Sten Verhoeven, especialista em direito da União Europeia | Raiva contra o sistema

As eleições deste fim-de-semana podem marcar uma viragem ideológica no Parlamento Europeu e a derrota do centro esquerda, a favor dos representantes de partidos populistas. A ideia é defendida pelo académico da Universidade de Macau Sten Verhoeven. A mudança não vai acabar com o projecto europeu, mas pode atrasar os processos legislativos da UE

 

O que podemos esperar destas eleições europeias?

[dropcap]E[/dropcap]ssa é a verdadeira questão. Pela primeira vez, parece que os partidos de centro esquerda não vão conseguir manter a maioria. Isto não significa que vão ficar isolados ou que não vão continuar a ter poder. Mas significa muito em termos legislativos. Estes grupos partidários eram a força motriz no que respeita à adopção de legislação. Sem a maioria no parlamento vai ficar muito mais difícil encontrar parceiros de modo a conseguir a maioria necessária para adoptar legislação. Esta vai ser uma situação nova e única. Nunca tivemos isto antes. Claro que as eleições ainda não ocorreram, ainda há muita coisa a decidir, e a tendência ainda pode oscilar entre as duas partes, mas parece que esta ala não vai ter a maioria. Em vez disso, vai haver o crescimento da presença de mais partidos euro-cépticos e até mesmo hostis à própria Europa que vão tentar formar um grupo grande dentro do Parlamento Europeu. Claro que esse grupo pode, não digo bloquear, mas dificultar a produção legislativa e a definição de comissários. Basicamente, podem travar a máquina. Não vão atirar a Europa para um buraco, isso é impossível, mas vão definitivamente abrandar muito a máquina europeia. Vai ser com certeza, uma questão altamente problemática para a União Europeia (UE) que está agora à procura de um segundo fôlego depois do ressurgimento dos partidos populistas por todo o lado e quando se espera que responda a isso.

Que União Europeia podemos esperar?

Alguns destes partidos são pró Europa, mas talvez uma Europa diferente daquela que temos neste momento. Uma Europa que tenha em conta as considerações do povo, o que quer que isso queira dizer. Há esta ideia de criar um grupo parlamentar focado nos partidos populares. É uma perspectiva mais populista e menos subsidiária em que se admite a necessidade da UE, mas também se defende o respeito pelas divergências, pelas diferenças culturais e pelas peculiaridades dos diferentes estados membros em que assuntos como a emigração assumem um grande papel.

Alguns destes partidos não são apoiantes da emigração. Aliás, há países que consideram que todos os problemas da Europa se devem à emigração, especialmente a Hungria e Polónia. Mas em outro domínios, por exemplo, no comércio, é natural que venham a ter uma outra postura, até mais pro-Europa. Mais uma vez, não há certezas.

A que se deve a subida dos partidos populistas?

Para mim, é mais um sinal para as elites de que certas coisas não são mais aceitáveis. O que não é uma surpresa. As despesas sociais foram muito cortadas em vários estados membros em altura de crise. Houve austeridade motivada por outros países membros muito poderosos, além da própria Alemanha. Claro que economicamente se pode debater se isso era necessário ou não. Mas por outro lado, estas políticas enfraqueceram a sociedade. Será uma surpresa ver que anos depois da economia ser retomada estes países vítimas da austeridade parecem não ver qualquer benefício disso? Ficam chateados. Encontramos maior apoio aos partidos populistas nas áreas rurais porque foram deixadas de lado. As pessoas estão zangadas e reagem através do voto. É um voto contra o sistema, seja qual for o sistema. Para mim isto é um alerta. Algumas destas preocupações são reais. Sim, o desenvolvimento da União Europeia nos últimos 20 anos tem sido óptimo. A livre circulação é uma excelente iniciativa e há muitos vencedores, mas também há perdedores. A Europa é um projecto que também tem que conseguir dar voz às pessoas que ficaram de fora. E os partidos populistas, na sua maioria de direita, capitalizam-se nisto. Têm um discurso em que dizem: vocês perderem as vossas oportunidades porque os emigrantes entraram. Eles não são anti-sistema por natureza, eles querem, claro, ser parte do sistema. Alimentam essa zanga e usam-na para conseguir entrar no Parlamento Europeu. Mas o facto é que se tratam de partidos que também não fazem grande coisa de facto. Olhemos o que aconteceu na Áustria. Teve um partido de direita, populista, que no fim acabou por sair devido à corrupção. Este partido preocupava-se realmente com o bem-estar da população? Sou muito céptico em relação a isso. Estes partidos são muito bons na sua narrativa e alimentam a zanga actual.

E onde fica o centro-esquerda?

A ala mais à esquerda não tem sido capaz, perante uma série de assuntos sociais, de se salientar e de se focar para trazer estas pessoas para um movimento mais ao centro esquerda. Isso é talvez a parte mais chocante deste processo todo: Que os sociais democratas que historicamente deram voz digamos, aos não privilegiados, tivessem falhado completamente em chamar a eles esta maioria de pessoas.

Normalmente, as eleições europeias não tem muita adesão. Acha que pelos motivos que apresentou, este ano pode ser diferente?

Penso que podem mobilizar as pessoas. Pelo menos já se fala das eleições europeias este ano. Estão nas capas de jornais. Não me lembro de ter sido assim anteriormente. Por outro lado, não espero uma grande diferença na adesão às urnas. Pode existir um aumento pequeno, na ordem dos cinco a seis por cento, mas não uma grande diferença. Se pensarmos num aumento significativo, acho que isso não vai acontecer. É uma pena porque o Parlamento Europeu é de facto o organismo legislador mais importante na Europa.

Porquê este desinteresse das pessoas?

Acho que tem que ver com a distância. As pessoas votam mais numas eleições municipais porque estão a falar de pessoa vizinhas. Eleições regionais já são menos os votantes. Mesmo a um nível nacional, muitas vezes as pessoas já não se mostram tão interessadas. A um nível europeu trata-se de votar em pessoas que vão estar em Bruxelas, que é muito longe. Por outro lado, o Parlamento Europeu lida com aspectos mais técnicos da legislação. Estas eleições ficam também muitas vezes na sombra de outros processos eleitorais nacionais ou regionais. O mesmo acontece no que respeita aos partidos: as pessoas não sabem o que os partidos fazem a um nível europeu, não têm ideia. Se perguntarmos às pessoas qual é o seu representante no Parlamento Europeu, as pessoas provavelmente não sabem, o que é um problema. Por outro lado, os partidos a nível europeu, têm dentro de si, muitas divisões. Por exemplo um partido conservador de Espanha é diferente de um conservador da Holanda. Os socialistas franceses e os alemães podem não concordar em muitas coisas.

O Reino Unido ainda participa nestas eleições, enquanto o Brexit é negociado. O que pensa desta situação?

É uma novela. Ninguém sabe o que está a acontecer. Nestas eleições são os conservadores a votar no partido do Nigel Farage. Vamos ver uma polarização. Vamos ver as pessoas que realmente querem o Brexit, a votar no Farage e o resto vai ser distribuído por outros partidos. Mas por outro lado, isto mostra como as pessoas se relacionam com o Brexit depois de dois anos de negociações. Quantas pessoas querem mesmo o Brexit? Imagine que o partido do Farage tem 40 por cento dos votos, isso faz com que seja o partido mais votado, mas também significa que 60 por cento da sociedade não está interessada no Brexit. Penso que estes são também os últimos dias de Theresa May, ela lutou pela aprovação do mesmo acordo várias vezes e isto não vai durar para sempre. Quem a vai substituir? Boris Johnson é pró Brexit, mas enquanto figura política é forte o suficiente para desistir da saída se não encontrar um acordo. Como é que se resolve tudo isto? Para mim, cabe à UE tomar uma decisão, porque de outra forma pode ser uma decisão adiada indefinidamente. Não se pode deixar um país eternamente no limbo.

Há a possibilidade de um segundo referendo?

Um segundo referendo é o mesmo que dizer que há dois anos pediram a opinião das pessoas, mas agora mudaram de opinião e vão perguntar de novo. Politicamente falando, demora algum tempo para apresentar este tema de novo a referendo. Também não significa que o resultado de um segundo referendo venha a ser diferente. Mas, de novo, o referendo foi muito recente. Uma nova consulta é uma estratégia muito arriscada.

E a China? Pode vir a sofrer consequências com estas mudanças na Europa?

Os países mais à direita não são necessariamente contra a liberdade comercial. Talvez sejam partidos que defendem maior isolamento nacional, que querem limitar o comércio, mas também precisam dele. O Reino Unido é um bom exemplo. É muito euro-céptico, mas tem sido sempre muito favorável ao comércio global. Temos de ver como a situação vai evoluir e o que estes partidos vão realmente defender. O problema da China com a Europa pode ser o mesmo que se levanta com os Estados Unidos. Há de facto algumas práticas na China, nomeadamente no que se refere a propriedade intelectual, que também são preocupações da Europa. Tanto os governos da UE como dos EUA têm posições semelhantes acerca da transferência obrigatória de propriedade intelectual dos investimentos na China. Mas as ferramentas usadas para negociar com a China são diferentes e claro que a implementação de tarifas não será a forma certa de combater estas situações. Por outro lado, se os EUA avançarem com o aumento das tarifas às exportações europeias, e que parece que vão fazer, pode-se pensar que o inimigo do meu inimigo é meu amigo, e aí as negociações entre a China e a Europa, que já decorrem há algum tempo, podem ser mais rápidas. Mas também existem outros mercados a considerar: Singapura, Japão ou a Coreia do Sul são economias muito importantes com quem também temos acordos.

A China pode mesmo acabar por ser beneficiada?

A Europa e a China têm um bom ambiente de comércio. Isso significa que a China vai ser um parceiro da UE? Não, isso não vai acontecer. As relações económicas vão continuar, mas pensar que a China pode substituir os EUA enquanto parceiro da UE, não conto com isso. Claro que há uma diferença de estratégias entre as negociações que acontecem entre a China e a Europa. A Europa tem agora uma abordagem da China mais pragmática. O facto de a Europa não levantar a voz acerca de determinados assuntos publicamente não quer dizer que não os aborde, mas de uma forma mais privada.

Quais os maiores desafios para a Europa nos próximos anos?

Vão ser a forma de trazer de volta as pessoas que vão votar nos partidos populistas ou que são mais cépticos sobre o projecto europeu. Penso que há necessidade de os políticos se aproximarem das pessoas e das suas necessidades. Não é o mesmo que ouvir as pessoas e nada mudar. Por exemplo, em relação é emigração, um dos temas centrais, precisamos da emigração, temos é de saber o que fazer com ela. Pode ser assustador muitas pessoas verem de repente entrar nos seus bairros uma quantidade muito grande de emigrantes que não falam a língua etc. Nestes casos há que investir mais na integração. Não se pode ser como o Japão que é muito vedado ao exterior. Mas é preciso saber as necessidades que se têm e perante elas, acolher os emigrantes. Não é dar subsídios apenas, mas dar ferramentas para fazer com que os emigrantes também se sintam úteis. Ninguém gosta de ser inútil.

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