João Santa-Rita, arquitecto: “São os habitantes que dão corpo e alma às cidades”

O arquitecto e professor João Santa-Rita chegou a Macau pela primeira vez numas férias em 1986. Veio ter com o já desaparecido arquitecto Manuel Vicente, colega e amigo do seu pai (José Daniel Santa-Rita), e acabou por ficar dois anos a colaborar em projectos importantes, como o World Trade Center, os estúdios da TDM ou os Lagos Nam Van. Voltou diversas vezes ao território e veio agora apresentar dois seminários, sobre a identidade da arquitectura no contexto mundial. Ao HM falou da sua relação com a cidade e da transformação que encontrou nestes 30 anos

 

 

Como foi chegar a Macau, nos anos 80? Que diferenças encontrou na arquitectura local e na rapidez de concretização dos projectos, tão diferente do que acontecia em Portugal?
[dropcap]A[/dropcap] minha vinda para Macau foi muito planeada, era um sonho e eu já queria vir desde 1977 ou 1978. Ouvia falar de Macau, através de exposições do arquitecto Manuel Vicente (MV), e fiquei sempre com aquele fascínio de vir para cá. Tinha também um primo meu que cá esteve nos anos 70. E, portanto, quando vim, numas férias da Páscoa em 1986, vim ter com o arquitecto MV e disse-lhe que estava aqui. “Estou de férias, mas estou pronto para trabalhar”. E assim foi. Gostei de Macau desde o dia em que cheguei. E continuo a adorar. A maior surpresa foi aquilo que encontrei, que vinha de um país como era Portugal na altura, do ponto de vista do seu desenvolvimento, das crises pelas quais tinha passado, da realidade da cidade. E em Macau encontrei, tal como na vizinha Hong Kong, condições muito diferentes, onde as coisas tinham uma velocidade e uma escala de concretização completamente distintas.

Esteve ligado a importantes projectos em Macau. Como foi essa experiência?

Na altura tive a sorte de ter participado nalguns trabalhos do arquitecto MV, que foram desafios bastante importantes para o atelier, e também para nós enquanto arquitectos, como os projectos dos estúdios da TDM ou do World Trade Center. Esta começou por ser a razão da minha permanência em Macau, de 86 a 88, mas acabou por ter muitas fases e arrastar-se no tempo. Já não estive nas fases finais, nem sequer assistir à sua construção. A última coisa em que colaborei com o arquitecto MV foi no projecto dos Lagos Nam Van, num período em que estava entre Macau e Portugal, de 88 a 90. Foi uma época de que guardo grandes e boas recordações, não só porque foi uma coisa muito intensa, como já tinha sido o WTC, uma coisa fulminante, em que tivemos que preparar a primeira fase do projecto numa ou duas semanas, mas sobretudo porque acho que foi uma obra que teve um impacto muito positivo em Macau. Do meu ponto de vista, os Lagos Nam Van deram à cidade um novo pulsar de grande dimensão, depois dos aterros do ZAPE e do NAPE, que eu tinha visto crescer lentamente. Vejo sempre os Lagos Nam Van como uma oportunidade da cidade poder olhar para si mesma. E considero-a, de facto, uma obra muito importante, por fechar esse anel periférico de Macau.

Hong Kong e Macau, como as viu e como as vê, 30 anos depois, engolidas pelas gigantes metrópoles chinesas? Como arquitecto, o que se ganha e perde nesta evolução?

Há uns meses atrás, vi um vídeo sobre as dez cidades mais importantes da China. E a primeira reacção foi pensar “como é que a Europa andou distraída e não se apercebeu de como as cidades na China cresceram e o país se tornou tão relevante para o mundo?” A ideia de estarmos fechados entre portas, na Europa, numa espécie de fortaleza, à prova de tanta coisa, fez com que perdêssemos a percepção de como o resto do mundo está a evoluir. O que me deixou também muito surpreendido foi ver a cidade que está neste momento à volta de Macau. Eu tinha estado cá em 2015 e nada daquilo existia! Em quatro anos, de repente, vejo ali duas torres, do lado de lá, que quando cheguei de barco nem percebi que estavam fora de Macau. Ontem [segunda-feira] tive a sorte de ir a Cantão e fui confrontado com o que era Cantão há 32 anos e o que é agora. A evolução é uma inevitabilidade, o mais difícil é quando os processos não são controlados. Não posso ter qualquer pretensão de falar sobre Cantão, depois de uma visita de um dia, mas o que vi foi um novo centro extremamente consolidado. A solidez das opções, os espaços públicos, a qualidade dos arranjos, a dimensão. O espaço público é uma coisa fundamental, o que me deixou completamente surpreendido. E existe essa preocupação. No fundo, o espaço público é aquilo que todas as pessoas utilizam. Quando estávamos aqui em Macau dizia-se muitas vezes que esta é uma cidade que tem poucos espaços, mas tem muita qualidade e muita intensidade, não são espaços que estão desocupados, são espaços onde as pessoas vivem intensamente. Acho que é isso que confere qualidade às cidades, a forma como nós as percorremos, como podemos andar, circular, descansar, usufruir dos jardins, das avenidas, por aí fora.

Que problemas pode trazer este crescimento rápido às cidades?

De facto, no Ocidente estamos pouco habituados ao crescimento abrupto das cidades, basta ver o caso de Lisboa que há muitos anos se debate para não perder população. Mas, aquilo que me parece essencial, é que este crescimento abrupto consiga conviver com a importante questão de manter os centros vivos. Se os centros forem preservados, não enquanto atracção turística, mas com actividade própria, com vida, com habitantes, isso é o mais importante. Julgo que Macau mantém isso, ainda não tirei impressões a esse respeito, mas parece-me que mantém um comércio vivo, tem serviços administrativos, actividades privadas, entidades bancárias, e não só. Macau é uma cidade como tantas outras, que existem há muitos anos e já passaram por tantas provas. Aliás, há poucas cidades no mundo que desapareceram, ou seja, que se tornaram obsoletas e foram abandonadas. São muito poucas, as cidades históricas que nós conhecemos de impérios que caíram. Roma não é certamente uma delas, sofreu várias quedas, mas continuou e ainda hoje é uma grandiosa cidade. Mas os grandes centros das cidades passam todos por vários momentos, mais equilibrados, mais integrados, com mais ou menos habitantes. As cidades são criadas para serem habitadas.

Como vê o aumento populacional de Macau em relação aos anos 80 e também a invasão diária de turistas? Que reflexões pode um arquitecto fazer sobre a relação do espaço com os habitantes? E que soluções pode sugerir?

Alguns desses fenómenos, infelizmente, são muito espontâneos, não são programados. E a coisa mais difícil, por vezes, é saber como é que se planeia por antecipação. Como sabe, Lisboa e Porto estão a sofrer exactamente o mesmo problema, que é uma espécie de colisão saudável, digamos assim. Saudável, porque fica toda a gente encantada, porque entra dinheiro, entram pessoas, a cidade é mais vivida, é reconhecida lá fora, é recomendada. E isso traduz-se em comércio e negócio. Depois há o lado mais dramático, que são os habitantes que acabam por ser expulsos, como tem acontecido em Lisboa. Eu aqui não sei o que se passa, mas quando ouvimos falar de Veneza, falamos de uma cidade transformada num centro comercial ao ar livre, onde os habitantes foram quase todos atirados para fora. O grande problema é que isto acontece muitas vezes de forma espontânea e muito rápida.

Como é que se resolve?

Isto obriga a uma reflexão em que é preciso perceber que, à partida, todas essas pessoas são amigas da cidade, não são inimigas. Visitam porque gostam de conhecer outros locais, o problema é que, no seu interesse ou curiosidade pela cidade, trazem consigo situações que se revelam problemáticas. Porque a cidade também, a certa altura, se alimenta disso. Passa a ter uma demanda, prepara-se para dar mais resposta, quer demonstrar que ainda pode receber mais, e tem que haver um equilíbrio, para o qual eu não tenho uma solução. Mas há uma questão que me parece essencial, que é essa questão do espaço público. É fundamental que seja o mais cuidado possível e o mais agradável, para poder receber todos esses contingentes de pessoas. E há também a questão dos transportes, que são fundamentais. É preciso movimentar todas as pessoas que visitam as cidades e desconcentrá-las, retirando-as dos locais históricos, como em Macau ou em Lisboa, e comunicando novos pontos de atracção em zonas mais periféricas. A mobilidade é fundamental, permitindo escoar as pessoas e garantir que os objectivos dos visitantes sejam atingidos. Acho que manter os habitantes é fundamental. São os habitantes que dão corpo e alma às cidades. E quem visita as cidades também quer ver a população local, dialogar e interagir com as pessoas, não encontrar só turistas. As pessoas fazem parte da vida das cidades, não são indissociáveis. É preciso encontrar esse equilíbrio, pensar como é que se podem manter as pessoas, porque já sabemos que as pressões são grandes e o aumento do custo das coisas é um fenómeno comum.

Pegando no tema dos seminários que veio apresentar a Macau, que identidade construiu, enquanto arquitecto, com a sua passagem pelo território e por outras geografias ao longo da sua carreira? Como se pensam as especificidades da cultura dos lugares onde se projecta uma obra?

Eu tive uma formação em Portugal e, obviamente, fui formado com um determinado modo de pensar, reflectir e olhar para a arquitectura. Aquilo que penso ser fundamental é que, mesmo quem tem uma postura mais radical perante o mundo, possa actuar consoante a identidade de cada país ou de cada lugar. Porque há muitas obras de arquitectura que percebemos que podiam estar em qualquer lugar. Em que pensamos que ali fazia falta uma sombra, em que aqui era preciso uma brisa. E onde é que isso está? Porque é que isso não foi pensado? Depois há outras coisas culturais fortíssimas, que têm a ver com as pessoas, como o caso do “feng shui” para os chineses, ou o facto de os árabes se fecharem mais. São especificidades de cada cultura às quais a arquitectura sempre procurou dar resposta. Mesmo no caso de arquitectos modernos, que advogavam uma arquitectura quase universal, ainda assim a adaptavam a situações de carácter espiritual, geográfico, climatérico, e por aí fora. A arquitectura vive disso, por isso é que os edifícios são um pouco como as árvores, eles ligam-se ao terreno consoante o terreno que têm. Esse lado que a arquitectura tem que ter, e quem a desenha, de saber criar as raízes para o edifício existir num lugar, é fundamental. Porque é isso que faz os lugares. E é também isso o que eu mais aprecio na arquitectura.

Como está a preservação do património local e da arquitectura colonial portuguesa? A adaptação de antigas estruturas, fazendo acrescentos modernos para acomodar mais pessoas e funções, parece-lhe uma boa solução?

É difícil ter uma solução para tudo, como disse, são questões que decorrem de cada edifício. Há edifícios que são belíssimos e que nós queremos recuperar a todo o custo, mas que é difícil por estarem num estado de declínio muito grande. Há outros que estão em bom estado mas pouco nos interessam. Em Lisboa, que é uma cidade muito antiga, e onde esse balanço acontece diariamente, sobre o que fazer ou não fazer, cada projecto é encarado caso a caso. Há coisas que são unânimes, todos sabemos que não se deve deitar abaixo a Torre de Belém. Mas há outros casos em que é de ponderar o que se deve fazer, e isso é saudável. Até porque, há 50 anos, estas coisas não se ponderavam, demolia-se simplesmente. E já não falo de, há milhares de anos, quando se desmontavam as ruínas da Roma antiga para fazer outros edifícios. Hoje temos obviamente uma consciência diferente. Olhamos para o passado de outra maneira, como forma de reflectir o presente e de enquadrar o futuro. Felizmente que temos cidades com passado, é sinal que aquilo que outros fizeram tem validade para nós. E faz-nos pensar como as podemos valorizar e lhes dar uma segunda vida. A solução está muitas vezes aí, no cruzamento entre a vida que as cidades têm e a vida que se lhes pode dar, o balanço entre o que se consegue ou não fazer. Mas essa reflexão é saudável, é sinal que há peças que têm qualidade.

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