O renyue

Ana Jacinto Nunes

Nesta peregrinação pelas montanhas da China – numa virtuosa demanda por animais nunca referidos nos compêndios do Ocidente – somos invadidos pela felicidade de aportar ao sopé da Montanha do Bambu, que se caracteriza pela profusão vegetal e pela beleza insuperável das suas encostas.

Delas se inclinam árvores retorcidas sobre abismos temperados de musgos, pelos vales cabriolam rolos de nuvens, no seu íntimo repousam metais preciosos, dos quais somente o ferro ousa mostra-se, dotando a paisagem de marcas rubras sob o sol da manhã. A temperatura é amena praticamente todo o ano e do seus bosques emerge uma sinfonia vital, que causa o espanto dos homens e parece ter adquirido o beneplácito dos deuses.

Além da vegetação prolífica, da Montanha do Bambu brotam numerosas nascentes de uma água puríssima, cujo caudal, ao longo de barrancos e vales, se transforma em ribeiros, cascatas e lagos. Num desses cursos de água, o rio Cinábrio, vive um peixe chamado renyu que, apesar do seu nome (peixe humano), em nada se assemelha a uma pessoa, sequer às tribos habitantes de certos subúrbios.

O renyu não é uma sereia, não apresenta uma face humana, não passará de um peixe vulgar, com quatro barbatanas. No entanto, a sua carne é extremamente apreciada porque se diz ter o poder de curar ilusões.

Que ilusões?, perguntará o visitante, abismado, na sua inocência, com a pretensa capacidade deste peixe de afugentar das mentes pensamentos desviantes e perigosos. Sim, respondem os alfarrábios, mas também a imaginação doce e subtil é bloqueada pela carne deste animal, impedindo a piedade e o amor. Por isso, o renyu é servido apenas a pessoas com graves problemas psíquicos, soterradas em estranhas ilusões, despedaçadas interiormente por visões tenebrosas e maléficas.

Segundo o historiador Sima Qian, no túmulo do primeiro imperador da dinastia Qin ardiam milhares de velas, feitas com gordura de renyu. Tal facto tem sugerido numerosos comentários ao longo dos séculos. Alguns atribuem-no ao extremo brilho que proporciona. Mas outros consideram-no uma velada crítica às ilusões do imperador relativas à imortalidade, como se a gordura do renyu, ardendo na sua câmara funerária, finalmente o libertasse da ilusão de se tornar imortal, algo em que torrou largas fatias do tesouro estatal, uma despesa que o cadáver ali presente claramente revelara infrutífera.

Poderia a gordura do renyu ter sido usada para eliminar as ilusões do imperador morto ou, simplesmente, para lembrar que a imortalidade nunca passará de isso mesmo – uma ilusão?

Mestre Zuo, no seu comentário, não deixa de espetar uma ínfima alfinetada na questão: “O que se me torna menos digerível é a demanda da imortalidade por parte de alguém que acredita na vida depois da morte ou não teria gastado tantos recursos do país na construção do seu mausoléu.”

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