VozesEleitor João Luz - 18 Set 201717 Nov 2017 [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] somatório de todo o raciocínio, indiferença e sofrimento vertido na ponta de um carimbo. Com um simples gesto sepultam-se quatro anos de desfasamento na urna eleitoral. Já repararam na conotação fúnebre de tudo isto? O ciclo político encerra-se e reabre com um velório democrático. Um ritual mortuário mascarado de cidadania levando cortejos de eleitores enlutados e as suas lamúrias à cova das fracas opções. Um ciclo de vida afastado dos tronos da decisão onde se enterra a defunta liberdade. Tudo isto para chegarmos onde estamos, ou seja, exactamente onde estávamos antes. À terra regressamos. Hoje voltámos a ser o que éramos antes da campanha eleitoral, uma massa disforme, por definir, nas antípodas do poder, perfeitamente camuflados por uma perfusão de estudos e consultas públicas fantasmagóricas. Sinto-me aliviado por não ter de testemunhar mais a charada dos bilionários a tentarem meter-se na minha pele, a fingir que conhecem as minhas dores. Tenham decência e deixem-me em paz, regressem às vossas torres de marfim, às vossas mulheres esculpidas a bisturi, às vidas onde não existe o medo de ficar sem tecto, onde não cabe a matemática da mercearia. O vosso único medo sou eu, somos nós, é um povo desperto e raivoso a reagir ao vosso despudor. Este é o momento em que quase podemos tocar o Olimpo, roçar ombros com quem faz as leis da terra. Há um conceito que me desce da cabeça para onde se forma a bílis: Elite! A palavra tem origem no latim, eligere exlegere, uma cruel ironia para estes dias de retorno ao fosso incomensurável entre governadores e governados. Elegemos a elite, temos uma quota-parte de responsabilidade nisto tudo. De certa forma, este exercício de intoxicante livre arbítrio é o que nos traz a este dia, ao rescaldo do concurso de popularidades que terminou na urna. Alimentaram-me com aspirações colossais face ao liliputiano gesto de eleger, venderam-me a ideia de acto essencial como a respiração e saiu-me na rifa uma acção onde não há qualquer tipo de processo cognitivo, nem análise, intuição, nada. Resta-me o vazio de utilidade depois do direito/dever cumprido, uma flor que teimo plantar em alcatrão fresco a cada quatro anos, sempre com uma réstia de esperança de que floresça além das limitações biológicas. Mas pensemos no procedimento que me caracteriza, o voto. Como é que algo pode ser simultaneamente um direito e um dever? Este conceito tem na sua génese um enorme paradoxo que dificilmente poderá ter eficácia prática. É uma aberração lógica à qual não declino, talvez seja precisamente devido a esta inconsistência racional que não resisto, a todos os quatro anos, a carimbar um simulacro de escolha. Mas faço por eleger, presto-me ao sacrificial desígnio de sepultar o pequeno corpo democrático em caixão branco. Fica toda a realidade citadina reduzida ao gesto aniquilador do voto, ao último golpe de teatro antes do regresso à normalidade e regressamos à cidade estrangulada pelas tenazes dos múltiplos interesses e à invisibilidade das suas gentes. Agora instala-se a ressaca da inevitabilidade, mais quatro anos sem solicitações de cima. Volto a ser o cidadão, o residente, o mais elevado na hierarquia dos esquecidos, impertinente acorde na corda mais gorda do violoncelo, impetuoso na minha massificação, um fantasma andrajoso na cidade do super pib. Onde estão os milhões que as médias estatísticas me devem? Hoje desperta um novo dia, mais um daqueles sem história depois de todo o rebuliço deste pedaço de Verão escaldante. A treva fica para trás e o sol irrompe num horizonte de normalidade. Um sentimento de paz apodera-se das coisas, entranha-se nos passeios, como se entre os objectos se instalasse um narcótico armistício. Também entre as pessoas reina a reconciliação. Os eleitores voltam a ser quem eram, os trabalhadores residentes continuam a não ser ninguém e os políticos continuam a reinar acima de todos os outros. Como na relação entre astro e rotação celeste, Macau entra no “polistício”, a altura do ano em que a legislatura está no seu pináculo, iniciando, imediatamente, o seu declínio. A vida prossegue para mais um ciclo.