Cidadão em Fúria

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]úsculos contraem-se, maxilares prendem-se, punhos apertam-se e projecto mentalmente uma adaga enterrada no lugar onde não existe remorso ou consciência. Uma fúria surda nasce-me no peito, avoluma-se como uma maré que sobe sem ter para onde ir, que conjura catástrofes vingativas dirigidas àqueles que fundaram a minha indignação. Cresce a angústia vinda de um sentido disperso de injustiça e assombro perante o mal e a ignomínia. Sinto a cólera a fazer galopar o meu coração, como um cavalo sedento de retribuição. Hasteio o alerta de raiva em sinal 10. Quero cantar-vos uma leve e irada ária, mais velha que qualquer canção. Mas não sei por onde começar, para onde e como dirigir os meus desorientados agravos.

Tenho estado preso no binómio “fuga ou luta” há demasiado tempo, optando sempre pela retirada, pela cobarde e ordeira saída de um conflito perdido por definição. Sempre que me esquivo permito que me calquem mais e mais e mais. Sou a outra face solícita para além de todos os montanhosos sermões, a vítima devota que se oferece fiel ao enxovalho. Sem pensar, por instinto, deixo que me rebaixem e me roubem dignidade. Até que a docilidade é esbofeteada para fora da minha cara dando lugar a outro tipo de semblante, os meus olhos mudam, tornam-se fulminantes.

Transformo-me na raiva de todos, na frustração superlativa de uma cidade governada por perfídia e ganância desmesurada. Sou a resposta à traição, sou a aguardada retribuição poética. Sou têmpora palpitante, pupila dilatada, a indignação dos humilhados que anseiam respeito.

Quero enlamear-vos os sapatos de pele com a inglória labuta das ruas desesperadas do Porto Interior, mostrar-vos como se sobrevive na cidade submersa e distante dos vossos dourados tronos. Mas, acima de tudo, quero mostrar-vos que somos eternos, que já cá estávamos antes de vocês darem os primeiros passos na suja escalada do poder. Aí reside a verdadeira lama. Vocês terminam mandatos enquanto nós continuamos por cá, para sempre. Somos omnipresença no vosso mundo ditado por ciclos políticos.

Que a minha voz calada se torne num eco plural. Confesso que não fazemos qualquer ideia acerca da promiscuidade dos bastidores do poder, não conhecemos o medo da possível não renovação de mandato, não sabemos o que é uma camisa de seda, ou que porra é exactamente o caviar. Sabemos o que é a escassez e alma esmagada, essas são as nossas realidades. Vivemos em dois mundos totalmente diferentes, aceitamos isso, mas exigimos respeito. Merecemos, é o nosso mais prezado direito.

Eu amo a minha terra, amo o meu país, mas não me peçam para confundir complacência cega com patriotismo e amor. Ser indiferente à destruição e agir com negligência é a antítese da paixão, a negação total do romance. Tentar comprá-la é uma ofensa capital para a qual não existe severidade suficiente.

A desconsideração a que nos votam é uma ferida que nunca sara, um traumatismo perpétuo e o fermento para o tipo de raiva que se tinge de vermelho. Quero gritar para além da capacidade da minha garganta, berrar para que venham a terreiro e se mostrem feitos de carne e osso, como nós. Merecemos muito mais que palavras vazias como “harmonia” e “felicidade”, queremos uma liderança assumida, humana, presente, que não se esconda atrás de frios comunicados e discursos formatados pelos envidados esforços dos burocratas. Exigimos concretização. Queremos que as causas sejam levadas a sério porque quem sofre com os efeitos somos nós.

Tenho estado calado, discreto, a acumular décadas de desconsideração, a fermentar a minha ira. Mas temam-me, pois eu sou uma das fúrias de Némesis, a fonte do remorso de Orestes, não me virem as costas. Estou em todo o lado. Sou o homem que vos conduz, que prepara a vossa faustosa comida, a mulher que vos engoma a roupa, o técnico que repara as imperfeições do vosso quotidiano. Sou a base da pirâmide e tenho nas mãos as fundações do edifício, sou em simultâneo alicerce e fonte de ruína. Não brinquem com a raiva dos desapossados, pois ela é mais forte e presente que qualquer passageiro tufão.

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