h | Artes, Letras e IdeiasCronólogo Amélia Vieira - 9 Jan 2018 [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stamos a iniciar um novo Ano com a sensação de transpormos uma porta deixando para trás os embates vividos, saldando dívidas, reciclando os cismas, atestando as fórmulas, esperançados que uma qualquer bonança nos acolha e providencie o fluxo no tempo circular. Chegamos a um momento em que os projectos se dissipam quando os muitos que foram se afiguraram impossíveis e desejamos a partir de um dado tempo organizar as horas e os dias, para terminarem bem que a vida é feita de regras bem mais do que de excepções. A enorme propagação de miríades de vontades embate muitas vezes no nosso cansaço com aquela impressão indelével da frase de Pessoa “nem invejas que dão movimentos de mais aos olhos” num aparelho deveras rudimentar como um corpo no cavalgar de asfalto que exercido de forma continuada nos prostrou exangues e feridos. Outros, porém, as vítimas do cansaço da paz adormecida não estarão mais livres, os arrastados por torpe calmaria sem futuros e com esquecimentos passados ou carregando-os na orla da imprecisão doentia de todas as seguranças. Como espectros ocupam os espaços, e sem razão aparente, vivem, porque sim. Este Fini Anual ciclo das Festividades é um aparatoso lastro de bloqueios na nossa já dorida insensatez, por mais vivência e desapego chegamos até aqui com a sensação de todos os reféns. Batemos os pés, dançamos por cima… no vento, com a impressão de fugir a estas duras penas, mas não blindados, que o mundo será sempre mais forte que a suspeição que temos de que exista. As mudanças climatéricas, as protuberâncias dos Estados, a difícil capacidade de gestão metidos que somos num recanto do Universo, são tão grandes que não há lugar por mais recôndito que nos pareça que fique incólume perante esferas tão radicais. A História, bem como a Pré-História Humana, tem-se arrastado, prosperado, mudado, pelos ciclos solares, e basta dele haver uma leve dissidência para que tudo se arraste e mude de um local para outro, de tempos para épocas, de eras para ciclos intermédios, um aluvião sem garante e sem fixidez nos foi legado como habitat, e se há épocas onde os equilíbrios se mantiveram serenos dando lugar a grandes Idades de Ouro eles são rompidos pela massa gravitacional que nos faz de novo peregrinos incansáveis dentro desta imensa organização. Os glaciares derretem, as águas sobem, os continentes desaparecem, as Atlântidas estão na nossa memória colectiva como filtros bem camuflados para não escusarmos jamais o transitório. Hoje é já um novo ano no século vinte e um, século que se torna cada vez mais radical, uma radicalidade de que não suspeitávamos nascidos que fôramos ainda nos tempos dos equilíbrios que entretanto se romperam, porque todos os equilíbrios existem visando a imponderabilidade da ruptura. Os Verões escaldam, os Invernos congelam, as chuvas breves e intensas passaram todas a tropicais, os ventos não deixam ninguém de pé, e, dir-se-ia que viver numa atmosfera assim requer dos corpos fortes adaptações uma vez que não somos matéria elástica nem o ritmo da montanha russa é o nosso maior exercício aplicado à sobrevivência. Tempo breve haverá que tenhamos de viver em cativeiro, em tubos com oxigénio – cápsulas – que serão as casas a nascer brevemente. Este tempo não só é para breve como já está acontecendo. Fazendo o ritmo das transumâncias, os “rebanhos” que agora somos, falta-lhes pastores, os nacionalismos querem aferroar a vida nas suas fronteiras e viverem a “longa metragem” dos herdeiros do nada, depois, vêm os patriotas mais amenos assim como as Primaveras, mas que se salvaguardam da onda inoportuna dos avanços dos que se movem em ritmo de fuga numa força extrema de sobrevivência. As comportas foram abertas numa antecipada e bem visível onda de choque que para toda uma Civilização adormecida não passa de charcos que querem roubar as suas seguranças, sem capacidade de acção estamos a ver os desastres, atónitos, sentados, erguemos muros, ostracizamos outros, numa ânsia de bote à deriva com duas pessoas a bordo, pois que os que se afundam podem por alarme fazer perigar os raros. Os governantes do mundo são ferramentas que operam agora num tecido imprevisto e que lhes desconhecem as dimensões, e não só arrastamos as leis severas da reconfiguração da massa, como estamos debaixo dos seus tratados impossíveis. E é neste momento que Voltaire volta a nascer «construir cada um o seu jardim» amuralharmo-nos, todos mais ou menos blindados num paraíso que cada um saberá, e onde se encontram os Arlequins que a tais quimeras presidem. Não tarda, quem andar lá por fora enlouquece, pois que encolhe e dilata num ano o que o elemento da elasticidade não permite, não raro nos vem à ideia que somos fustigados por caprichos, só esse “maravilhoso” Ano que jaz passado, vi não só seres irrespiráveis, como aqueles que já não podiam literalmente respirar. Aos poucos a Terra vai parecendo um amontoado de lixo a céu aberto com diversões escusas e ardentes artefactos numa enciclopédia ambulante de como atingir a demência em curtas manobras de Cruzeiro. Nesta altura festejavam os Romanos as suas Saturnais, grandes festividades! Saturno é o senhor absoluto do Tempo e nem sempre engole pedras pensando que são seus filhos, que esses, absorvem-se, mas as pedras são vomitadas, e neste caso, onde caírem erguem-se Templos. Depois, como já não se pode comer o filho dado que aos deuses são dadas outras apetências, pode-se em cima dela sacrificá-lo…mas que não , que não…era só uma experiência, mas mais adiante, sem apelo nem agravo, o Pai está mudo. Foi esta a linda história de Cronos que em Tempo se foi tornando, dando o seu monstro à medida da consciência de cada um. Lamartine obsequiou-nos com a bela expressão «Oh tempo, suspende o teu voo!» Suspensos estamos no Tempo. E ficar no Tempo é não ter de voltar a ele. E disse-o num monólogo eloquente o grande Vitorino Nemésio: “O Verão vai longo e dizer o quê a quem e como?” Efectivamente, já não temos gentes que nos interpelem assim. Cada um tem um plano que geralmente não resulta e todos juntos, fazemos finalmente o Caos. Nos Açores levantavam-se Ilhas por volta do solstício do Verão devido às placas tectónicas e muitos ficaram ruídos de espanto até Pessoa pegar naquilo tudo e fazer o belo poema das «Ilhas do Encoberto» Pois claro! “É em nós que é tudo”. Não é com Ilhas do Fim do Mundo nem com palmares de sonho ou não que a alma cura seu mal profundo e o bem nos entra no coração. Lembrei-me deles pois que são dignos de lembrança. Não tenho nenhuma razão maior para louvar, nem ninguém que me possa devolver o essencial que é tudo o que por ora convém saber.