Pela mão de Duchamp

[dropcap]H[/dropcap]oje apetece-me ser uma mão, um pincel, um escopo, um martelo. Ser o que faz. De algum modo ser o pensamento matérico a rondar abusivamente o mundo. Pensei descer em Frankfurt e falar com Heidegger. Mais do que discutir o jovem ou o velho filósofo de Frankfurt, e o comprometimento com o nazismo, quer acompanhar um pensamento à mão, sobre a coisa e a arte. Falo de pesca artesanal no meio das florestas que bordejam os lagos. Não considero menor o problema deixado pelo seu silêncio mas, por bizarra ironia, ele legou ao pensamento contemporâneo a possibilidade contemporãne de reflectir sobre a arte. Melhor que ele, irremediavelmente, melhor que Heidegger, tenho Duchamp, o meu amante preferido.

Quero sempre falar com ele. Quererei sempre dormir com ele, escutando uma interioridade que me acolha na revolução absoluta. A abertura, a clareira se quisermos, é que Duchamp retira a Arte da colonização dos sentidos que a Estética, aliás Hegel, não previra. Nem Kant, na tentativa de a resgatar, como acção desinteressada, de qualquer propósito ou objectivo logocentrico. Nem Hume e Diderot, ao acrescentar-lhe uma grelha nova: o juízo de valor e o gosto. Caminhos, trajectos para encontrar uma nova pergunta sobre a arte entre a repetição dos canones e a vontade de liberdade, oscilando numa feroz tensão entre as mãos e o cérebro. Mas suspeito que procuramos solucionar o que só pode ser insoluccionado. Descanso dentro de uma mala de Duchamp e convido-me para quê? Perceber? Compreender? Aceitar? Viajar, seguramente numa nova constelação antropológica. Ao tremor romântico de Blake, acrescentamos as paixões alegres de Espinoza, as paixões arrebatadoras de Descartes, os passes semânticos no voo de borboleta da arte dita moderna, num funambulismo miraculoso mas perigoso, desde o desfazer da perspectiva, juntar culturas visuais num estranho choque perceptivo, nomear ceci n’est pas une pipe num desacordo surrealista com o sentido, esvanecendo o espaço abstratamente com todas as suas consequências, mas, sobretudo, dando lugar ao corpo e aos sentidos, desenterrando-os da ocultação metafísica da tradição ocidental.

As mãos são do corpo e, gosto de imaginar, que o corpo pensa com as mãos quando faz arte. É obviamente uma mão que espalha os dedos todos pelo mundo e cria, neste caso, mundo. Mas cheira-me ainda a ontoteologia. Este caminho não me convém. Preciso ir mais longe. Perguntar melhor. Dou a mão a Duchamp e sinto-lhe as veias dilatadas e alguma rugosidade. Caminho ao seu lado, ele ainda é novo e, sobretudo, preguiça. Não é uma preguiça qualquer. É uma vontade: não quer repetir, repetir-se, quer fazer o novo de novo (Nietzche, esse delicioso fantasma, anda sempre por aí). Encosto a cabeça no seu ombro. Heidegger, não muito longe, sorri trocista. Sinto-me perdida. Eu sou apenas uma mulher loucamente apaixonada pelo contemporâneo. Por aquilo que é próprio do contemporâneo, ouviu, Sr. Heidegger! Mas ele já desapareceu.

Não toma posição e afasta-se silenciosamente como um espectro. Sou percorrida por um arrepio gelado. Os pés pisam o tempo. Melhor os tempo insurgem-se. Sinto medo de o surfar, como no mar. Como quando a onda me empurra e me faz descer depressa demais e eu travo a descida e páro. É um medo estúpido porque se cair nem me magoo. Então o que é que me assusta? O chão ser mole. Não manter à tona o meu peso.

Quebrar a lógica da maravilhosa linha de terra ( sim porque eu desde pequena que adoro este enunciado: linha de terra é o eco da minha mãe geómetra). O tempo não tem cor. É vazio. É uma ilusão. Pode ser de qualquer dimensão. Posso inventá-lo. Os tempos abespinham-se por baixo de mim. Ali, dum cantinho inseguro plana um tapete voador. De vez em quando percorre veloz a velocidade. Ri-se de mim e manda-me umas luvas mágicas. Tenho a certeza que é Nietzsche. Só pode ser. Também gosto dele. Posso dizer que não sou uma maria-vai-com as-outras, sou mais uma maria-vai-com-eles, porque são geniais. Apaixonadamente geniais. Admiro-os e não há melhor amor que a admiração. Qualquer outro comentário da ordem da intimidade não adianto porque nunca faria parte do que que quero contar nestas minhas teorias do céu: o que é próprio do contemporâneo em arte. A admiração e o rapto que produz no espectador é sempre uma coisa própria da arte. Duchamp quererá largar-me da mão, por ter secumbido a uma vontade universal?

Deixar-me pendurada no devir sem resposta? Raios e coriscos, neblinas e chuva miudinha, estrelinhas fulgentes, beijos coloridos, carícias perdidas, palavras sacudidas, deuses, diabos, anjos, fantasmas, ruínas, nadas – tudo num vórtice medonho que nunca mais termina. A mão de Duchamp, afinal agarra-se mais à minha e salva-me daquela escalada negativa, daquela queda para lugar nenhum. O sorriso enigmático, o desenterrar das obras – porque se trata sempre de criar obras, não mundo. Nelas está a origem da arte. A sua essência, não é, Sr. Heidegger? Não brincamos aos deuses, mas aos homens que podem jogar os dados de Deus, se calhar. É divertido. Se calhar Duchamp convida-me para uma partida de xadrez. Vou perder claro, a não ser que ele desconheça a entrada à Leonel Pias, inventada anos mais tarde por um português. Talvez tenha sorte, mais sorte do que tinha quando jogava com a minha filha: ela ganhava sempre.

Mas não. A ideia dele era outra. Enfiou-me numa pintura que fez muito novo e não me consegui entender dentro dela: algum naturalismo, algum impressionismo… perdi a charada e fui cuspida daquele quadro para outro. Uau! Que diferença: estava dentro de puro movimento. Trepidante. Eu era um corpo que se desdobrava em tempo. Que estranho e que bom. Era a mão de Duchamp que me pensava enquanto corpo de mulher em movimento. Mas chegando ao topo fui cuspida para outra coisa. Fiquei presa a um vidro que se estalava. O ruído do acaso ficou congelado na minha perceção. Escorreguei num urinol que afinal estava num museu porque este meu amigo decidiu que era uma obra de arte. Depois numa caixa que se fechava e abria como uma pequeno museu, neste caso não imaginário, mas matérico. Miniaturizado. Com obras incompletas.

E depois fui cuspida para o vazio da vida. A mão de Duchamp não tinha mais nada a dizer. Mas tinha dado o pontapé de saída do grande jogo contemporâneo. O campo de forças estava traçado: as obras podiam não ser retinianas, o desouvrement do gesto contemporâneo podia desfazer, ou não, os contemporâneos que ficavam para trás como Giotto, Rembrant, Delacroix, Courbet, Manet, Degas, Cezanne, Picasso, Braque… mas nenhum deles saíu da pintura retiniana. Nenhum deles pensou a pintura como algo mais que a pintura. Na verdade ainda estavam instalados na pintura de uma pintura.

É tempo de fechar o assunto. a porta do abysmo abriu-se. A floresta é cada vez mais densa. Heidegger recorta-se lá ao fundo. Eu experimento com as minhas mãos e pinto os planos da natureza naturante, separando-os da síntese retiniana, experimentando o meu corpo naturans pelo meio a bailar com Rimbaud, outro mestre da revolução contemporânea. Serei por isso contemporânea?

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