Começa a II Semana de Cultura Chinesa do Hoje Macau

O lançamento de um livro sobre o poeta Li Bai, com inúmeras traduções dos seus poemas, preenche o primeiro de cinco dias

 

Começa hoje a II Semana de Cultura Chinesa do Hoje Macau, pelas 18:30, na Fundação Rui Cunha. A sessão de abertura contará com actuação do Macau String Trio, que interpretará um extracto de “Butterfly Lovers”, de He Zhanhao e Chen Gang, e “Serenade”, de Wolfgang Amadeus Mozart. Seguidamente, será o lançamento do livro “Li Bai – A Via do Imortal”, de António Izidro, com apresentação de Frederico Rato.

Trata-se de um volume editado pela Livros do Meio, profusamente ilustrado, com capa dura, marcada a prata, no qual o autor nos transporta pelos poemas e pelos sítios frequentados pelo poeta Li Bai, considerado um dos maiores de toda a literatura chinesa.

Além da tradução para língua portuguesa de numerosos poemas, talvez os mais importantes da obra do poeta, o livro contém uma espécie de biografia de Li Bai e, sobretudo, a contextualização dos poemas e notas que deslindam as referências históricas e mitológicas que perpassam pelos versos do poeta, facilitando assim a compreensão do sentido de cada poema.

Além disto, o volume abre com uma introdução, intitulada “Li Bai – Apontamentos Nómadas”, de Carlos Morais José, onde é feita uma análise de alguns aspectos da poesia de Li Bai (do qual aqui apresentamos uma parte); e fecha com uma extensa cronologia da História dinástica da China, que servirá no futuro como referência, a quem se interessa por estas questões.

António Izidro, que foi até 2002 Chefe do Departamento de Informação do Gabinete de Comunicação Social, trabalhou durante muitos anos como tradutor oficial do Governo de Macau. Por isso, é completamente fluente em língua chinesa, falada e escrita. Assim, é a primeira vez que os poemas de Li Bai são traduzidos directamente do Chinês para Português.

Por outro lado

Li Bai fora também já traduzido para português por António Graça de Abreu que, além de um volume datado de 1990, uma edição do Instituto Cultural de Macau, publicou recentemente em Portugal “Cem Poemas de Li Bai”. Carlos Morais José, editor da obra, revela, no entanto, que se apresenta agora uma tradução diferente.

“Esta tradução começa por ser entrelaçada com textos que contextualizam os poemas. Estes não surgem sozinhos, aparecem com um contexto, para haver uma melhor compreensão de como os poemas foram escritos e o que querem dizer. Por outro lado, cada poema tem bastantes notas para se conseguir perceber as expressões antigas. A tradução, em si, é também muito diferente daquela que foi feita pelo António Graça de Abreu, o que só enriquece o próprio conhecimento que se vai tendo do Li Bai no Ocidente, sobretudo na língua portuguesa.”

Afirmando que o trabalho de Graça Abreu é “altamente meritório”, Carlos Morais José acrescenta que “Li Bai – A Via do Imortal” traz “versões dos mesmos poemas que dão uma outra visão do Li Bai”, numa vertente de complementaridade e não de substituição.

No arranque da segunda edição deste evento, organizado pelo Hoje Macau e pela editora Livros do Meio, Carlos Morais José entende ser “muito importante que a comunidade lusófona em Macau faça parte da ponte que liga a China aos países lusófonos”, com a aposta na vertente cultural e não apenas nas áreas comercial e económica.

“Só assim os povos se podem compreender, criando laços duradouros e evitando uma série de mal entendidos, cuja origem radica, precisamente, no desconhecimento”, rematou.

 

Li Bai- Apontamentos Nómadas (extracto)

Existe um espaço nómada, exterior às cidades ainda que no interior dos impérios. Não se trata de um território mas de um itinerário. De uma deslocação constante entre diversos pontos, pré-estabelecidos ou não. Tem as suas leis e procedimentos próprios. Não se deve considerar um espaço habitado mas frequentado. Cada itinerário tem os seus frequentadores, partilham as experiências, quer seja no deserto, na planície ou na montanha. Por vezes temem-se e defrontam-se como inimigos irredutíveis. Os itinerários cruzam-se, entrelaçam-se, formam uma rede que existe por si, capaz de garantir uma certa exterioridade relativamente aos impérios.

Podemos mesmo considerar a existência de pontos de encontro: os lugares mais frequentados. Para já, um primeiro contacto com as personagens do mundo nómada de Li Bai.

Os mestres

Impossível ignorar a vertente e a vivência taoista do pensamento de Li Bai. A vagabundagem faz parte intrínseca dessa experiência e, nessa viagem, é obrigatória a paragem junto aos grandes mestres que vivem solitários nas montanhas, em contacto pleno com a natureza. São monges, budistas ou taoistas, eremitas, homens retirados do mundo dos outros homens, em processo de aprendizado constante. Segundo Claude Larre4, existem três vias para tentar compreender o taoísmo: a dos xamanes, a dos principais textos e a da prática pessoal. Neste contexto, interessa-nos, particularmente, a primeira.

O xamanismo encontra-se difundido em todo o mundo e há quem defenda tratar-se da primeira forma coerente de estabelecer uma relação com as potências sagradas que regem o mundo e favorecem ou atormentam a humanidade. Os xamanes, em contexto amazónico, siberiano, australiano ou africano, possuem sempre características invulgares que os distinguem do resto da tribo.

Existe uma certa propensão para o xamanismo da parte de alguns indivíduos, variável consoante os contextos: pode ser um defeito físico radical, a marca do diabo, como se costumava dizer na Idade Média5, um comportamento marginal como a homossexualidade em certas tribos da Amazónia6 e da América do Norte7, a loucura entre os Tunguses da Sibéria8, ou simplesmente uma vocação natural pelo conhecimento e pela medicina.

Todos eles habitam fora do espaço da aldeia, fora de onde vigoram as regras da cultura, em grutas ou tendas, mas nunca ninguém sabe precisamente onde eles estão: preferem o contacto com os animais, os deuses e os mortos. Dedicam-se a experiências extáticas, procuram o êxtase, o transe, o que lhes permita uma maior e mais profunda relação com o invisível. De acordo com as definições clássicas, xamane é o mago ou feiticeiro, que viaja, que percorre o mundo dos espíritos com a ajuda do transe provocado pela música e pela dança, pelas drogas, jejuns, meditação ou mesmo pelo adorcismo.

O monge taoista, isolado na montanha, apresenta algumas destas características. Marcel Granet refere que “o pensamento dos primeiros autores taoistas não pode ser explicado sem ter em conta a prática do êxtase”9. Este autor estabelece uma relação directa entre taoismo e xamanismo: “o êxtase descrito pelos pensadores taoistas (…) em nada difere do transe e dos procedimentos mágicos graças aos quais os feiticeiros chineses, herdeiros de um antigo xamanismo, acresciam a sua santidade, aumentavam o seu poder e afinavam a sua substância”10.

Os mestres do taoismo dissertam longamente sobre a arte da longa vida. Trata-se de uma ideia, ainda hoje presente entre os chineses, que mergulha nas brumas do tempo e encontra a sua origem nos primórdios da religião na China. Significativamente, os ritos da longa vida surgem enquadrados pelas festas da longa noite. O taoismo, antes de ser uma especulação filosófica sobre o mundo, enquadra as suas práticas mais antigas em costumes religiosos que nunca foram sistematicamente organizados, mas que existem um pouco por toda a parte e são considerados como uma das primeiras formas de comunicação com o sagrado. Estes monges, voluntariamente desterrados nos ermos e nas montanhas, são um dos pontos de paragem dos percursos de Li Bai. O poeta refere-se à tristeza de procurar um velho mestre e não o encontrar:

“Ninguém sabe dizer por onde andará o monge:
apoio-me nuns pinheiros, absorto, desapontado.”11

Sob a melancolia, surge também o pressentimento de uma tristeza irreparável, relacionada com a distância entre o ego e o mundo, apesar da eterna demanda que, desta forma, adquire um carácter eminentemente trágico. Em certos poemas de Li Bai a figura do monge adquire as feições de um deus silencioso e teimosamente invisível. A sua ausência agrava a solidão do discípulo, é um acréscimo de individualidade, fornece-nos a poderosa imagem de um homem que, dolorosamente só, encara a natureza e os mistérios.

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