Budismo Chinês: Mentalismo com Características Chinesas

Numa breve contextualização histórica do Budismo com características chinesas, acredita-se que este, fundado por Gautama Shakyamuni (c. 560-c. 480 a.C.) príncipe indiano, afastado do poder real para nutrir a via espiritual, terá entrado na China na versão do Grande Veículo, Mahāyāna (大乘Dà Chéng ), aquela que se desenvolveu a partir do século III a.C., surgindo como um alargamento de via, já que floresceu a partir do Pequeno Veículo, Hīnāyāna (小乘Xiǎo Chéng), na crença de ser possível renunciar à iluminação total em prol do benefício da humanidade, a favor da qual Budas cederiam o seu lugar a Bodhisattvas (菩萨/薩Púsà), seres que voltavam propositadamente as costas à dimensão transcendente para se manterem ao nível imanente a auxiliar todos aqueles que necessitam de apoio.

Acredita-se ainda na versão popular que o Budismo terá chegado à China no século I, no reinado do Imperador Han Mingdi (汉/漢明帝, 28-75), na sequência de um sonho com um ser voador dourado, talvez uma visão de Buda, que o terá impulsionado a enviar emissários à Índia em busca das escrituras budistas.

Mas segundo eminentes estudiosos do Budismo como o mestre budista Nan Huai-Chin defende em Basic Buddhism (1997), ou o pensador Daisaku Ikeda em The Flower of Chinese Buddhism(1986), esta filosofia religiosa ter-se-á consolidado na China com o estabelecimento da Escola da Terra Pura (净土 Jìngtǔ) pelo patriarca Hui Yuan (惠远遠, 334-416).

Mas este não é ainda o budismo que se considera com características tipicamente chinesas, por várias razões, entre as quais a defesa de mentalismo parcial, em que a humanidade renasceria num paraíso buda, a Terra Pura, a terra do Buda Amitabha. Este é popularmente retratado com pele vermelha e uma tigela mendicante, que contém o elixir da longevidade/imortalidade (Alves, 2007: 92). Ele é o da infinita luz, que preside ao paraíso ocidental, onde os seres renascem, apenas na condição masculina, para atingirem o estado de iluminação perfeita.

Este tipo de Budismo, que pressupõe a unidade mental, mas que na prática implica uma visão parcial da existência onde o princípio masculino Yang (阳/陽), concretamente encarnado em homens, é privilegiado, bem como os métodos concretos de acesso à Terra Pura, nos quais se enfatiza a repetição do nome do Buda, as escrituras e seus mantras e a contemplação de várias imagens mentais, que vêm a distanciar a escola, bem como uma outra, a da Plataforma Celestial (天台Tiāntái), fundada por Huiwen (惠文) no século VI, daquela que se considera a linha budista mais representativa da mentalidade chinesa – o Budismo da Meditação ou Chan (禅 Chán), fundado por Bodhidharma (菩提达達摩) no séc. VI, tendo chegado à China durante a dinastia Liang (梁), vindo do Sul da Índia para a maioria dos estudiosos, mas há também quem lhe atribua nacionalidade iraniana e o suponha a entrar na China a partir da Ásia Central via a Rota da Seda.

De acordo com Fung Yu-lan/ Feng Youlan (馮友蘭冯友兰) no seu segundo volume de History of Chinese Philosophy (1983:390) todas as escolas da Meditação/Chan concordam em cinco pontos fundamentais: 1) a verdade última é inexprimível; 2) a via espiritual não pode ser ensinada; 3) nada se ganha, mas pode-perder se muito na e com a vida; 4) os ensinamentos budistas não contêm nada de especial; 5) o tao cultiva-se diariamente, transportando a água e cortando a lenha.

Se atentarmos bem, nestes cinco pontos que tornam tão característico este Budismo da Meditação chinesa, verificamos que ele ganha toda a sua especificidade no encontro com o Taoismo, já que também para os grandes filósofos taoistas a verdade última não é conceptualizável nem, portanto, nomeável. Também o Mestre taoista, o Santo (圣聖 n人Shèngrén) não ensina através de palavras, teorias ou doutrinas, mas com a sua postura silenciosa e modelar.

Os taoistas não esperam que a vida lhes acrescente algo, mas temem sinceramente que lhe seja roubada a visão espontânea, natural, que lhes confere as melhores características, a virtude do Recém-nascido (婴儿/嬰兒Yīng’ér), manifestando uma imensa suavidade e flexibilidade. Além disso, também para os taoistas o melhor do mundo reside em -se ser simples, cumprir com todas as pequenas acções quotidianas que nos colocam no caminho da vida, afastando a morte.

O Budismo que cultiva a perspetiva mentalista e, simultaneamente, se oferece como um hino à vida simples do comum dos mortais, que rejeita escrituras e dogmas, bem como aforismos de grandes mestres e, em última análise todos os ensinamentos escritos, é, a meu ver, o verdadeiro Budismo Chinês, aquele que no século XXI tem através das suas escolas, sugestivamente denominadas montanhas, beneficiado a sociedade, ao levar os seus membros a prolongarem a atuaçãos dos Bodhisattvas, empenhando-se ativamente em beneficiá-la através da criação e desenvolvimento de instituições sociais tão necessárias como escolas, hospitais, lares, etc.

Mas voltemos ao ponto de partida de mentalismo chinês. A mente exercita-se por se desprender de todas as formas físicas e intelectuais, de modo a oferecer-se ao meditador como pura energia. Para trás ficou o ego, o senhor bélico que na caligrafia chinesa é re-apresentado como uma espada contra outra, o Eu (我 Wǒ) . Este só traz problemas por estar sempre pronto para uma boa luta, como a etimologia indica sem falhar.

Como se adquire então a concentração no poder mental? É seguindo mais uma vez os antigos ensinamentos taoistas, tranquilizando a mente, silenciando-a, bem como ao corpo, já que um e outro são inseparáveis, transformando a nossa forma física numa montanha, quieta, silenciosa e pacífica, de modo a polir com calma e tranquilidade a mente, que de tijolo tosco se há-de transformar em espelho brilhante. O objectivo final é, recordemo-lo, unir a nossa energia mental à universal, através da postura correcta, do cultivo do Sopro Vital (气/氣).

Os patriarcas da Escola Chan conheciam muito bem, por um lado, O Clássico das Mutações (易经/經 Yì jīng), por outro, os princípios básicos da filosofia taoista. Sabemos que entre os oito trigramas do Clássico das Mutações se encontra o Criativo/ Céu (乾Qián), o Receptivo, a Terra (坤Kūn) , a Montanha (艮Gèn) e o Fogo (离離 Lí), sendo estes os trigramas, que no seu jogo de composição hexagramático, nos levam ao entendimento dos princípios essenciais do Budismo Chinês.

O corpo necessita de se imobilizar como uma montanha, de modo a dar origem ao poder mental, descrito como, fogo, lanterna, lâmpada a arder num monte escuro de mistério, que medeia entres dois princípios fundamentais, o Criativo celestial, figurado como um manto branco gelado, brilhante, cujo brilho a mente humana partilha como pérola, e uma terra negra, recetiva, palco passivo onde todas as transformações da energia celestial ocorrem.

Assim se oferece o 56º hexagrama, o do Viajante (旅 lǚ) no Clássico das Mutações, constituído pelo trigrama na base Montanha tranquila (艮Gèn) e no topo pelo Fogo ( 离離Lí) aderente, brilhante, activo e inteligente. O Fogo na Montanha, a fogueira a arder sob um solo tranquilo e pacificado será assim uma figuração adequada para o verdadeiro budista, um viajante tão impermanente como o mundo onde nasceu, que busca activamente a permanência através do seu poder mental.

É assim que julgo dever compreender-se a tese do sexto patriarca Huineng (慧能, 638-713), retirada do Registo dos seus Diálogos (《六祖慧能語錄》) “uma lanterna brilhante pode afastar a escuridão de milhares de anos ”(一燈能除千年暗Yī dēng néng chú qiānnián àn) (Jiang 1997: 36), sendo que a lanterna é naturalmente a mente iluminada.

E Huineng completa a passagem com a seguinte afirmação: “Tal como uma lanterna brilhante pode afastar a escuridão de milhares de anos, assim a sabedoria pode extinguir centenas de milhares de anos de ignorância e estupidez.” (一燈能除千年暗, 一知惠能滅)(Ibidem), ou seja, a sabedoria é o fogo que arde sem se ver, pedindo emprestado o verso a Luís Vaz de Camões, mas que é justamente figurada por ele.

Ora este fogoso saber vai permitir “derreter” todas as divisões, fronteiras e oposições, favorecendo a criação de uma energia mental una e pronta a fundir-se com unidade essencial e espiritual do coração-mente (心 xīn)que comanda o universo budista, em que Buda e o coração significam a mesma coisa, como nos ensina o quarto patriarca dos Chan, Daoxin (道信, 580-651) , nos Registo dos Diálogos do Quarto Patriarca (《四祖道信語錄》) aquele cuja leitura etimológica do nome aponta para a “Confiança no Caminho ”, e esse tem de ser o Caminho do coração-mente (Jiang, 1997:12-15).

Um dos textos que considero mais emblemáticos da filosofia Chan é aquele em que o monge da dinastia Song Jingxuan (警玄, 943-1027) se refere a Um Pássaro Negro na Neve na Noite Escura (夜放鳥雞帶雪飛) do Registo dos Diálogos de Jingxuan (《警玄語錄》) do Vol. 14 da Fusão das Fontes das Cinco Lanternas (《五燈會元》), também da dinastia Song, por reunir os opostos num jogo complementar, onde facilmente visualizamos uma espécie de Supremo Último (太极Tàijí), no qual um pássaro negro voa sobre a neve na noite escura, logo as únicas formas que permanecem são a máxima criatividade, aqui representada pela neve, já que o princípio celestial é branco em complementaridade com a telúrica e misteriosa escuridão.

Procura-se reter o dinamismo perdendo as formas, sendo o poder mental como um espelho, um diamante, a neve, pérola branca, esta contém o conjunto das cores sem refectir especificamente qualquer delas, ou podendo fazê-lo a todas, e joga com um outro dinamismo, o do chão da noite e do pássaro negro. Este oferece-se como a ausência de forma e de cor, traduzindo a condição adequada ao coração-mente refletor, como de resto termina a passagem na qual Jingxuan agradece ao Mestre por lhe mostrar como era o coração dele, um pássaro negro onde sobressai a neve na noite escura (Jiang, 1997: 345).

Um pouco antes dos primeiros patriarcas Chan viveu Santo Agostinho, o Bispo de Hipona e um dos nossos maiores patriarcas cristãos (354-430). Nasceu em África na atual Souk Aras da Argélia. Era de uma grande sensibilidade, intuição e afecto, valorizando a amor cristão acima de tudo. É dele o famoso aforismo ama e faz o que quiseres. Mas o amor ao qual ele se referia era altruísta, universal, capaz de ligar toda a humanidade, porque vindo diretamente de Deus.

O autor de grandes obras religiosas como Confissões, Cidade de Deus e A Trindade, foi também um grande pensador filosófico da linha platónica, tendo-nos deixado nove diálogos, entre os quais aqui se distingue o último que nos ofereceu, O Mestre . Neste diálogo, esbatem-se as fronteiras entre a transcendência e a imanência, aproximando-o, por isso, da tradição oriental e, especificamente, chinesa.

Há um mestre que ensina, Jesus, alcançável pela mente, explica Santo Agostinho ao filho Adeodato: “nessa luz interior da Verdade, de que é iluminado e goza aquele que se denomina homem interior” (1984: 71). A divindade habita no interior da pessoa e dá-se a conhecer diretamente através da mente, poder racional, coração ou buda.

Afinal que diferença há entre Buda, o Homem Interior e o coração-mente? O certo é que todos estes nomes se deixam figurar por uma luz iluminante que permite contemplar diretamente a verdade, à maneira ocidental, ou a sabedoria através “ dessa visão íntima e pura, que conhece pela sua contemplação o que eu digo, e não pelas minhas palavras” (Santo Agostinho, 1984: 71).

Assente fica que a verdadeira sabedoria habita no interior, na mente e que em ambas as linhas filosóficas se desconfia e muito das palavras. Assim, também no pensamento cristão agostiniano se privilegia a intuição, muito acima do discurso, para o conhecimento da realidade ou, como o filósofo lhe chama, das coisas: “Todo aquele porém que as pode intuir, esse interiormente é discípulo da Verdade.” (Santo Agostinho, 1984: 72).

Se a vida venturosa do cristão agostiniano, implica o conhecimento intuitivo e amor a este Mestre interior, não é menos verdade que a natureza é digna da melhor das contemplações enquanto belíssimo sinal de Deus. É evidente que há grandes diferenças entre ambas as tradições e não chegamos com Santo Agostinho a uma visão imanentista e panteísta, mas sim ao método contemplativo que rejeita as palavras enquanto instrumento privilegiado da verdade, favorecendo, à maneira taoista e budista, a ligação direta à realidade sem interferências intelectuais, ou pelo menos tão poucas quando possível.

Por último, e num regresso ao nosso ponto de partida, reafirma-se que o budismo mais caracteristicamente chinês é o Chan, que habilmente equilibra e doseia os rigores mentalistas com um louvor incessante à natureza e a à vida, sendo por isso que o Mestre Chan Huiji (慧寂,807-883) defende estar a via de Buda no quotidiano ao qual somos ligados na sua expressão , “pelos olhos, ouvidos e nariz (眼裏耳裏鼻裏)” (Jiang, 1997:250 ).

Bibliografia

Alves, Ana Cristina. 2022. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coordenação de Carmen Amado Mendes. Coimbra: Almedina, Centro Científico e Cultural de Macau.
______________. 2007. A Mulher na China. Lisboa Tágide.
Ikeda, Daisaku. Le Boudhisme en Chine. Monaco: Éditions du Rocher, 1986.
Nan Huai-Chin. 1997. Basic Buddhism. Exploring Buddhism and Zen. York Beach, Maine: Samuel Weiser, Inc.
Jiang Lansheng. 1997. 100 Excerpts from Zen Buddhist Texts. 《禪宗語錄一百則》Hong Kong: 商務印書館有限公司.
S. Agostinho. 1984. O Mestre. Braga: Faculdade de Filosofia.
Wilhelm, Richard (Trad.). 1989. I Ching or the book of changes. London: Arkana, Penguin Books.
張中鐸(編) (Zhang Zhongduo)《易经提要白話解》台南市:大孚,民84.

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