Divagar

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] vagar é o meu maior sonho, o mais difícil.

Quanto a estes últimos, tal gosto deve-se também à variedade das formas, entretanto tão uniformizadas.

Alguns dos meus preferidos: o Citroën Boca-de-Sapo e a carrinha Citroën HY, que, em Lisboa, deu peixarias e bibliotecas, a carrinha Volkswagen Pão-de-Forma, o Morris Mini e o Fiat 600 originais, o BMW Isetta, com uma só porta, na dianteira, onde se situava o volante, o “espacial” AMC Pacer X, o Simca 1100 (que era o do meu pai, na minha infância) e tantos, tantos outros, mais antigos, que, em Portugal, podem ser vistos, por exemplo, no Museu do Automóvel Antigo, em Caxias, ou no Museu do Caramulo.

Esse vagar, que me é tão invulgar e tão necessário, é parte da razão porque gosto tanto de museus, de bibliotecas, de algumas livrarias. Aí, encontro-me com a lentidão e o silêncio (o silêncio!, o adorado silêncio).

Algumas livrarias (poderia citar muitas outras): a Strand, em Nova Iorque, mastodôntica e completíssima; a Anticyclone des Açores, em Bruxelas, dedicada às viagens; a Librairie Ancienne, do simpático Patrick Laurencier, na bonita cidade de Bordéus; e acima de todas, exclusivamente dedicada aos versos, a saudosa Poesia Incompleta, livraria que de Lisboa se transferiu para o Rio de Janeiro e aí morreu, às mãos de duas sociedades que, claramente, preferem telenovelas.

Ocorre-me agora um outro estabelecimento, de que fui visitante habitual na adolescência e que permanece activo, no qual esses predicados do sossego e do silêncio se aliam a uma grande beleza, por via das peças expostas. Refiro-me à loja filatélica A. Molder, fundada por um emigrante húngaro, em 1940, e situada num 3º andar da Baixa lisboeta. Mesmo para quem não colecciona selos, é bem merecedora de uma demorada visita.

Estas contam-se entre as poucas lojas que não me incomodam – não gosto de fazer compras, em geral, e detesto comprar roupas e sapatos, em particular, tanto mais que o meu tamanho faz com que os esforços de prova resultem, o mais das vezes, infrutíferos. Assim, ao longo dos anos, venho, sempre que possível, deixando tais encargos em mãos alheias, felizmente sem que com isso me ache contrariado com o que visto.

Outra excepção a essa aversão às compras é, porém, a comida, pelo muito que gosto de cozinhar e, sobretudo, de comer. Gosto de bons supermercados, desde que não estejam muito cheios de lojas gourmet, desde que não sejam pretensiosas e sobreavaliadas, e, sobretudo, de mercados, com destaque para aqueles em que o peixe fresco, em diversidade e qualidade, prevalece, a par de frutas, legumes, flores, etc.

Já referi aqui o excelso Mercado dos Lavradores, no Funchal. Soberbos são, claro está, o Mercat de La Boqueria, nas Ramblas, em Barcelona, e o Mercado de San Miguel, em Madrid, onde também se compra e come. Mas a minha preferência talvez vá para mercados mais pequenos, como o de Ayamonte ou o de Olhão, terras piscatórias em que se sabe do valor de tantos peixes desconhecidos ou desprezados nas grandes cidades, e que se vão mantendo mais ou menos incólumes à avidez predadora de hotéis e restaurantes.

Aí se compra uma série de peixes saborosos (folhas ou cartas, agulha, ruivo, aranha, polvos pequenos, etc) a preços entre 1 e 2€/quilo. Ou seja, é possível até a um pedinte fazer as refeições que mais me agradam.

De todos os peixes, os que mais me seduzem são, no entanto, os de rio: fataça, truta, sável, a dispendiosa e trabalhosa lampreia, enguias (ou irós ou eirós). Nas margens do Tejo, em várias localidades, é imperioso comê-los: em Vila Franca de Xira, na Lançada, em Tancos (bem perto do belo Castelo de Almourol, fortificação medieva implantada numa ilhota no meio do rio) ou em Vila Nova da Barquinha, por exemplo.

Mas não se pense que sou completamente imune aos encantos da carne (aliás diria que, felizmente, não sou completamente coisa alguma). Acontece, apenas, que as peças de carne mais correntes – bifes, febras, costeletas, etc – me são mais ou menos indiferentes. O mesmo não se poderá, porém, dizer de fígados, pernis, cabidelas, ossobucos (ou jarretes), mãos de vaca e outras coisas que tais.

A propósito:

Até há meia dúzia de anos, achava a mão de vaca repugnante, meramente por questões visuais, sem que – cretino! – a tivesse, sequer, provado.

Acontece que, estava eu em Cabo Verde, fui convidado para jantar em casa de D., o porteiro do prédio em que vivia. D., muito pobre, habitava num cubículo, tendo por únicos “equipamentos” um colchão, o tapete sobre o qual, sendo muçulmano, fazia as suas orações e um “campingaz”. Sobre este, cozinhara, com dedicação e habilidade, uma tachada de mão de vaca com grão, que, pelos vistos, é prato que também se come na África ocidental, de onde provinha (do Gana?, da Gâmbia?, não me recordo).

Pensei com os meus botões: “Tens de te sacrificar, não te podes negar a comer o que, talvez com sacrifício, te preparou”. E assim fiz. Só que a repulsa limitou-se à primeira garfada. Imediatamente me apercebi de que o prato era delicioso e amaldiçoei-me por nunca antes o ter provado.

Desde então, e até porque Lisboa é pródiga em tascas e restaurantes que o confeccionam eximiamente e existem, também, muito aceitáveis versões enlatadas, não se passa um mês em que não coma este prato.

Mas como gosto mesmo de comer é em formato de tapas, com grande variedade de sabores, em pequenas quantidades, sobre a mesa. Hoje, eu, que outrora comia como um leão, só desse modo consigo ultrapassar uma medida mais ou menos frugal. Para isto, a cidade mais propícia que conheço é Bilbau, onde terei chegado a provar 15 iguarias numa só refeição.

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