Manchete PolíticaSegurança Nacional | Associação dos Advogados insiste no respeito à Lei Básica João Santos Filipe - 14 Nov 202214 Nov 2022 A Associação dos Advogados de Macau mostra confiança nas instituições locais, mas insiste que a futura Lei de Segurança Nacional não pode existir em regime de excepção face à Lei Básica, nem os direitos fundamentais devem ser terraplanados A Associação dos Advogados de Macau (AAM) considera que a Lei de Segurança Nacional não pode contrariar a Lei Básica, “obliterar” o sistema legal vigente nem fazer uma “terraplanagem” dos direitos fundamentais. A posição foi tomada através de um parecer enviado ao Governo, no âmbito da Consulta Pública sobre a revisão à lei que está em vigor desde 2009. No documento, a AAM recusa um regime de excepção para a Lei de Segurança Nacional face à Lei Básica, que estipula as traves mestras do sistema jurídico de Macau e os direitos fundamentais dos cidadãos. “A futura lei revista continuará a ser uma lei ordinária e, por isso mesmo, deve obediência à Lei Básica, isto é, não se sobreporá à Lei Básica como não beneficiará de regime ou estado de excepção vis-à-vis a Lei maior de Macau”, é apontado no parecer. “Um outro ponto importante a assinalar é que não deve, nem pode, a futura lei apresentar-se como algo que oblitera – nestas matérias – todo o restante tecido legal vigente, por exemplo, princípio penais e processuais penais estabelecidos de há muito, nos códigos respectivos, na Lei Básica e no PIDCP [Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos]”, é acrescentado. Por isso, é pedida ponderação para que nas questões de segurança nacional os direitos não sejam completamente ignorados. “Como também não deve, nem pode, ser a futura lei vista como uma terraplanagem de todos os direitos fundamentais que com ela possa, por ventura, conflituar”, é indicado. “Os direitos fundamentais manter-se-ão e, não sendo absolutos a maioria deles, a verdade é que não podem, sob pena de violação da Lei Básica e da maneira de viver, ser absolutamente reduzidos a zero quando confrontados com assuntos regulados pela futura lei. Haverá sempre uma necessidade de ponderação e adequação, quer em abstracto, quer depois, em concreto”, é entendido. Apesar das considerações, a AAM acredita que não existe vontade das autoridades de fazer uma “tábula rasa do sistema de direitos fundamentais da RAEM”. Opinar no escuro Na análise da associação, são admitidas limitações devido ao facto, e ao contrário do que aconteceu em 2009, de a consulta pública não revelar o texto da proposta de lei. “Conforme já antes se prenunciou, é muito difícil avançar mais, trazer aqui uma apreciação mais detalhada e profunda, porquanto não existe ainda um concreto articulado”, é reconhecido. “E, como bem se sabe, sobretudo em matérias como a penal, é necessário ter um texto normativo concreto, preciso, fechado, para se poder tecer opiniões definitivas”, é frisado. A AAM sublinha igualmente que durante o processo de consulta surgiram dúvidas motivadas pela escassez de informação: “Um exemplo bem presente desta dificuldade [de emitir opinião sem o texto de consulta] pode ser aqui lembrado com recurso a uma série de afirmações públicas consecutivas em eventos dedicados ao assunto e, não raras vezes, algumas afirmações, explicações, exemplos, de responsáveis que levaram a ter dúvidas quanto ao âmbito e profundeza da futura lei em face do que vem exposto no documento que está em consulta”, foi sustentado. Apesar disso as declarações sobre a lei deixaram a associação reticente: “Algumas dessas afirmações, exemplos ou explicações pareceram ir bem além do que uma leitura razoável do documento poderia porventura permitir”, foi admitido. Preto no branco Na vertente mais técnica, a AAM defende que os crimes devem ser bem tipificados, ou seja, definidos de forma clara e objectiva, e que deve fazer-se tudo para, de acordo com a tradição do Direito de Macau, não se utilizarem conceitos abertos. O objectivo é garantir que os cidadãos comuns sabem que condutas podem constituir crime. “Sobretudo em matéria penal e em matéria de compreensão de direitos fundamentais não é demais sublinhar este ponto bem sabido. Nestas matérias, a redacção é absolutamente decisiva. Deve haver muito cuidado técnico-jurídico, uma especial minúcia na tipificação, exclusão, portanto, de conceitos demasiados abertos, amplos, híper subjectivos”, é avisado. Nesta vertente é também pedido que “as soluções” da lei respeitem os princípios da necessidade, legalidade, proporcionalidade, intervenção mínima”, além da “presunção de inocência” e de “um regime mínimo de nulidades de prova”. É também defendido que os tribunais que julguem estas matérias apenas devem obedecer à Lei Básica. Ao mesmo tempo, é destacada a necessidade de a interpretação da lei ser feita segundo a prática habitual, e não ao sabor do vento de declarações públicas: “Desde logo, uma interpretação que deve ser conforme os cânones vigentes, nomeadamente, em matéria penal. Não, pois, uma interpretação que vai avançando, moldando, e fugindo ao preceito tipificador. Proclamações públicas, de quem quer que seja, em Macau, não constituem fonte do Direito, menos ainda em matéria penal”, é destacado. Apesar da ressalva, a associação mostra confiança nos tribunais locais: “E, no campo da aplicação, que não se enverede – a AAM está em crer que não acontecerá – por uma espécie de excitação condenatória ou competição nas condenações para mostrar serviço, ainda que a lei porventura assim não o indicasse”, está escrito. “A AAM confia que os tribunais de Macau saberão manter, também nestes assuntos, competência, fiabilidade, equilíbrio, previsibilidade que têm demonstrado em outras matérias”, foi acrescentado. Oportunidade questionada Outra vertente que levanta dúvidas à AAM, é a altura escolhida para avançar com a revisão de uma lei, que nunca levou a condenações. Ao contrário de outros discursos, o facto de não ter havido condenações, não tem de ser propriamente negativo para a AAM, que até admite a hipótese de a lei de 2009 ser um orgulho para a RAEM. “É notório que a lei [de 2009] tem vindo a cumprir, no essencial, os seus propósitos, nomeadamente ao nível da prevenção criminal”, é entendido. “O facto de inexistir até agora qualquer condenação com base nesta lei não deve constituir motivo de desânimo, mas, outrossim, de satisfação porquanto tal significará que a lei de 2009 cumpre cabalmente os seus objectivos mormente, repte-se no muito plano da prevenção”, é vincado. O parecer questiona assim a necessidade da revisão nesta altura, por não encontrar no diploma de consulta a resposta para os supostos problemas da lei em vigor. “Concretamente, quais os problemas que se terão porventura feito sentir? Verificou-se a prática de ‘crimes’, mas que, por razões, por exemplo, processuais penais, não lograram acusação? Há elementos probatórios de difícil concretização no terreno?”, é questionado. “Ou, o que se pretende é um novo reequilibrar entre a lei penal e os direitos fundamentais em prejuízo destes? Isto é, uma etapa mais no reforço dos poderes da polícia, ou num novo entendimento do que deverá ser a acção penal?”, é acrescentado. Em relação a este aspecto, a AAM coloca a hipótese de as autoridades Macau quererem seguir a lei de Hong Kong, um aspecto contra o qual se mostram contra por considerarem que as famílias dos sistemas legais são diferentes e o contexto social também. Apesar das várias dúvidas, a AAM admite que recebeu muitas opiniões a favor do documento. Contudo, com o intuito de melhorar a futura lei, optou por destacar as questões que devem ser debatidas. “Um parecer só com as concordâncias dos advogados – e há bastantes, diga-se – pouco, ou nenhum, interesse real traria. Encara-se esta consulta pública como uma verdadeira consulta com vista à melhoria da matéria, e não como um exercício de aclamação pública aliás, descabido”, foi justificado.