Tribunal considera que Administração violou várias leis ao recusar renovar BIR

Os Serviços de Identificação recusaram renovar o BIR de uma residente, decisão validada pelo secretário para a Administração e Justiça. Segundo a deliberação apoiada por André Cheong, o BIR só seria renovado depois de a mulher apresentar um exame de ADN para ser verificada a paternidade

 

A Direcção dos Serviços de Identificação (DSI), numa decisão apoiada pelo secretário para a Administração e Justiça, recusou a renovação do BIR de uma residente permanente, obrigando-a a fazer um teste de paternidade.

A situação aconteceu em 2020, quando a residente se apresentou para renovar o documento e lhe foi exigido um teste de ADN para confirmar a paternidade, uma vez que a DSI suspeitava que o pai declarado no registo em 1988 não era o pai biológico.

No entanto, a residente, ao contrário dos pais, recusou o teste, e recorreu para os tribunais, já depois do recurso para o secretário para a Administração e Justiça ter sido negado. André Cheong, formado em Direito pela Universidade de Macau, considerou que a DSI “praticou o acto [de exigência do exame de paternidade] em observação do Direito”.

O caso vem relatado num acórdão do Tribunal de Segunda Instância (TSI), com a data de 27 de Janeiro, que revela igualmente que o Ministério Público, numa posição que mereceu concordância integral “e sem reservas” dos juízes Rui Ribeiro, Lai King Hong e Vasco Fong, arrasa por completo a conduta da Administração.

Segundo o tribunal, a decisão da DSI e do secretário André Cheong violou o direito ao bilhete de identidade de residente: “a lei não configura a emissão do BIR como um acto administrativo. É que, como resulta expressamente do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 8/2002, a emissão do BIR é um direito dos residentes e como tal, verificando-se os respectivos pressupostos, a Administração fica constituída no correspectivo dever ou obrigação de facere”, foi explicado ao Governo. “Bastará, pois, que alguém tenha o estatuto de residente para que na sua esfera jurídica se constitua o direito subjectivo à emissão do BIR, não cabendo à Administração, previamente, declarar de forma unilateral e autoritária, como é próprio dos actos administrativos, que o interessado tem direito à emissão do BIR”, foi acrescentado.

Face à actuação da DSI e de André Cheong, o Tribunal deu como provado que foi violado o artigo da lei que define que “os residentes da RAEM têm direito à emissão do BIR”.

Sem margem de dúvidas

Além da suspensão de renovação do BIR a uma residente que sempre foi permanente, desde o nascimento, o acórdão contraria igualmente as suspeitas sobre a relação de filiação entre a residente e o pai.

Segundo o entendimento do tribunal, com base no parecer do MP, a paternidade está plenamente provada devido à emissão de certidão de nascimento: “a certidão do assento de nascimento da Recorrente prova plenamente a sua filiação. Mais. Como preceitua a norma do n.º 1 do artigo 3.º do Código do Registo Civil, ‘essa prova não pode sequer ser ilidida por qualquer outra, salvo nas acções de estado ou de registo’. Por isso dizemos que, perante um facto que se encontra plenamente provado pela única forma legalmente possível não são legítimas as dúvidas as Administração”, foi explicado à DSI e ao secretário.

O pedido de um teste de ADN foi igualmente considerado ilegal: “O exame de DNA que a Administração solicitou à Recorrente, não só se revela legalmente inadmissível, pois que a ilisão da prova resultante do registo só pode ser feita em acção judicial de estado ou de registo, como, além disso, é, na prática, redundante, uma vez que a Recorrente não tem de provar através de um exame pericial um facto que já se encontra plenamente provado”, foi completado.

No entanto, o tribunal também explicou à Administração que mesmo que o teste tivesse sido feito e ficasse provado que o pai declarado em 1988 não é o pai biológico, que o estatuto de residente não seria perdido automaticamente, pelo que se impunha à mesma a renovação do BIR.

Mas, não só, a Administração foi ainda criticada por suspender a renovação do BIR, com base num processo de impugnação de paternidade, que nunca foi iniciado, de acordo com o conhecimento do acórdão.

Três vícios

Na decisão judicial ficou ainda provado que a conduta da DSI cometeu um ‘hat-trick’ de ilegalidades, com violação de normas da lei do bilhete de identidade de residente, do regulamento administrativo do bilhete de identidade e ainda do Código do Procedimento Administrativo. “Isso mesmo acarretou, ademais, uma acrescida violação da norma do n.º 1 do artigo 33.º do CPA e bem assim da norma do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 8/2002 por parte da Administração ao suspender o procedimento de renovação do BIR da Recorrente por considerar, erradamente, que tal renovação dependia da decisão de uma acção de impugnação de paternidade”, pode ler-se.

“Na verdade, a paternidade da Recorrente se encontra, como dissemos, estabelecida e plenamente provada, não se justificando, como é evidente, qualquer suspensão procedimental”, foi indicado.

Face ao acórdão, o HM contactou o secretário para a Administração Justiça, no dia 15 de Março ao meio-dia, para perceber se iria recorrer da decisão. A confirmação da recepção do email enviado pelo jornal chegou no dia seguinte pelas 10h37. No entanto, até ontem, à hora de fecho desta edição, o HM não recebeu resposta.

O HM também contactou ontem o Tribunal de Segunda Instância, por via telefónica, para perceber se a decisão tinha transitado em julgado, mas foi-nos explicado que além da publicação online do acórdão não havia mais informação a fornecer.

Wong Pou Ieng, a directora que prometeu “melhor servir” a população

A Direcção dos Serviços de Identificação é liderada por Wong Pou Ieng desde 18 de Maio de 2020, uma escolha do secretário para a Administração e Justiça, André Cheong.

Licenciada em tradução (Chinês-Português) pela Universidade de Macau, Wong adquiriu conhecimentos legais através de um mestrado em Direito da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau. Além desta formação, a directora conta igualmente no currículo com um outro mestrado, em Gestão, pela Universidade de Zhongshan.

Quando tomou posse, em Maio de 2020, Wong Pou Ieng prometeu, de acordo com um comunicado do Governo, “melhor servir a população, zelar pelos princípios de integridade e imparcialidade, ser honesto e cordial, prestar serviços eficientes e de alta qualidade”.

Na altura, foi ainda traçado como objectivo “prestar serviços mais acessíveis e eficientes à população em comunhão de esforços com o pessoal da DSI”.

A escolha de Wong para directora foi justificada com “um profundo conhecimento e experiência” da DSI, o que se atenta pelo percurso profissional. A actual directora ingressou na DSI em 1998, tendo depois desempenhado as funções de Chefe da Divisão do Registo Criminal e do Departamento de Identificação de Residentes. A partir de Março de 2018 foi promovida a subdirectora da DSI, por escolha de Sónia Chan, anterior secretária para a Administração e Justiça, antes de chegar à posição actual.

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