LEVINAS – Primeiro movimento

[dropcap style=’circle’] L [dropcap] evinas nasceu na Lituânia e passou a infância e a adolescência na Rússia. Chega a França com 18 anos, onde faz a universidade, em Estrasburgo. Aí conhece e torna-se amigo de Maurice Blanchot, uma amizade que durará a vida toda, pautada por uma enorme cumplicidade e reconhecimento mútuo. Depois, e por causa de um livro que uma colega, a senhorita Pfiffer, lhe deu (Investigações Lógicas, de Husserl), rumou à Alemanha para ser aluno de Husserl. E aí conheceu Heidegger, que mudaria a sua vida pela primeira vez (a segunda será em 1947, no encontro com o Senhor Chouchani, profundo conhecedor do Talmude e de matemática). Dirá mais tarde que Heidegger, para ele, é fundamentalmente Ser e Tempo. Não por ter sido anterior à sua filiação ao partido nazi, mas porque este livro faz realmente parte de um dos cinco momentos mais belos da filosofia, como o Fedro (Platão), a Crítica da Razão Pura (Kant), a Fenomenologia do Espírito (Hegel) e Os Dados Imediatos da Consciência (Bergson).

Há três tradições literárias e de pensamento que são fundamentais para Levinas: antes de mais, onde tudo começou, a literatura russa, principalmente Dostoievski; posteriormente Husserl e Heidegger, principalmente este último; e por fim o Talmude, embora este tenha acompanhado toda a vida de Levinas, desde a mais tenra idade, como é costume na tradição judaica. A importância do Talmude como caminho de reflexão para o seu pensamento acontece apenas a partir de 1947, depois do famoso encontro que Levinas tem com o Senhor Chouchani. A partir daqui, a reflexão talmúdica passa a integrar a sua filosofia. Em Totalidade e Infinito, a sua grande obra filosófica – Derrida dirá que não é um tratado, mas uma obra de arte – a influência talmúdica assume uma força tremenda e cruza-se com a fenomenologia husserliana e a hermenêutica de Heidegger. Embora não se vá analisar aqui esta obra magna de Levinas, é a partir dela que se fará esta curta introdução ao seu pensamento. Há um livro de 1982, Ética e Infinito, que são dez entrevistas que Levinas concede a Phillipe Nemo e onde explica o seu pensamento ao longo do tempo. Aconselho vivamente este pequeno livro para quem queira começar a aventura em Emmanuel Levinas.

Do mesmo modo que Heidegger, em Ser e Tempo, faz partir a sua análise daquilo que é o mais anterior no Dasein, o mundo, pois antes de mais nós estamos lá, lançados no mundo, Levinas parte do Outro. O Outro é aquilo que é primeiro no humano. Antes de mais, eu sou o outro. E isto é evidente através da nossa concepção. Nós somos um prolongamento do outro, que são os nossos pais. Para um pai, o seu filho é um outro modo de ele ser. O filho é um ser independente, evidentemente, é um outro, mas também é ele mesmo. É ele mesmo sendo outro. Assim, logo no nosso nascimento nós somos frutos do outro e um outro modo de ser do outro. Não é o mundo que assume a primordialidade no nosso nascimento, mas o outro. Antes de mais, para usar uma linguagem heideggeriana, estamos lançados no e pelo outro. E é daqui, deste outro que somos antes de mais, que nasce em nós o desejo metafísico. Escreve em Totalidade e Infinito: “Nenhuma viagem, nenhuma mudança de clima e de ambiente podem satisfazer o desejo que para lá tende. O Outro metafisicamente desejado não é ‘outro’ como o pão que como, como o país em que habito, como a paisagem que contemplo, como, por vezes, eu para mim próprio, este ‘eu’, esse ‘outro’. (…) O desejo metafísico tende para uma coisa inteiramente diversa, para o absolutamente outro.” Aqui lembro-me sempre de um pequeníssimo livro, mas extraordinário, de Stig Dagermann, cujo título é A Nossa Necessidade de Consolo É Impossível de Satisfazer. Porque, na realidade, aquilo que nos faz continuamente tender para o Outro nunca chega, nunca se satisfaz. Nós temos mais Outro em nós do que qualquer outro subjectivo é capaz de preencher. Mas o Outro revela-se-nos através do Rosto. O Rosto é exterioridade e transcendência, isto é, Infinito. O Rosto, através do qual o Outro se nos revela, é o que nos ilumina a nossa condição, que é a de Desejo metafísico. Estamos, portanto, sem quaisquer dúvidas numa reposição ou retoma do projecto metafísico, que tinha sido interrompido por Heidegger.

Mas atentemos melhor no que é esse conceito levinasiano de Rosto. De modo geral, quando alguém se nos aparece, é o rosto que vimos. O rosto é também a parte do Outro que surge nua, completamente nua. Esse Rosto, por outro lado, não é o rosto da fotografia. O Rosto que as máquinas fotográfica ou de filmar captam e tornam o Rosto num objecto de Rosto. Aquele rosto que identificamos como sendo belo ou feio não é um rosto, mas um objecto de rosto. O Rosto a que Levinas se refere é aquele que nos interpela, que nos conduz mais a nós mesmos do que ao Outro. Esse Rosto, a que Levinas se refere, é o Outro que nos devolve a nós mesmos. No fundo, no Rosto do Outro ficamos face à nossa origem e ao nosso desejo metafísico. Origem, porque o Rosto evoca em nós uma pertença; desejo metafísico, porque o Rosto evoca também em nós um para além que nos habita. Há um além em nós mesmos, que nos habita, e que se torna visível no Rosto do Outro. O Rosto lembra-nos que há em nós um excedente de nós, que nos escapa, continuamente nos escapa.

Por outro lado, o Rosto traz até nós a responsabilidade. Já na nossa origem estamos presos à responsabilidade, pois o Outro, na dupla paternal, é responsável por nós, numa dupla conotação: responsável por nos terem posto no mundo (causa do nosso ser) e responsável por cuidar de nós (ainda que isso possa não acontecer). E esta responsabilidade, que faz parte da nossa origem, passa também para nós, nesse seu carácter duplo: responsáveis pelas nossas acções (ser-se responsável) e responsável por aquilo que causamos no Outro. Assim, o Rosto aparece também aqui, e uma vez mais, como arauto acerca de nós mesmos. E, no sentido em que o Rosto é Outro e este é onde estamos de antemão, o Rosto precede a linguagem. É precisamente na tentativa de responder ao Rosto que nos interpela, que se desenvolve em nós a linguagem. Antes mesmo de pensarmos em pensar, a linguagem é a ponte para o outro, nesse rosto que nos interpela. Esse além primeiro, que é o rosto da mãe, leva-nos à linguagem. Esse rosto, essa exterioridade primeira torna-se reflexo do infinito. O rosto da mãe é assim o início da metafísica.

Destaque: O Outro é aquilo que é primeiro no humano. Antes de mais, eu sou o outro. E isto é evidente através da nossa concepção. Nós somos um prolongamento do outro, que são os nossos pais. Para um pai, o seu filho é um outro modo de ele ser.

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