VozesRegresso aos ares João Romão - 29 Abr 2022 Vive-se já uma certa euforia turística pós-covid, pelo menos em alguns lugares do planeta, como as zonas mais ricas dos continentes europeu e americano. Também eu, que mudei da Europa para o correspondente extremo-oriente do planeta, tento agora finalmente uma viagem de visita à família e amigos, mais um ou outro lugar predilecto, projecto que se vai adiando desde 2019, uns três anos de contactos pessoais reduzidos às possibilidades digitais. Já a minha filha vai grandinha e ainda não teve essa oportunidade de visitar Portugal, com pessoas e lugares a partilhar com urgência. Pode ser que seja agora. Foi nestes planos logísticos, ainda assim devidamente antecipados, que me deparei mais directamente com as condições que nos oferece neste momento o magnífico mercado do turismo e lazer: preços exorbitantes para viagens de avião – pelo menos o dobro do que se praticava antes do covid-19 (e da guerra na Ucrânia, eventualmente também relevante) – e preços igualmente despropositados para as diversas formas de alojamento, pelo menos nas zonas mais atractivas. Há uma certa ânsia de viagem num planeta onde viajar – incluindo o tráfego internacional e a utilização do avião – se foi tornando mais comum desde os finais do século XX. Os números não enganam: ainda em 1995 eram menos de meio milhão as chegadas registadas em voos internacionais em aeroportos do planeta e em 2019 já andávamos pelo triplo: 1500 milhões de chegadas aos terminais internacionais dos aeroportos. Há nestes números uma certa ideia de banalização da viagem e de democracia no turismo que estão longe de corresponder à realidade social do planeta. Aqueles 1500 milhões de chegadas a aeroportos não correspondem – nem perto disso – ao mesmo número de pessoas em viagem. Desde logo, porque a esmagadora maioria das viagens pressupõe um regresso, duas chegadas por cada viagem feita, o que reduz a 750 milhões o número de potenciais viajantes aéreos. Em todo o caso, nem todas estas deslocações correspondem a ligações directas entre o lugar de residência e o destino do viajante: há frequentemente voos de conexão, ligações entre origem e destino de viagem mediadas por paragem num qualquer “hub”, uma plataforma de ligação para vários destinos de um país ou de um continente. Pela parte que me toca, habituei-me a fazer três voos entre Sapporo, no norte do Japão, onde vivia, e Lisboa ou Faro, para onde viajava com alguma frequência, passando inevitavelmente por Tóquio ou Incheon, primeiro, e depois por Amesterdão, Munique, Paris, Helsínquia, ou mesmo algum aeroporto do Médio Oriente, nalgum momento de menor sensatez. Aliás, é notório em vários novos aeroportos no Médio Oriente (onde as pessoas em trânsito chegam a ser mais do que as que ali têm o seu destino), e também em diversos aeroportos europeus (Amesterdão, Frankfurt, Paris, etc.) ou de outras partes da Ásia (Incheon, Hong Kong, Tóquio, etc.) que os voos de ligação assumem parte muito significativa das operações aeroportuárias. Sendo esta proporção difícil de estimar com suficiente exactidão, vou assumir, modestamente, que das tais 750 milhões de deslocações internacionais registadas em 2019, 20 por cento se referiram a voos de ligação. Ficamos assim com menos 150 milhões de potenciais viajantes, reduzindo-se a 600 milhões o número máximo de pessoas a participar em voos internacionais nesse ano em se registou o máximo número de passageiros aéreos internacionais na história da humanidade. Mesmo deixando de fora questões sobre a motivação da viagem (por exemplo, se o viajante é turista ou uma pessoa à procura de asilo), ficam ainda por contabilizar os múltiplos voos feitos pela mesma pessoa durante o ano. Antes da emergência de pandemia de covid-19, não era difícil encontrar quem fizesse voos internacionais todos os meses (eu próprio, que estou longe de ser dos viajantes mais frequentes, estive perto disso em alguns momentos). Havia certamente pessoas ligadas a negócios ou outras actividades internacionais a viajar mais do uma vez por mês, mesmo não falando de hipotéticos casos extremos como o do célebre jogador de futebol que, segundo a imprensa, se deslocava em jacto privado quase diariamente entre Espanha e Marrocos. Mais uma vez com alguma parcimónia, vou supor que apenas um terço das viagens se referem a pessoas que viajaram mais de uma vez, o que reduz então o número de pessoas envolvidas em viagens internacionais de 600 para 400 milhões. Parecendo muita gente – e é – estes 400 milhões de pessoas que a generosidade das estimativas permite calcular representam cerca de 5 por cento dos 7,9 mil milhões de seres humanos que habitam o planeta. A estes 5 por cento não corresponde, naturalmente, um processo de banalização ou democratização do transporte aéreo e do turismo internacional de longo curso: apesar do crescimento significativo a que se assistiu nas últimas décadas, este é ainda um terreno do qual está excluída a esmagadora maioria da população terrestre – os tais 95 por cento que não entram na generosa estatística. Veremos como será neste novo universo pós-covid: as desigualdades aumentaram com a pandemia, a riqueza concentrou-se ainda mais, os preços das viagens aumentaram muito significativamente e tudo parece sugerir que o turismo internacional pós-pandemia vai ser privilégio ainda maior de uma muito pequena parte da população que tenta coexistir neste precário planeta.