um autor desconhecido (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 119,4 x 57,8 cm, no Metmuseum) ele apresenta-se de corpo inteiro; o cabelo e a barba brancos não ocultam um suave sorriso, a sobrepeliz vermelha sobre o ombro esquerdo segura por um anel colocado em cima do lugar exacto do coração e, calçado com sapatos da mesma cor, os pés repousam sobre um escabelo. Na sua mão esquerda um enxota-moscas, na direita um longo bastão irrompe no meio de um poema.

Muan Xingtao é também o autor desse poema:

«Segurando o bastão ele aponta

directamente para a Humanidade,

E no entanto, como ele era

originalmente sem forma,

este retrato não é verdadeiro,

A sua forma não pode ser

percebida como forma,

A sua benevolência é apenas

a sua natural benevolência.

Se, de repente, conseguires

entender esta lei,

Então o teu espírito poderá

vaguear para além do Mundo.»

Muan Xingtao foi reconhecido, com Yinyuan e Jifei Ruyi (no Japão chamado Sokhui Noitsu, 1616-71) como um dos “Três pincéis do mosteiro Obaku”. O último, na pintura Luohan lendo ao luar (no Metmuseum) com um pincel largo desenhou a lenta figura de um monge de costas sentado no chão, segurando um rolo que aparenta ler. Porém, nada dele nem da lua se percebe. E escreveu, com o fulgor ligeiro de uma dança:

«A lua e o papel são da mesma cor.

A pupila do olho e a tinta

são as duas negras.

O sentido maravilhoso

alojado no círculo,

Está para além da compreensão.»

6 Jun 2023

Lin Tinggui e os Habitantes da Tinta Preta

Li Houzhu (c.937-78) que reinaria como Li Yi, o terceiro imperador dos Tang do Sul, ter-se-á agradado tanto da qualidade de uma barra de tinta que chamou o seu criador Xi Chao e o seu filho Xi Tinggui e atribuiu-lhes o seu próprio nome com que ficariam conhecidos: Li Chao e Li Tinggui. Eles que tinham vindo de Henan, no Norte, para a localidade de Shezhou, cujo nome o imperador Song Huizong mudaria para Huizhou e, sendo honrados com o posto de Guardiões da tinta, o seu produto seria celebrizado como «tinta de Huizhou».

O apreço dos letrados pela qualidade da tinta, essencial veículo de expressão acompanharia a sua sofisticação. Na dinastia Ming, o influente teórico e pintor Dong Qichang (1555-1636) escreveu sobre outro produtor de tinta de Shexian (Anhui): «Daqui a cem anos já não viverá Cheng Junfang (1541-c.1620) mas a sua tinta persistirá; daqui a mil anos já não existirá a sua tinta mas o seu nome permanecerá.»

Outro célebre criador da tinta preta feita com madeira queimada dos pinheiros, a árvore leal que identifica os letrados ao longo da história da pintura, que viveu na dinastia Qing chamado Hu Tianzhu, mudaria o seu nome para Hu Tiankaiwen, ou apenas Hu Kaiwen, para que se pudesse ler nos caracteres do seu nome a expressão «o céu abre o mundo da cultura». O carácter ao mesmo tempo expressivo, nas suas ténues modulações, mas contido da tinta preta não excluiria o uso da cor. Como escreveu Shen Hao na dinastia Qing: «Wang Wei disse que a «tinta esvoaçante» (fengmo) é suprema e está certo.

Não se deve iniciar a pintura misturando a fluente tinta preta com as cores. Deve ser alcançada a hamonia da tinta até finalizar o esboço, e então não há objecção a que se pinte com cores.» Um pintor que viveu na cidade portuária que o viajante que atravessou países, Fernão Mendes Pinto, chamou Liampó (Ningbo, Zhejiang) na altura um lugar priviligiado do encontro de culturas, aproveitaria as várias conotações expressivas das cores e da tinta preta para uma estranha representação onde o imanente e o transcendente conviveram.

Lin Tinggui (activo c. 1174-89) que partilhava o nome, não a família, com o fabricante de tinta dos Tang do Sul fazia parte do grupo de pintores que em Ningbo pintava temas budistas, trabalhando notoriamente com Zhou Jichang na pintura de cem rolos mostrando Quinhentos luohans (wubai luohan) a pedido do abade do templo Huianyuan. Numa delas, que assinou de modo discreto e a tinta dourada, representou Cinco luohans lavando a roupa (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 111,8 x 53,1 cm, no Smithonian).

Só esses primitivos apóstolos que mereceram livrar-se do ciclo da reincarnação, de feições bizarras, um seu grotesco criado e as suas roupas possuem cores; o espaço onde eles se movem, que inclui um majestoso pinheiro, águas correntes e rochas são pintados a tinta preta.

28 Mai 2023

A cadência das flores e dos pássaros de Jiang Tingxi

Xiao Baojuan, imperador (r. 498-501) da dinastia Qi e que seria despromovido a marquês Donghun, terá mandado espalhar folhas douradas de lotos pelo chão de um salão para que a sua concubina Pan dançasse sobre elas. Encantado com a expressividade do movimento, teria exclamado: «A cada passo desponta uma flor de loto» (bubu shenglian).

A associação da conhecida flor do Budismo à pura expressividade do movimento era só mais um, original, ligame das flores a metáforas culturais numa altura em que chegava do Ocidente o monge Damo (Bodhidharma) na transição dos séculos cinco para o seis, com a mensagem do Chan fazendo florescer de novo as palavras do Buda.

Na dinastia Tang (618-907), o loto e outras flores, seriam cantadas por poetas e recriadas em pinturas ao lado de pássaros, produzindo uma míriade de significados, desde a simples enunciação da beleza até a associação a histórias de fenómenos misteriosos como a imortalidade, e um género de pintura novo, huaniao hua, que podia incluir muitos outros elementos como insectos, peixes ou frutos.

Eminentes pintores de todas as seguintes dinastas a praticaram. Um homem sábio da dinastia Qing que convivia com o imperador e cujo saber era tão reconhecido que foi chamado para terminar uma monumental enciclopédia, distinguir-se-ia pela delicadeza na pintura das flores. Jiang Tingxi (1669-1732), de Changshu (Jiangsu), será sempre associado a Chen Menglei (1650-1741) como os dois directores da Colecção completa de ilustrações e escritos desde os antigos aos actuais, Gujintushu jicheng, publicada em 1726. Mas as suas pinturas, como Hibiscos e garça (rolo vertical emoldurado, tinta e cor sobre seda,113 x 60,3 cm, no Metmuseum) mereceriam poéticos elogios como o que nela escreveu Jiang Wuyang:

«Folhas de loto flutuando

na água parecem tão puras,

Flores de hibiscos nas margens

do entardecer fazem-me sorrir.

O espírito entra directamente

na morada de Zhao (Mengfu).»

Jiang Tingxi faria pinturas para álbuns que acompanham poemas dos três imperadores que conheceu: Kangxi, Yongzheng e Qianlong, cujos reinos possuem tal unidade que são habitualmente referidos como «o avô, o pai e o filho». Essa continuidade manifesta-se também na vontade de coleccionar; rever, comparar, enumerar. O pintor junta-se a essa determinação em Cem pássaros (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 304,8 x 30,48 cm) no Museu de Arte de Indianapolis. Ele terá conhecido a arte da pintura com o seu conterrâneo Yun Shouping (1633-90) e a «escola de Piling», nome antigo da terra dos dois, cujas pinturas se observam hoje em mosteiros budistas do Japão. Na inter-relação das formas que ocupam os espaços na sua pintura vê-se o objectivo expresso na primeira lei da pintura de Xie He (act. c. 500-35) Qiyun, o «movimento do espírito», comparável ao persuasivo dinamismo rítmico da dança.

15 Mai 2023

O rolo de You Qiu onde vai a bagagem de um imortal

Ge Hong, também conhecido como Ge Zhichuan (283-343), autor do dicionário Ziyuan “Jardim de caracteres”, é também autor de um conjunto de textos designados Baopuzi “Mestre que abraça a simplicidade”, divididos em duas partes que recolhem: de um lado, Capítulos exteriores, Weipian – entre outros os fundamentos do humanismo confuciano que designou como «o ramo» (mo); e do outro Capítulos interiores, Neipian – a filosofia e a incontida imaginação no relato de ocultas práticas daoístas que designou «o tronco» ou «origem» (ben) tal como circulavam no seu tempo, na região de Jiangnan. De si mesmo escreveu (Capítulos exteriores, 50):

«Sou uma pessoa simples, aborrecido por natureza e gaguejo. Minha aparência física é desagradável e nem sou suficientemente competente para me gabar ou polir os meus defeitos. Meus chapéus e sapatos andam sujos; e as roupas, por vezes ainda piores, nem podem ser remendadas. Mas isto nem sempre me incomoda. Estilos de roupas mudam muito depressa e muitas vezes. Num momento são largas no pescoço e o cinto é largo; noutra altura são ajustadas e com mangas largas; mas de novo compridas, varrem o chão ou tão curtas que nem cobrem os pés. Sendo um homem simples, o meu plano é preservar a regularidade e não seguir as modas do dia. O meu discurso é franco e sincero, não me entrego à galhofa. Se não encontrar o interlocutor certo, sou capaz de ficar o dia todo em silêncio. Esta é a razão por que os meus vizinhos me chamam ‘o que abraça a simplicidade’, Baopu, nome que uso como pseudónimo naquilo que escrevo.»

Demonstrava assim que os antigos imperadores, Qin Shihuang ou Han Wudi na sua aspiração à imortalidade – xian, se iludiam ao não cultivarem o Dao.

Wang Meng (1308-85) figurou-o a caminho de atingir esse objectivo (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 139 x 58 cm, no Museu do Palácio em Pequim). Diante de densas e agitadas montanhas, ele vai sobre uma ponte, ao lado mas ainda não sentado sobre um veado, conhecida montada de deuses. Também a sua esposa com um filho ao colo, vem sentada numa vaca e outros criados em redor transportam objectos da sua casa em mudança.

Mas a constante republicação do Cânone Daoísta (Daozang) de que os seus escritos faziam parte, inspiraram outros como You Qiu (c. 1525-80) que no rolo horizontal (tinta sobre papel, 533,4 x29,5 cm, no Museu Britânico) o mostra sentado numa mula, nesse trânsito a caminho do Monte Luofu (Guangdong), onde terá alcançado a imortalidade.

Seis criados acompaham-no, carregados de toda a espécie de objectos associados a um erudito funcionário, cujas vestes enverga sob um casaco de pêlo aos ombros. Como mestre do Dao é identificado por objectos como ceptros ruyi ou bastões em crú. De modo subtil toda a natureza se parece inclinar para trás à passagem da caravana que mostrava doméstica a vida do imortal.

18 Abr 2023

A princesa que admirou pinturas de Liu Songnian

Xiangge Ciji (c. 1283-1331), a princesa, neta e irmã de imperadores da dinastia Yuan deu, de forma inédita para uma mulher, uma festa literária no dia vinte e oito de Abril de 1323 no templo Tianqing, nos arredores da capital, Dadu. Como era habitual nessas reuniões, pessoas educadas na já então milenar cultura poética e visual dos Han, liam, escreviam e examinavam caligrafias e pinturas, reconhecendo-se nessa memória, descobrindo-se eles mesmos parte desse desenrolar significante do tempo.

A partir do mítico Encontro do Pavilhão das orquídeas promovido pelo preclaro calígrafo Wang Xizhi, outros encontros seriam evocados na imaginação, um deles, seria tipificado com o nome de Reunião elegante no jardim do Oeste, Xiyuan Yaji. Uma festa que teria ocorrido no período Yuanyou (1066-93) do imperador Zhezong, à qual compareceram dezasseis ilustres figuras da literatura e da pintura como Mi Fu (1052-1107), que a terá registado por escrito, ou Li Gonglin (1049-1106), que a teria reconstituído numa pintura.

Uma dessas recrições da famosa reunião elegante, possivelmente feita na dinastia Ming, é atribuída de maneira espúria, ao pintor da corte dos Song do Sul, Liu Songnian (1174-1224). Desenrolando esse rolo horizontal (tinta e cor sobre seda, 24,5 x 203 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé) desvelam-se uma série de emoções ligadas a cada uma das personagens retratadas, desde Su Shi, com o seu distintivo chapéu preto alto (Dongpo jin) escrevendo, passando por Mi Fu escrevendo sobre uma pedra até, no fim do rolo, o grande monge Fayun Faxiu, também conhecido como Yuantong (1027-1090) conversando sobre Wushenglun, o conceito budista de «não ter nascido». A plausibilidade da atribuição resulta de certas impressivas pinturas do mesmo autor.

Liu Songnian, o pintor da corte de Hangzhou onde se encontrava a Academia imperial a que pertenceu, primeiro como estudante e depois como «pintor às ordens» daizhao, seria por essa razão intérprete priviligiado da cultura dos Song do Sul, a quem seriam atribuídas tantas outras pinturas que correspondem a esse gosto. Entre elas, os três retratos de luohans (sânscrito; arhat) datados de 1207 em formato de rolo vertical a tinta e cor sobre seda, que se encontram no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, e que revelam como estava a ser acolhido o Budismo na pintura.

Num deles, diante de grandes folhas de bananeira que quando o vento passa produzem um som que torna sensível o seu sopro, e de um biombo, a figura nimbada de um luohan sentado, de dimensão exagerada em relação à pessoa que à sua frente desenrola um escrito, que por não ser identificado sugere o indizível. O olhar da princesa Xiangge que queria pertencer a essa herança deteve-se diante dessa pintura, compreendeu, e apôs o seu carimbo Huangjietushu, «Da biblioteca da irmã mais velha do imperador».

13 Abr 2023

Feng Yuan, o urso preto e a cor vermelha

Gu Kaizhi (c.345-c.405) será o autor de uma memorável pintura narrativa que hoje se pode observar através de uma cópia feita a tinta e cor sobre seda, que se encontra no Museu Britânico. No extenso rolo horizontal Advertências para as senhoras da corte (Nushi Zhentu, 329 x 25 cm) estão representadas situações que ilustram um texto do funcionário e poeta Zhang Hua (232-300).

A que seria a quarta cena mas que no rolo preservado é a primeira por dela faltarem as três primeiras, também consta do Livro de história dos antigos Han (Qian Hanshu, do ano 111 A.D., vol. 9) e relata um facto ocorrido no reinado do imperador Han Yuan (75-33 a.C.), que na altura tentava impor no Império a doutrina de Confúcio, mas era visto como indeciso e incapaz de pôr termo aos conflitos internos que minavam a sua administração.

Essa parábola ilustrada no rolo de Gu Kaizhi envolve a Senhora Feng Yuan (?-6 a.C.) e é descrita em quatro linhas de quatro caracteres que podem ser traduzidos:

«Quando um urso preto saltou da jaula,
Feng Yuan correu para a sua frente.
Como é que ela não teve medo?
Sabia que poderia morrer mas não se importou.»

E o que se vê figurado é só o essencial: o urso preto que se aproxima perigosamente da impassível Feng Yuan de saia rosada e de mãos postas que se interpõe entre a fera e o imperador sentado num estrado, acompanhado de outras senhoras da corte. Junto dela, dois guardas, um dos quais de traje vermelho forte, acorrem de lanças em riste e afastando-se vai a Senhora Fu, rival de Feng Yuan.

Da situação se poderia extrair uma plêiade de sentidos, como o simbolismo do urso, percebido como exemplo da audácia masculina ou mais imediatamente a coragem de Feng Yuan, consciente do seu lugar e papel na ordem social, disposta a dar a vida pelo imperador, assegurando a continuidade da harmonia sob o Céu.

Qianlong, o imperador que reconhecia o fascínio da pintura, guardaria cuidadosamente o rolo atribuído ao pintor da dinastia Jin Oriental, dentro de um estojo de brocado com uma tira beje para o título onde escreveu: «Pintura de Gu Kaizhi das Advertências às Senhoras com texto, uma verdadeira relíquia. Preciosa obra de arte do Palácio interior, classe divina.»

Mas a sua admiração ver-se-ia também no modo como, durante o seu reinado (1735-96), pintores ligados à corte recriaram a história de Feng Yuan. Numa dessas pinturas, a de Jin Tingbiao (?-1767) nota-se outra concepção do espaço; num rolo vertical a acção decorre numa linha oblíqua subindo da direita e vê-se a Senhora Feng com uma fita vermelha no cimo de escadas, único indício do palácio. Na versão de Cheng Zhidao (rolo vertical,tinta e cor sobre papel,193 x 130,8 cm, Museu de Arte de Seattle) activo entre 1726- c.1772, o palácio é figurado em pormenor, ela tem os braços bem abertos evidenciando a parte superior do vestido, toda vermelha.

13 Fev 2023

Cao Zhibai – A neve, o céu sombrio e os pinheiros irmãos

Huang Gongwang (1269-1354), o pintor literato da dinastia Yuan, ao criar o extraordinário rolo de pintura horizontal conhecido como Retiro nas montanhas Fuchun alcançou numa síntese de opostos, uma inesperada, intemporal e dinâmica harmonia que resultando do encontro com a natureza, é uma outra compreensão da existência.

Nessa pintura, hoje dividida em duas partes, a mais longa designada como Rolo do mestre Wuyong, no Museu do Palácio Nacional em Taipé (tinta sobre papel, 33 x 636,9 cm) ele escreveu que fez o aspecto geral da pintura numa única ocasião e depois foi realizando os detalhes do cenário ao longo de três ou quatro anos, numa engenhosa manipulação do tempo. No que é apenas um de muitos outros opostos.

Como o próprio tema da pintura que pode ser entendido como um elogio ao destinatário, comparado aos nobres reclusos da antiguidade, que porém nem sequer estão figurados no rolo. Dir-se-ia que o próprio ambiente em que se movimentavam os literatos daquele tempo e lugar a Sul do delta do rio Changjiang provocava essa resposta, ancorada numa longa tradição.

Um pintor literato poderia, por exemplo, numa conhecida proposição de Laozi; Zhiqibai, shouqihei, que se pode ler como; «Conhece a claridade (branco) mas guarda a obscuridade (o negro)» perceber um guia do seu processo.

Um outro pintor dessa área florescente e em cujo nome estavam os mesmos caracteres zhi e bai exemplificaria de maneira original essa síntese de opostos. Cao Zhibai (1272-1355), o pintor de Huating (actual Xangai, Jiangsu), fez-se notar no modo como representou paisagens de neve, como as duas pinturas que estão no Museu do Palácio em Taipé, Neve nas montanhas (rolo vertical, tinta sobre seda, 97,1 x 55,3 cm) ou Picos de montanhas clareando depois da neve (rolo vertical, tinta sobre seda, 129,7 x 56,4 cm), onde a alvura da neve sobressai mas não cancela a obscuridade do céu.

Cao Zhibai, que também usou o nome Yunxi, «a nuvem Ocidental», participou das tradições de amizade e cortesia entre literatos, que trocavam pinturas e poemas como forma de mútuo reconhecimento. Na pintura feita no dia 6 de Fevereiro de 1329, dedicada ao seu amigo de origem khitan (qidan) Shimo Boshan (1281-1347), «como materialização da nossa mútua amizade», representa dois pinheiros irmanados no seu crescimento conjunto.

Nesses Pinheiros gémeos (rolo vertical, tinta sobre seda, 132,1 x 57,4 cm, no mesmo Museu de Taipé) através da sucessiva diminuição da dimensão das árvores, mostra a distância em profundidade (shenyuan) reforçando o simbolismo das duas árvores que resistem verdes aos tempos mais severos. Na folha de álbum Verdejante no frio do anoitecer (tinta sobre seda, 21,1 x 2,2 cm, no Museu de Xangai) uma estranha árvore sem folhas dobra-se diante do homem que viaja numa embarcação, como que saudando quem vem ao seu encontro.

19 Jan 2023