Miúdos especiais

[dropcap]O[/dropcap] meu filho Guilherme é autista. Autistas e autismos há muitos. É provavelmente a primeira coisa que me ocorre e digo quando falo com alguém acerca de autismo.

Embora a compreensão social da condição seja francamente melhor do que há 20 anos, ainda estamos algo reféns do modelo Rain man caricatural do autismo. Mesmo os profissionais de saúde têm pontos de vista muito pouco esclarecidos sobre o que é o autismo e como este se manifesta, partilhando não raras vezes a opinião infundada de que a carência de certas capacidades deve corresponder, numa proporção inversa, uma espécie de maximização das restantes competências ou mesmo a existência de competências tão metafísicas como indetectáveis. Na realidade, o autismo é muito menos romântico do que aquilo que aparenta ser no imaginário social. Quase tudo se faz de modo diferente no autismo. No caso do Guilherme, diria que tudo, desde ter a preocupação de deixar um copo limpo perto da torneira da cozinha para que ele não beba de um copo sujo como tirar um dente.

E é pelo dente que chegamos ao assunto desta crónica. O Guilherme tem um dente do siso ocluso com tendência para inflamar e infectar. Tem de ser extraído. O que implica uma anestesia geral (não há como persuadir um autista não verbal de que a dor pela qual está a passar é na verdade inevitável e o melhor para ele; aliás, esqueçam: não há como convencê-lo a estar de boca aberta uma hora ou mais enquanto desconhecidos de bata lhe escarafuncham os dentes). Tivemos portanto uma consulta de anestesiologia pré-operatória na semana passada – com duas horas de atraso sobre a hora marcada, o que não deixa de confirmar aquilo que penso sobre o SNS: bom para urgências de vida ou morte e doenças muito graves, mau para quase tudo o resto – na qual a médica, para além de passar aborrecidamente os olhos pelas análises ao sangue do Guilherme – “excelente nível de plaquetas, por aqui não vamos ter problemas” – não se coibiu de tecer alguns comentários acerca do quanto desconhecemos do autismo, não se refreando no entanto de ter imensas certezas acerca do quão especiais os autistas são.

A modorra de parte a parte foi apenas interrompida pelo esgar de surpresa da médica ao olhar para a radiografia torácica do Guilherme: “você sabia que o seu filho tem dextrocardia?” Uma pessoa nunca sabe muito bem responder a uma pergunta de que desconhece os termos enunciados. Que não, respondi, que nem sequer sabia a que corresponde o termo dextrocardia. A senhora lá me explicou numa vagareza de quem se dirige a pessoas com algum atraso que o coração do Guilherme estava ao contrário, e eu tão surpreso como admirado perguntei-lhe se tal era comum, se causava alguma complicação, ou se pelo contrário era apenas uma anomalia anatómica sem grande relevância. Que era assaz raro, garantiu-me, que na carreira dela de trinta anos só tinha visto dois casos, sendo o meu filho o segundo, e que em princípio nada de preocupante adviria da situação, mas que tínhamos de fazer exames suplementares, sublinhava, até para termos a certeza de que não se tratava de um erro do técnico de radiologia.

Eu fui para casa a pensar na dextrocardia, e consultando o Google percebi tratar-se de uma condição não tão inócua quanto me tinha sido descrita pela médica. Falei com a mãe do Guilherme, que entre reuniões recebeu a notícia como se de uma notificação de multa de estacionamento se tratasse. Mais tarde, quando conseguimos quinze minutos para falar com calma, ela entre perguntas e planos de usar o seguro de saúde dele para apressar exames e consultas, desfaz-se numa risada: “ele estava de frente quando tiraram a radiografia quando devia estar de costas, devia ter tirado de costas mas como ficava com a cara esborrachada contra a parede não aguentou e tiveram de tirar de frente…” Eu acompanhei-a na risada, claro, não sem me perguntar como era possível não existir uma anotação no exame em que se referisse esse facto. O meu filho, esse, mesmo sem dextrocardia continua a ser muito especial.

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