Apresentando Yu Xuanji, poeta chinesa da dinastia Tang

Por Ricardo Primo Portugal

Traduzimos a obra completa da poeta chinesa, da Dinastia Tang, Yu Xuanji, nascida em 844 e falecida, provavelmente, em 869. São 50 poemas, mais 5 fragmentos que restaram de uma obra que terá sido mais extensa.

A produção poética da Dinastia Tang (618-915), considerada o ápice da poesia clássica chinesa, surpreende pela quantidade e qualidade, com formas fixas altamente codificadas. A popular antologia Poemas completos da Dinastia Tang, compilada posteriormente, no século XVII (Dinastia Qing), por ordem imperial, contém aproximadamente 50 mil poemas, escritos por 2200 autores.

Terá havido mais escritores importantes e muitos textos se perderam. Há 190 mulheres entre esses autores, dentre as quais Yu Xuanji é um dos nomes de proeminência. Seus poemas foram publicados em vida em uma coleção chamada Fragmentos de uma Terra de Sonhos ao Norte, que se perdeu. Os 50 poemas que sobreviveram para nossa época foram recompilados na Dinastia Song (960-1279).

Há uma extensa linhagem de poetas mulheres na China, a qual percorre as diferentes fases de uma literatura milenar quase sempre como corrente paralela ou específica em relação ao tronco principal. Na Dinastia Tang, período histórico de intensa vida urbana culta, a situação da mulher era bastante mais favorável que em outros momentos da história da China. A elas era atribuída uma posição social mais livre e igualitária em relação aos homens. Ainda que excluídas do sistema dos exames imperiais que selecionavam a elite dominante e impedidas de exercerem funções relevantes, muitas filhas de famílias abastadas podiam adquirir educação e conhecimento literário.

As cortesãs e as monjas taoístas, como Yu Xuanji, formavam grupos sociais intercambiáveis (cortesãs tornavam-se monjas e vice-versa), com uma inserção particular nessa sociedade. As mais talentosas eram versadas nas artes clássicas (música, poesia, caligrafia, pintura) e eram tratadas como iguais em discussões e concursos de poesia.

A vida, a obra e a lenda

Yu Xuanji é uma das poetas mulheres chinesas mais afamadas, inclusive por sua biografia, não obstante pouco se conheça de fidedigno de sua história pessoal, além da obra considerada emblemática de uma consciência feminista precursora em relação à modernidade. De grande beleza, culta e dotada de uma inteligência viva, casou-se como concubina aos 16 anos, com Li Yi – jovem funcionário provincial e, como ocorria aos membros da elite confuciana selecionada pelos exames públicos, também poeta, a quem dedica diversos poemas pelo nome Li Zi’An, com quem teve uma relação intensa, alternando momentos de relativa separação e união. Separou-se definitivamente ou foi abandonada pelo marido, por exigência da “primeira esposa” três anos mais tarde, convertendo-se em monja taoísta e cortesã.

A propósito, Yu Xuanji é seu nome de monja, tomado no mosteiro; “Xuanji” significa “mistério profundo”. Seu nome original era Youwei; “Yu” (Peixe) é o sobrenome, que, em chinês, precede o nome atribuído.

Desde criança, era conhecida como talento poético precoce em Chang’An (hoje Xi’An), então a capital imperial. Aos 12 anos, foi tomada como discípula por Wen Tingyun (a quem chamava Feiqing), um dos mais importantes poetas da Dinastia Tang, de quem, em algum momento, poderá ter sido também amante. A ele dirigiu e dedicou vários de seus poemas.

Morreu cedo, entre os 26 e os 28 anos de idade, executada por assassinato, em um caso polêmico e duvidoso. Ficou não apenas uma obra notável, mas também a lenda de uma mulher rebelde, irridenta, de vida livre para os padrões de sua sociedade e crítica da condição feminina. Por sua história de vida, Yu Xuanji acabou sendo assimilada à literatura, também, como personagem em obras de outros autores chineses e estrangeiros, em romances, contos, teatro e cinema; porém, nem sempre com apreciação valorativa.

De fato, a lenda acompanhou os séculos seguintes, através de períodos, muitas vezes, mais conservadores da sociedade chinesa. Dos episódios que se contam de sua vida, há fabricações moralistas e difamatórias, retratando-a, amiúde, como personagem libertina, mesmo em produções mais recentes por exemplo, nos anos 80, foi lançado em Hong Kong um filme sobre sua vida; não o vimos, mas os comentários são de que se trata de um filme erótico ruim.

Também há quem a apresente como uma “típica poetisa” da China, que, como todas, falariam sobretudo do amor e da solidão, temas então considerados “femininos por excelência”. Essa visão quanto ao que possa ser uma característica voz feminina na literatura não procede quanto a Yu Xuanji, nem às tantas outras poetas mulheres chinesas ou brasileiras.

A leitura de sua obra completa apresenta uma poeta elegante, mas capaz de ousadias e provocações; corajosa e desafiadora das convenções sociais, na afirmação franca da sensualidade e do desejo; que demonstrava consciência da tradição e do público a que dirigia sua poesia; bastante crítica da condição feminina.

É certamente uma voz feminina, e fala também, sim, da solidão, do amor e do desejo de um ponto de vista de mulher (como se os homens não falassem também disso). Mas gostaríamos de ressaltar em sua obra, mais simplesmente ou antes de qualquer consideração de gênero, a poeta refinada, que dominava os recursos e modelos requeridos à poesia clássica chinesa, nada devendo a outros poetas de seu tempo em técnica, domínio formal e diálogo com a tradição literária.

Yu Xuanji, monja-poeta taoísta

Quanto à inserção na tradição, um aspecto importante que ressalta em muitos de seus poemas é a referência à filosofia taoísta. A monja Yu Xuanji tinha, como modelo, os filósofos e poetas dessa confissão religiosa, como Li Bai (Li Tai-Po). Não é nosso objetivo aqui tentar apresentar a filosofia e o modo de vida dos mestres taoístas, nem descrever a enorme influência que exerce no imaginário dos chineses esta que é uma das correntes fundamentais de pensamento daquela civilização e que, na época em que vivia a poeta, era a religião oficial do Estado.

Em linhas gerais, assinalemos, apenas para situar uma importante referência da obra da poeta correndo o risco de uma boa dose de simplismo que os mestres taoístas atribuíam ao vinho a inspiração para o exercício da poesia e dedicavam-se a uma vida não necessariamente de reclusão, mas, sobretudo, de meditação, contemplação da natureza e dissolução na experiência do “Tao”, na vivência de uma espiritualidade intensa, panteísta, que se colocava em busca da imortalidade. Relativa a esse objetivo de transcendência, há a busca do “elixir da imortalidade”, em certas histórias associado com o vinho.

Na poesia de Yu Xuanji, há, entre outros temas taoístas, a exaltação do vinho e da festa; a ideia recorrente de que “tudo na vida acontece como sucessão de pares opostos” alegria e tristeza, prazer e dor…; a referência à imortalidade.

Uma comparação – pouco acurada, mas não desprovida de pertinência – da opção de vida daqueles mestres com a tradição ocidental estaria, por exemplo, na proposta da “dissolução de todos os sentidos para fazer-se vidente”, de Rimbaud, ou na entrega a experiências com drogas, jazz, viagens e uma relação inconvencional com a sociedade “instituída”, da geração beatnik. O monge taoísta fazia uma espécie de “drop-out” à chinesa (a comparação é aproximativa, adequada só até certo ponto: o monge é um “marginal- instituído”; seu lugar social é reconhecido).

Há boas traduções do Dao De Jing, de Lao Zi, em português, além de muitos livros sobre a filosofia taoísta em línguas ocidentais. Sobre a relação entre taoísmo, confucionismo, budismo e poesia, vale a leitura do mestre franco-chinês François Cheng.

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Mais Antigo
Mais Recente Mais Votado
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários