Christy Un e Gladys Ng, Genervision House: “Só com transparência há responsabilização”

Em menos de um ano, a Genervision House, ONG dedicada à promoção dos 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável definidos pela ONU, acolheu uma importante base de apoio em Macau. Ao HM, a fundadora do projecto Christy Un e a responsável de projectos comunitários, Gladys Ng sublinham a importância de apresentar acções concretas rumo ao desenvolvimento sustentável de Macau em diversas áreas. Na base deve estar a transparência e a capacidade de adaptação à realidade local

 

Como nasceu a Genervision House e quais os principais objectivos do projecto?

Christy Un: Penso que a Genervision House é, de certa forma, resultado da pandemia, porque foi uma ideia que começou quando eu e a Arianna [outra das fundadoras] estávamos confinadas em diferentes países e conversámos muito por zoom, sobre a enorme quantidade de incertezas que há no mundo. Nessa altura, vimos também que em Macau há uma necessidade de diversificar a economia e introduzir mudanças rumo ao desenvolvimento mais sustentável. Por isso, decidimos criar a Genervision House e, quando voltei a Macau, começámos esta plataforma. Pouco tempo depois, organizamos um primeiro evento sobre a promoção dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) definidos pela ONU em Macau. Daí começámos a promover mais actividades e a contar com a participação de mais pessoas, membros e voluntários.

Desde que foi fundada no início de 2021, como tem sido a aceitação da Genervision House?

Christy Un: Ao longo deste ano, tem havido cada vez mais vozes, quer provenientes da comunidade local, quer de outras organizações ou até do meio empresarial preocupados com matérias relacionadas com o desenvolvimento sustentável. Além disso, temos uma base de apoio que tem crescido e transmitido o seu apreço pela sinceridade e empenho que temos colocado nesta tentativa de fazer a diferença. Esse apoio tem sido demonstrado pelo número de pessoas que participam nos nossos eventos e que colaboram connosco.

Gladys Ng: Juntei-me à equipa depois de participar numa actividade da Genervision, pois identifico-me totalmente com o que está a ser feito. Na altura, fiquei entusiasmada por ver tantas pessoas a falar apaixonadamente sobre tópicos relacionados com o desenvolvimento sustentável, pois era algo que pensava ser muito raro em Macau. Acho que a Genervision House é também uma comunidade para os residentes de Macau que se preocupam com estes tópicos. Quando voltei a Macau [depois de estudar nos EUA], fiquei algo confusa e perdida, porque senti que, em Macau, ninguém se preocupava com a questão da sustentabilidade. Confesso que me senti muito sozinha, mas depois de me juntar à equipa da Genervision e conhecer mais pessoas, comecei a sentir que havia, de facto, pessoas que se preocupavam com estes assuntos aqui. É importante sentir que não estamos sozinhos e que é possível continuar a ter esperança.

Qual a importância de promover em Macau os ODS e quais são as principais preocupações dos residentes?

Christy Un: Os ODS são referenciais internacionais que o mundo está a tentar alcançar. Falando a nível local, ainda existe um grande desconhecimento sobre o que são os 17 ODS definidos pela ONU. Por exemplo, estes objectivos nem são sequer mencionados [pelas autoridades], usando-se, muitas vezes e apenas, chavões relacionados com o desenvolvimento sustentável, que está cada vez mais proeminente a cada dia que passa. Mas, concretamente, como podemos alcançar este desenvolvimento sustentável e estarmos alinhados com as melhores práticas internacionais? A nossa ambição e vontade é trazer estas questões para a comunidade local. Além disso, porque estes objectivos devem ser atingidos em 2030 e nós já estamos praticamente em 2022, há uma grande urgência no trabalho que estamos a fazer, para não falar nas questões que a pandemia levantou, e que mostrou como era importante introduzir mudanças.

Que objectivos a Genervision está focada em desenvolver em Macau?

Christy Un: A nossa organização foca-se em cinco dos 17 ODS, embora isso não queira dizer que não nos foquemos em todos, pois, no fundo, estão interligados. Estamos focados na promoção da igualdade de género, na educação de qualidade, na redução de desigualdades, na acção contra a mudança global do clima e nas parcerias e meios de implementação. A nível local, estes são os principais problemas a nível de sustentabilidade. Por exemplo, em termos de acção climática, em Macau há muito desperdício de resíduos sólidos e alimentares e, actualmente, as únicas medidas ambientais estabelecidas estão relacionadas com aquilo que é observável.

Gladys Ng: Sim, não há preocupação de reduzir o desperdício na fonte, por exemplo. Além do desperdício alimentar, é preciso dizer que, em Macau, há muitos tufões e que eles se estão a tornar mais frequentes. Se olharmos para os dados desde que há registos, houve 8 super tufões que obrigaram a içar o nível 10, sendo que destes, três ou quatro aconteceram nos últimos cinco anos. É algo sobre o qual temos de agir, mas parece que tanto o Governo, como as organizações locais estão a tomar medidas desajustadas à realidade e sem base na ciência climática.

Sentem que, muitas vezes, o termo “sustentabilidade” é usados sem base científica e de forma inconsequente?
Gladys Ng: Sim, por exemplo, Grupo de Trabalho Interdepartamental Contra as Alterações Climáticas que foi criado pelo Governo em 2015, nunca publicou qualquer documento ou relatório e apenas reuniu uma vez. Por isso, parece não haver um plano de acção climático claro ou um projecto. Temos o objectivo de atingir a neutralidade de carbono até 2060, seguindo o plano nacional da China, mas não temos metas a curto ou médio prazo ou sequer um plano com acções concretas sobre a forma de atingir esse objectivo. Apenas sabemos que vamos lá chegar, mas não sabemos como.

Sentem que os residentes de Macau estão preocupados com estas questões e que esses receios não são devidamente acompanhados?

Christy Un: Não estamos só a falar do lado ambiental, porque os ODS envolvem também aspectos económicos, sociais e ambientais. Por exemplo, sobre o tópico “redução de desigualdades” não existe em Macau uma definição de limiar de pobreza, ao contrário do que acontece em Hong Kong. Tudo isto torna mais difícil contabilizar quantas pessoas estão abaixo do limiar da pobreza no território. Os próprios subsídios atribuídos pelo Governo escondem uma sociedade bastante desigual.

Em que campos Macau está melhor e onde consideram que estagnou?

Gladys Ng: Um dos tópicos em que Macau tem evoluído é na igualdade de género e ao nível da educação e taxa de escolaridade. Tem havido também uma redução ao nível da diferença de vencimentos entre homens e mulheres.

Christy Un: Sim, tem havido uma melhoria nestes aspectos, mas outros temas não têm progredindo muito, como a violência verbal, que muitas vezes não é tida em conta pela comunidade local. Além disso, sentimos que é difícil para as mulheres denunciarem estes casos e outros de assédio sexual ou violência doméstica, por exemplo.

Gladys Ng: Sobre a violência doméstica, importa dizer que muitos dos agentes das autoridades chamados para acudir estes casos, não têm capacidade para avaliar se se trata de uma situação severa. Outro tópico que importa melhorar é ao nível da participação política, já que é possível ver que a proporção de mulheres em cargos políticos é muito menor que a dos homens. Isto, quando mais de metade da população são mulheres. É algo em que é preciso trabalhar.

Ao nível das alterações climáticas e da reciclagem, o que pode ser feito em Macau?

Christy Un: Apesar de a situação estar a melhorar e de haver mais pontos de reciclagem em Macau, acho que falta coordenação entre os diferentes sectores e aquilo que as pessoas estão realmente a fazer no seu dia-a-dia. Por exemplo, encomenda-se muita comida e isso aumenta de forma tremenda o uso de plástico. Outro aspecto é que, apesar de o desenvolvimento sustentável ser um chavão aplicado em muitos projectos políticos, o Plano Director não contém menções ambientais, por exemplo. As alterações climáticas não são mencionadas e é importante que esses termos constem das políticas e que se diga à população que é urgente actuar.

Gladys Ng: Outra questão está relacionada com a transparência do Governo ao nível dos projectos em desenvolvimento. Por exemplo, ao nível da reciclagem, a maioria das pessoas assumem à partida que os resíduos não vão ser separados e reciclados, mas sim enviados em conjunto para serem incinerados. Essa é a ideia geral que as pessoas têm e isso é um problema de transparência. Por isso, precisamos definitivamente de mais abertura do Governo acerca do que está a ser feito e ao nível dos resultados alcançados.

Christy Un: Só com transparência há responsabilização. Isto é verdade para todos os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, porque, apesar de existirem dados e referências para monitorizar o progresso, há também uma necessidade de estabelecermos os nossos próprios objectivos e referências.

Que tipo de actividades são promovidas pela Genervision House?

Christy Un: Temos vários tipos de actividades. Umas mais experimentais e outras, como workshops, não só para a comunidade local, mas também para o sector privado. Nestes eventos, introduzimos estes conceitos dos ODS, como podem ser aplicados e qual a situação em Macau acerca destes tópicos. Temos também abordagens temáticas, sobre turismo sustentável, por exemplo. Temos recebido bom feedback porque as pessoas sentem que estamos lá de coração para transmitir a mensagem. Além disso, nos workshops que fizemos com a Wynn Macau e a Sands China, os funcionários foram muito participativos. Estamos muito gratos porque este projecto começou há menos de um ano e sentimos que chegámos no momento certo porque a comunidade tem essa necessidade.

Dado o contexto peculiar que estamos a viver, não só pela pandemia, mas também a nível político, consideram que transmitir este tipo de conhecimento e alcançar objectivos globais é hoje uma tarefa mais complexa?

Christy Un: Definitivamente. Nos dias que correm, há muita tensão gerada por dicotomias ideológicas e sabemos que, para aprender com os outros e para partilhar o que estamos a fazer dentro de portas, temos de desenvolver o intercâmbio cultural e entendimento mais profícuo. Por isso, há de facto um lado perverso gerado pela tensão geopolítica. Mas sentimos que temos um papel a desempenhar na promoção do entendimento porque, no final, a concretização dos 17 ODS é aquilo que mais importa e precisamos de colaborar, para que isso possa acontecer. Considero também que, apesar destes objectivos poderem envolver aspectos políticos, é possível promover acções baseadas em conhecimento científico e ser-se objectivo sobre o que é preciso fazer. Isto, para que possamos seguir em frente sem interferência das questões políticas. Além disso, porque todos estes objectivos são provenientes da ONU e a maioria dos países, especialmente a China e os EUA, quer fazer parte de uma solução multilateral, acho que que esta é também uma forma de dizer que temos mesmo de arregaçar as mangas e fazer o que é preciso em conjunto.

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