h | Artes, Letras e IdeiasTerceiro acto – Cena 6 Gonçalo Waddington - 2 Mar 2022 Os primeiros raios de sol começam a invadir a sala através da janela. A passarada também parece estar a acordar, a julgar pelo volume da galhofa que se faz ouvir. Valério levanta-se e aproxima-se da janela. Depois de alguns segundos a olhar a paisagem, abre a janela e debruça-se no parapeito. Gonçalo acende mais um cigarro. Valério [para os pássaros] Estamos muito animados, hã? Gonçalo Não lhes dês confiança! Valério Porquê, vão querer o meu braço? Gonçalo Comem-te a alma. Piu, piu… piu, piu… já foste! Valério Já foste… uma expressão de Gonçalo Wa… Gonçalo Vamos passear! Gonçalo vai até à casa de banho e fecha a porta. Valério fecha a janela e aproxima-se da porta de entrada onde estão os casacos. Tira o seu, mas acaba por voltar a pô-lo onde estava e regressa ao seu lugar para acender mais um cigarro. Valério Voltamos aqui? Gonçalo [off] Acho que não. Seguimos logo para o carro. Ouve-se a descarga do autoclismo e a água do lavatório começa a correr. A porta da casa de banho abre-se e Gonçalo sai, sacudindo as mãos. Vai até ao bengaleiro e pega no seu casaco, depois aproxima-se de Valério e acende também um cigarro. Senta-se com o casaco ao colo. Valério Porque é que não te levantaste? Gonçalo [sorrindo] Mas tu queres mesmo ir passear? Valério Quero. Mas algo me diz que seria bom para os dois irmos passear com esta questão resolvida. Gonçalo [desagradado] Mas tu tens alguma questão? Valério Calma, ‘mor, estamos só a conversar. Gonçalo O que é que queres que te diga? Valério Quero que penses no assunto, nem que fiquemos aqui até amanhã, e me dês uma resposta aceitável. Gonçalo Ui… o que é uma resposta aceitável. Valério Não precisa de ser definitiva. Basta que se perceba que tentaste, pelo menos… Gonçalo Ai, ‘mor, tantas certezas! Valério Eu vou buscar o meu casaco e venho já sentar-me outra vez só para te pressionar. Valério cumpre o prometido. Depois de apanhar o seu casaco e o cachecol, regressa ao seu lugar. Acende mais um cigarro e sorri para Gonçalo. Gonçalo [atrapalhado] Que pressão! Valério Desembucha! Estou a ficar com fome. Gonçalo vai até ao fogão, pega na cafeteira e vai enchê-la na torneira do lava-loiças. Depois regressa ao fogão e acende um dos bicos. Abre uma lata de café e deita duas colheres generosas na cafeteira. Vem até à mesa, abre um grande saco de compras e põe todas as garrafas vazias lá dentro. Antes de regressar ao seu lugar, espreita a lareira. Resolve espalhar as brasas quase moribundas para que faleçam de vez. Valério [sorrindo] Já acabaste a lida da casa? Gonçalo [pensativo] Não tenho resposta. Valério Aldrabão! Gonçalo Não tenho. Valério Nem tentaste! Gonçalo Já tentei várias vezes… não encontro resposta. [pausa] O que é mais assustador é que… aquele momento… é um hiato. Valério Um hiato? Gonçalo Sim, uma falha. Uma lacuna. Valério Eu sei o que é. Gonçalo Eu sei que sabes… mas é a única maneira de descrever o que se passou. Sentei-me… fiquei ali quieto durante umas horas… e acabou-se. E durou o tempo que terá durado o funeral… pelos vistos. Agora, o que é que se passou comigo durante todo esse tempo?, perguntas tu. [pausa] Não faço a mínima ideia. Valério Não pensaste em nada? Gonçalo Nada. Valério Não te levantaste para comer. Gonçalo Não. Nem tive fome. [pausa] Mas lembro-me de que a primeira coisa que fiz, quando me levantei, foi ir para a casa de banho. Estava bastante aflito. Mas enquanto estava sentado não senti vontade nenhuma. Valério [pausa] Olha… se eu fosse um psicoterapeuta da treta, diria: isso é a tua maneira de lidares com as tuas emoções. Fizeste um by-pass ao luto do teu amigo, ficando em casa a olhar para nenhures. [pausa] Já te tinha acontecido semelhante coisa na vida? Gonçalo Como este apagão? Valério Como queiras chamar-lhe… Gonçalo Não… nada que se pareça. Valério Se calhar devias abordar esse tema do apagão no Joãozinho Neo-Nazi. Gonçalo Auto-terapia? Valério Porque não? [pausa] Eu disse algumas coisas à família e aos nosso amigos em comum… no funeral. Gonçalo Olha que bom para ti! Valério O que é que gostarias de ter dito? Gonçalo [incomodado] Sei lá! Valério [desafiante] Aqui que ninguém nos ouve… diz lá. Gonçalo Não me faças isso, por favor. Valério [sorrindo] Depois vamos embora… A cafeteira começa a silvar. Gonçalo pousa o casaco no chão. vai até à cafeteira e apaga o bico do fogão. Pega em duas canecas que estavam de pernas para o ar no escorredor e enche-as de café. Regressa ao seu lugar e dá uma das canecas ao amigo, antes de se sentar. Valério Então… só umas palavras, vá. Eu começo: Era meu amigo. Eu gostava muito dele… fazia-me rir. Estou triste. [pausa] Vês, fui fofinho. Gonçalo És sempre. Valério Vá, agora é a tua vez. Gonçalo [envergonhado] Não consigo. Valério [dando-lhe uma palmada nas costas] Eu sei. [pausa] No meio da floresta já volto à carga. Os dois levantam-se e vestem os casacos. Gonçalo pega no saco das garrafas e Valério certifica-se de que a janela está fechada. Gonçalo abre a porta e os dois amigos saem. FIM