h | Artes, Letras e IdeiasOs disponíveis Valério Romão - 10 Set 201814 Out 2018 [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão há emprego onde um tipo não se depare com esta casta particular de trabalhadores. À primeira vista, parecem estar lá para descomplicar situações: oferecem-se para colmatar a ausência de um colega adoentado, para executar uma tarefa para a qual não têm competências, para entrar mais cedo ou sair mais tarde. A devoção que manifestam ancora-se no medo que têm de ser prescindíveis ou numa auto-estima comatosa que necessita de palmadinhas nas costas para arrebitar. Às vezes, em ambas. Não sabem dizer que não. Acatam ordens como se estas se tratassem de dogmas. Estão lá para o que der e vier. Literalmente. Por todos os trabalhos que passei, os disponíveis sempre foram aqueles que mais prejudicaram as condições laborais deles e dos seus colegas. Metendo medo ou ego à frente de horários e regras, acabam por criar para o empregador uma zona cinzenta, contígua à definida pelo contrato, onde a exploração legalizada encontra forma de continuar a ordenha dos famélicos sem o prurido decorrente de ter que assumir a sua ilegitimidade e avareza: afinal, se o Silva se ofereceu, nenhum mal advirá ao mundo de pedirmos a outro para fazer o mesmo. “Sim, é verdade que o horário é até às 19H, mas há que fazer a caixa, limpar e arrumar e fechar a loja, pelo que é natural que saia às 20H. O Silva, ontem, ficou até às 21H para atender uma família de japoneses que entraram em cima da hora e não perder essas vendas.” “De facto, devíamos ter os turnos escalonados com mais antecipação, mas há muitos imprevistos e o Silva na semana passada até se ofereceu para fazer dois turnos de seguida porque um colega faltou.” “É claro que tem hora de almoço, mas era preferível comerem na recepção, onde podem continuar a atender clientes, do que num restaurante ou assim. O Silva come sempre cá e em quinze minutos apenas.” Quando um Silva abdica de respeitar uma regra, sofrem todos os outros apelidos. Uma relação entre patrão e trabalhador é semelhante a uma relação entre adulto e criança: basta falhar uma vez para tornar infrutífera uma insistência coerente de anos. O Silva, por via da sua disponibilidade infinita, mete em causa não somente aqueles que o rodeiam como toda uma história de conquistas laborais que o precedem. Para o Silva, há dias em que vai trabalhar no Séc. XXI na Europa, dias em que vai trabalhar na China, dias em que vai trabalhar nos finais do Séc. XIX. A sua peculiar disposição para disponibilidade indevida acaba por lhe conferir, aos olhos do empregador, uma dupla patine: para além da sua generosidade laboral, é ainda pouco apreciado pelos calões que o rodeiam. Os calões, diga-se, são aqueles que tentam cumprir as regras e os horários. “Por mim, o Silva pode trabalhar até às seis da manhã, se quiser, e aviar todos os japoneses de Tóquio numa noite. Nem eu sou o Silva nem o Silva é modelo para qualquer empresa”. “O Silva, se quiser, pode nem ir a casa. Eu tenho uma vida, uma família, outros afazeres e ocupações. Preciso de definição no que diz respeito a horários e turnos.” “Se a questão se coloca dessa forma, nem há conversa. O Silva podia vir trabalhar de soro na veia para não ter que perder tempo a comer. Eu tenho uma hora de almoço e nessa hora vou fazer o que quiser. O que inclui não querer estar no local onde passo as restantes sete.” Se de cada vez que um Silva se apressa a militar no esclavagismo houvesse um patrão que o proibisse ou um Ferreira que lhe mostrasse o lado obscuro da disponibilidade gratuita, talvez os restantes apelidos deste mundo não tivessem que emular este empreendedorismo de amochado para justificarem os seus postos de trabalho. Arranjem uma namorada ao Silva, um hobby, um gato bebé que tenha de ser alimentado de hora a hora. Arranjem-lhe uma vida.