Via do MeioEurásia, o universo do Pacífico e os anglófonos: do passado ao presente Roderick Ptak - 27 Abr 2023 (continuação) IV. China, Eurásia e a geo-política americana A China, é claro, não gosta dos recentes desenvolvimentos. Antigamente, o Governo de Pequim estabelecia as suas metas em termos de política externa com base no princípio de uma só China. Naturalmente, este propósito incluía o desejo de reintegrar Taiwan. Originalmente, os governantes do Kuomintang em Taipé tinham expressado ideias semelhantes. Sonhavam conquistar o continente, e também usavam como arma de propaganda o princípio “uma só China”, mas, claro, de uma perspectiva diferente. Hoje em dia, quase todos os dirigentes a nível mundial reconhecem Pequim como o único legítimo governante da China. Além disso, Pequim declarou repetidas vezes, desde o início, que as ilhas no Mar da China Meridional são parte da China. Inúmeros estudos confirmam que os pescadores e marinheiros chineses iam para lá desde tempos imemoriais. Os registos pré-coloniais que mencionam estas regiões são todos chineses. Não existem fontes escritas em malaio, tailandês ou noutras línguas, o que pode apontar para uma presença contínua de habitantes do Sudeste Asiático nestes arquipélagos. Igualmente digno de nota, é o facto de as obras publicadas durante o Governo do Kuomintang afirmarem que as ilhas de Nanhai 南海 devem pertencer à China. Não só isso: mapas do período republicano mostram que nessa altura a China também reclamava muitas zonas que ficavam muito para lá das suas fronteiras, especialmente a Norte. O Governo de Pequim, podemos acrescentar, é modesto; já não faz exigências tão excessivas. Os académicos do universo anglófono raramente mencionam isto. Nem “culpam” Taiwan por controlar as Ilhas Dongsha 東沙群島, que constituem um dos arquipélagos do Mar da China Meridional. No entanto, criticam severamente as actividades de Pequim no Mar da China Meridional sempre que acham que isso faz sentido. Esta unilateralidade expõe claramente as atitudes imperialistas americanas e a duplicidade de critérios. O chamado “Ocidente” também criticou as acções da China em Hong Kong, no Estreito de Taiwan e noutras partes da Ásia. A matriz destes comentários críticos é feita na América do Norte e os aliados de Washington seguem o protótipo. Quando Pequim iniciou o programa “Uma Faixa, Uma Rota” (Nova Rota da Seda)一帶一路, os investidores e os homens de negócio de muitos países, incluindo alguns Estados europeus, ficaram bastante satisfeitos. Contudo, com o passar do tempo, as impressões positivas desapareceram. Opiniões extremamente negativas começaram a substituir o entusiasmo inicial. Poucos destes críticos entenderam que Pequim, ao iniciar o programa, teve uma visão a longo prazo: a ideia não era apenas trazer riqueza para outros países, mas também ajudar a estabilizar o ambiente político em grande parte da Ásia Central e Ocidental. Certamente, a estabilização dessas macro-regiões não era necessariamente do interesse Washington a longo prazo. Um sistema eurasiático forte e pacífico era incompatível com a ideia de supremacia anglófona. Os laços económicos que cresciam gradualmente entre certas partes da UE (especialmente a Alemanha) por um lado, e a Rússia, por outro, bem como entre a Europa e a China e a China e a Rússia causaram muita preocupação em Washington. Este pressuposto permite-nos chegar a uma conclusão muito desagradável. A guerra na Ucrânia é um acontecimento trágico que nunca deveria ter sido iniciado mas, paradoxalmente, Washington parece lucrar com as perdas de vidas e com a destruição diária. As razões são óbvias: em termos territoriais, a iniciativa chinesa “Uma Faixa, uma Rota” está agora um pouco limitada. Partes das ligações continentais estão interrompidas. A Europa ficou mais próxima da órbita de Washington. Parece provável que Washington ganhe dinheiro com a venda de armas e de matérias-primas à UE. A União Europeia tem de receber refugiados ucranianos. Além disso, do ponto de vista político, Washington poderá reforçar a sua posição na Polónia e na fronteira oriental da NATO. Deste modo, pode desvalorizar o papel da Europa Central e da França e pode encorajar Varsóvia a tornar-se um protagonista na política regional contra/com a Bielorrússia e a Ucrânia. Além disso, Washington não precisa de intervir directamente na guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Envia armas, dinheiro, e isso faz com que Kiev fique dependente da “benevolência” americana durante as próximas décadas. Finalmente, fica à vontade para iniciar “exercícios militares” noutras regiões, especialmente no Extremo Oriente. Provocações contínuas e uma retórica agreste promovem a tensão no Estreito de Taiwan e no Mar da China Meridional, como podemos ler diariamente. Mas não só: as declarações oficiais de Washington dão a entender que os Estados Unidos podem ir para lá das acusações verbais e das sanções económicas. Como foi mencionado, a guerra na Ucrânia parece ser um elemento importante na constelação actual. O raciocínio implícito é simples: Algumas pessoas consideram Zelensky uma marioneta da Casa Branca. A Rússia precisará de mobilizar mais homens e mais armas contra as suas tropas. Uma longa duração do conflito pode enfraquecer gravemente o Kremlin e é isso que Washington espera. No entanto, recentemente vários políticos do “Ocidente” argumentaram que é improvável que a Ucrânia vença a guerra, mesmo com o apoio continuado dos Estados Unidos e dos seus aliados. Afinal, a Rússia tem amigos e enormes recursos, e também tem armas nucleares. Embora isto seja um facto indiscutível, alguns políticos “ocidentais”, entre eles, vários do leste europeu e muitos líderes ucranianos defendem que se deve continuar a guerra a qualquer preço para manter a Rússia “ocupada” e para impedir a sua recuperação. Temem que, a longo prazo, a Rússia possa vir a ameaçar os Estados Bálticos e outras regiões da Europa de Leste. Por isso, várias pessoas desejam que a Rússia se desmorone. Propõem aumentar a pressão económica, acreditando que isso provocará um esgotamento gradual dos recursos militares russos. Em termos mais simples, estes políticos pensam que uma “revolução” interna em Moscovo poderá pôr fim ao Governo de Putin. Algumas pessoas até sonham com uma desintegração abrupta, esperando que líderes militares influentes e/ou grupos locais possam voltar s costas a Moscovo. No entanto, se uma situação tão extrema realmente ocorresse, novas questões se levantariam: Quem iria controlar o arsenal nuclear do Kremlin? Quem iria comandar os submarinos russos e outros navios que transportam ogivas nucleares? Agora regressamos ao reino do “e se”. No caso de se estabelecer o caos em Moscovo, alguns dos estados da Ásia Central poderiam deixar de aceitar a autoridade da Rússia como uma espécie de garante de segurança. Isto poderia encorajar alguns líderes do antigo Xiyu a desencadear rebeliões e guerras regionais, o que se tornaria uma situação desconfortável para a China. A China quer manter a paz, como ficou recentemente demonstrado pelo seu recente papel no processo diplomático entre o Irão e a Arábia Saudita. Existem muitos instrumentos institucionais que também servem para manter o equilíbrio regional na Ásia Central e nas áreas adjacentes, e um desses instrumentos é o grupo de Xangai. Mas nada disto é do interesse de Washington. Em contrapartida, o caos na Rússia e o caos na Ásia Central seriam bons para Washington. Os refugiados deslocavam-se para o Irão, para a Turquia, para a UE e talvez para o Extremo Oriente; os países que os recebessem iam precisaram de despender mais verbas e de construir mais infra-estruturas para todos estes migrantes. Washington fica muito longe; em termos de discurso, iria continuar a insistir na defesa dos direitos humanos e a “aconselhar” todos a implementarem estruturas democráticas, mas manteria as suas portas fechadas (as políticas WASP* em relação ao universo latino-americano mostram-nos bem como é que isto funciona). Basicamente, acolheria apenas indivíduos ricos, qualificados e instruídos. E secretamente alegrava-se, ao ver os outros em apuros. V. De volta à fronteira americana do Pacífico Uma desintegração da Rússia ou uma perda da autoridade de Moscovo sobre algumas das suas regiões asiáticas poderiam provocar muitas mais mudanças: o Japão poderia sentir-se tentado a ocupar as Ilhas Curilas e talvez alguns americanos propusessem a ocupação da Península de Kamchatka e dos postos avançados da Rússia perto do estreito de Bering. Além disso, há muita concorrência na região do Ártico. Poucas pessoas falam sobre isso, mas sabemos que a Rússia é um actor importante no gélido Norte. Se a Rússia deixar de poder desempenhar esse papel, Washington será o grande vencedor na região do Ártico. O Canadá, a Noruega e outros países poderiam ficar descontentes com a situação, mas não teriam forma de travar o processo. Aqui podemos recordar a proposta ridícula do antigo Governo dos EUA para comprar a Gronelândia. Revela a atitude arrogante de alguns líderes políticos em Washington. Sem dúvida que uma situação caótica ou imprevisível dentro da Rússia levaria a China a aumentar os seus esforços diplomáticos em certas partes da Ásia Central, com ou sem a ajuda do Irão e/ou da Turquia. No entanto, num cenário confuso, podemos ter a certeza de que estes últimos iriam dar as mãos? O panorama da Ásia Central poderia tornar-se extremamente complicado. Como foi dito, a História tende a repetir-se. Pior ainda, se a atenção de Pequim fosse absorvida pelos acontecimentos na Ásia Central, então Washington poderia sentir-se à vontade para desafiar as posições marítimas da China. Actualmente, Washington tenta regressar às Filipinas. Uma das suas ideias neste sentido é trazer mais equipamento militar para este arquipélago. Também pode deslocar mais militares para as Ilhas Ryukyu e para a Coreia do Sul. É claro que não existe uma base legal para o envio de tropas para Taiwan, mas poderemos ter a certeza de que Washington vai respeitar essa regra? Um confronto militar no Estreito de Taiwan, intencional ou involuntário, provocado pelas acções de Washington, poderia levar a uma forte reacção chinesa. Isto, por sua vez, poderia levar os Estados Unidos a atrair os seus principais aliados locais, nomeadamente o Japão e a Coreia do Sul, para o conflito. Instalações navais e outras em Okinawa e noutras zonas tornar-se-iam áreas-chave. É claro que não sabemos como é que Tóquio e Seul iriam responder, mas se seguissem as directrizes de Washington, poderia criar-se um estranho cenário. A questão que se coloca é: Isto pode ser evitado? Será que os grupos dentro da Coreia do Sul e do Japão, que desejam manter a paz, teriam influência suficiente para impedir que seus Governos se subordinassem ao sabre agitador dos Estados Unidos? Actualmente, ainda há espaço para manobras diplomáticas e económicas, mas é claro que não se pode aumentar e acelerar a tensão ad infinitum. Então, até que ponto é que Washington pode ir? No contexto da guerra na Ucrânia, os americanos retratam a Rússia como uma entidade maligna que poderia levar o mundo a uma “batalha final”. (Armagedão). Certamente, não podemos excluir totalmente um cenário nuclear, o uso de ogivas tácticas com componentes nucleares ou “simplesmente” o uso de munições com urânio empobrecido. No entanto, quando pensamos no Extremo Oriente, o mesmo não se aplica aos Estados Unidos? Não nos devemos esquecer, que os “anjos inocentes” da Califórnia usaram bastantes armas terríveis em várias guerras. Infelizmente, as superpotências seguem as suas próprias regras. Procuram maximizar os ganhos e querem controlar tudo. Quando guiados por algum tipo de ideologia estranha, como o “destino manifesto” (e seus derivados), os altos dirigentes facilmente ficam cegos e prontos a correr grandes riscos. A política divide et impera é um fenómeno de longue durée nos Negócios Estrangeiros americanos. Muita dessa estratégica é puramente calculista. A ideologia “América em primeiro lugar” ajuda-nos a explicar dezenas de intervenções militares americanas do passado, e a retórica que acompanhava essas intervenções. No entanto, ao mesmo tempo, a percepção de Washington sobre o mundo não americano é limitada. Existem obstáculos mentais. Estas deficiências têm algo a ver com a “filosofia” subjacente ao sistema. a estrutura da liderança dos EUA, e a incapacidade de aceitar diferentes pontos de vista e tradições. Isto levou e erros de cálculo e a más decisões. A intervenção de Washington no Vietname foi um fracasso. A segunda guerra do Iraque não conduziu a uma democracia florescente em Bagdade, mas sim ao caos. O Afeganistão foi o mais recente desastre dos Estados Unidos. Então, qual seria o resultado de um confronto no Estreito de Taiwan? Claro que ninguém consegue prever. Tudo o que podemos dizer neste momento é que Washington age como um adolescente teimoso. Ofuscado pelos seus próprios “valores”, não aprendeu a procurar soluções razoáveis. Isso deixa em muitos de nós uma sensação extremamente desconfortável. VI. Observação final: a Europa e a China O mundo atingiu uma fase de maturidade que proporciona uma grande mudança. Porque é que o orgulho nacionalista e a ganância devem continuar a ser as forças dominantes? Será que estamos mesmo a observar a competição entre sistemas? Até que ponto esta “teoria” é verdadeira? Não existem muitas notícias falsas dentro desta retórica? As pessoas em todo o mundo têm muito em comum. Podemos afirmar, que partilham “valores” essenciais. Mas, em contrapartida, provavelmente existem poucas características (se é que existe alguma) que realmente justifiquem uma competição aguerrida ou debates acalorados entre “identidades” diferentes. Já em tempos remotos, encontrávamos frequentemente homens e mulheres inteligentes que encaravam o mundo de uma forma descontraída e que se manifestavam a favor da manutenção da paz. A ideia de adaptação promovida pelos Jesuítas na Índia e na China é um exemplo que se aproxima do “modelo” de tolerância. Houve um tempo em que filósofos europeus expressaram opiniões muito positivas sobre a cultura e a governação chinesa e sobre a ética confucionista. Vários textos europeus do final do séc. XVI chegavam a sugerir que os monarcas europeus deveriam seguir o exemplo da China. A América do Norte, governada pelos descendentes dos beligerantes Vikings, não experienciou um nível comparável de consciencialização. Será que isso tem importância? Pode ajudar a explicar, pelo menos em parte, a imagem do “adolescente imaturo” que anteriormente citámos? Quando o expansionismo americano começou no séc. XIX, a economia e a estrutura política chinesa eram frágeis. Sem dúvida, este facto desencadeou sentimentos de superioridade entre as elites comerciais dos Estados Unidos. A arrogância desse “sistema” sobreviveu e encontra-se muito vivida nos nossos dias. No entanto, muitas pessoas e muitos estados alimentam os seus comportamentos contraditórios desse sentimento, com um enorme aparato de mentiras e de avaliações unilaterais. Daí, num parágrafo anterior, ter defendido que podemos ver o sistema como a causa de muitos problemas globais. Infelizmente, durante os últimos anos, alguns dirigentes da UE convenceram-se que deveriam aceitar a retórica missionária difundida pelos anglófonos. Mas, no mundo existem pessoas mais prudentes; sugerem que se deve procurar caminhos alternativos e adoptar visões mais equilibradas. Não gostam de ameaças e insistem numa diplomacia da paz. O Governo de Pequim está a par do problema e é muito paciente. Respeita a iniciativa da UE para ultrapassar os egoísmos nacionalistas dentro da Europa e deseja sinceramente que esse processo continue. Os esforços americanos para enfraquecer o velho continente não são do interesse da China. Como foi afirmado, os livros de História estão cheios de exemplos de métodos divide et impera. A cooperação no mundo lusófono e entre alguns países de língua espanhola, tal como a cooperação dentro da UE, têm dado exemplos de como, pelo menos em teoria, podemos ultrapassar dificuldades. São as acções de protagonistas com maturidade e tolerância que Pequim respeita; não importante que venham da Europa, do Médio Oriente, ou de outro lado qualquer. As trocas comerciais ao longo do eixo da Nova Rota da Seda são dificultadas pelos desenvolvimentos actuais, mas a troca de ideias de quem sonha com a paz está a aumentar. A China, esperamos, há-de encontrar forma de serenar as mentes em ebulição dos líderes radicais. Claro que, os propagandistas da “América em primeiro lugar”, ofuscados pelo seu próprio sistema, hão-de ter dificuldade em aceitá-lo.