Conto 9 – Hotel dos Mortos, projectando a morte sobre a vida

“Death makes angels of us all
And gives us wings (…)”
Jim Morrisson

 

Hoje, a partir da conversa que tive com a Maria Teresa Cruz, vou riscar no mapeamento deste mundo, que os meus contos traçam, o lugar do Hotel dos Mortos. Não estávamos ali por acaso, mas isso não vem ao caso. Sentadas num banco por baixo dos ciprestes no Cemitério de Benfica em Lisboa, falamos com a voz pequenina e testemunhal de quem sabe que a nossa experiência não se restringe à teia racionalista do existente. De quem prefere o que migra da voz das sereias às palavras dos poetas. De quem não se deixa vencer pelo medo e o sofrimento que devora a alma se não tratamos dos nossos mortos. Ambas sabíamos que evocar as imagens deles é uma experiência maior, quando almejamos os seus rostos a pairar sobre nós: olhando-nos, vigiando-nos, debruçando-se, despenhando-se, projectando-se sobre o mundo vivo.

Entre essas e outras recordações, lágrimas e choros, ocorreu-me uma certeza: o humano sempre articulou a ferramenta óptica à consciência afectiva; do coração da cabeça, acrescentou a Teresa lembrando o António Damásio. Sim, confirmei. Também li o último livro dele, que me ofereceram no último Natal. Adiante. Dizia eu que o humano sempre projectou internamente imagens, e sempre desejou que se escapassem da sua mente e partissem para chegar aos outros. Sempre gravou imagens e sons num suporte que montamos dentro de nós como o material de um filme. Que sonhamos nas vésperas do acordar. Mas ninguém sabe, ao certo, proceder a uma arqueologia desse processo.

E a verdade é que encontramos essa vontade, esse princípio que não se confunde com a cena paleolítica e ritual da impressão da imagem. É uma coisa mais da ordem do khora de Timeu, parece-me. E a Maria Teresa Cruz lembrou-se então dos textos do Bernard Stiegler, sobre a arché-cinema. Uma arché cinematográfica que vai para além da maquínica arqueologia dos media, e que parte da inquieta da fábrica dos sonhos, que o Modus operandi do cinema viria a esclarecer. Fiquei admirada. Como é que não conheço? Na verdade tenho folhas e folhas de notas sobre este homem, professo experimentador que, exactamente por isso, se tornou um filósofo dos que gosto e prefiro, porque estão ligados à vida e são capazes de por ela morrer. Deste funambulista, marcado pela sobrevivência e preferência de Derrida, saltamos para Friedrich Kittler. Outro resistente movido pela vida e dela extraindo também a matéria e a tarefa de filosofar que se esconde no canto das sereias ou no balançar de uma folha que cai de um poema. Tive o privilégio de conhecer Kittler pouco tempo depois do meu pai morrer, porque afortunadamente a Maria Teresa Cruz e o José Bragança de Miranda me levaram com eles a uma conferência no Porto. Naquela cidade encontrei aquele homem que quis que o filmasse contra o mar dos descobrimentos, mesmo que o avisasse que em contra-luz ficaria transformado numa quase silhueta. Ele não se importou. Só queria que por trás da sua figura se visse o Atlântico Português, enquanto ouvíamos as suas palavras. Gostei da escolha de Kittler, claro!

Tendo a consciência afiada da morte, o filósofo alemão falava dos mortos da nossa vida que são numericamente mais que os nossos vivos: os pintores, os escritores, os filósofos, os amigos e a família que encontram a sua morada em hotéis de mortos espalhados no globo, que se metamorfoseiam numa momónade misteriosa de moradas de castelo interiores, num mais misterioso tango entre Leibniz e Santa Teresa de Ávila. Tudo pode acontecer com os espíritos nómadas que vagueiam pelas paisagens dos vivos e nelas se imprimem ocasionalmente. Tudo pode acontecer com os habitantes dos hotéis dos mortos, em Pere Lachaise pode emanar um nocturno de Chopin e fundir-se com a voz de Morrison, enquanto a “A Liberdade Guiando o Povo” de Delacroix é vista da lua de Méliès: sons e imagens e corpos a dançar a valsa do mundo num esquisso da eternidade. Nada disso me espantou. Sempre tive a percepção que a morte é um arquivo extraordinário, fulgente, irreversível, que nos abraça a cada dia que passa. E mesmo sabendo que não nos podemos esquivar do abraço final, nem por isso lhe fugimos. É só a morte, meu bem, meu amor. É só a morte que está entre nós – apetece dizer aos nossos mortos mais queridos. A morte é uma escrita de coisas que se dizem sem se dizer, de sentimentos que se sentem sem se sentir, de relações que existem sem existir – coalhados em imagens e sons, que procuram formas de se esquivar – a palavra esquivar hoje persegue-me, como me persegue o écran onde a morte projecta a vida que já não se vive.

E volto àquele ponto em que sonhamos acordados imagens, sons, movimentos, com vontade de cinema afinal, e vemos a potente fantasmagoria das formas da mente encontrar clones dos nossos sentidos capazes de clonar a percepção, a sensação, a consciência e a imagem interna. É certo que foram precisos milhares de anos para que as câmaras de filmar clonassem o olhar e a kinestesia, os gravadores a fala e a audição, os movimentos de câmara o movimento de quem observa, seja uma personagem, o público, ou o próprio filme. Estava a delirar porque escrevi sobre isso há muito tempo, mas ali num banco do cemitério tive a certeza que a vida clona a morte e a morte clona a vida, e nós somos a máquina que efectiva este aparatoso drama da existência.

Nesta experiência dos homens não há nenhuma estranheza, a não ser que somos familiares de lugares vazios que se enchem de desejos de ver, ouvir e sentir – numa anómala performatividade acentrada e incontrolável dos seres que ainda caminham pelo mundo para viver a árdua tarefa de fazer coisas. Assim imaginei Pessanha a vaguear na sua Macau, meio morto-meio vivo, num acto de resistência maior – porque se move como as estrelas na imaginação. Num trejeito de espanto as estrelas – sei que me repito – rompem o céu e caem nas lágrimas que fundem a morte e a vida dos nossos mortos e dos nossos vivos – projectando no ecrã interno e cristalino do nosso corpo um filme sem princípio nem fim.

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