A incontida gestão da raiva

“Donald Trump’s US election win is America’s Brexit – voted for by people angry with the status quo.”
Daily Mirror, 09 NOV 2016 – Jack Blanchard

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]e tivermos de expressar em uma frase a grande característica da psicopolítica da actual situação mundial, deve soar como a da entrada em uma era com uma visão do mundo, sem sinais de gestão da ira. A raiva é a chave para compreender e descrever a psicologia política do mundo, após o fim do comunismo e da era bipolar. A partir da ira de Aquiles, o mundo nunca soube gerir a energia da raiva na história. O termo grego “thymos” significa a vontade, o desejo, luxúria e ira. O “thymos” é o motor das acções do herói homérico. Mais tarde, torna-se a sede da aspiração de reconhecimento, e a falta de reconhecimento desperta a raiva e com as religiões monoteístas o património é impelido na outra vida, onde vai realizar a justiça divina.

O ressentimento terreno será satisfeito no final dos tempos. A situação muda completamente com a Revolução Francesa. A possibilidade de igualdade mudou-se para um mundo futuro, que é a base da “thymotica” dos oprimidos. O líder do partido e da militância revolucionária marcou a acumulação da ira até ao colapso da União Soviética. O mundo actual é um sistema pós-histórico em que desapareceram os pontos tradicionais de gestão da ira e das energias “thymoticas”. Foi a raiva mal gerida que permitiu a vitória de Donald Trump e o sucesso dos movimentos populistas e de extrema-direita e dos seus líderes.

Os novos tempos exigem paciência aos cidadãos globais e humildade aos economistas. Ambas as qualidades são necessárias porque a incerteza que reina desde Setembro de 2008 acentuou-se, embora não tenha atingido os níveis críticos desse tempo. O presidente americano surpreendeu ao concentrar a sua enorme energia sobre a questão dos imigrantes, e em menor medida, na agenda de protecção às indústrias do país e a última das muitas das suas ameaças, foi a da aplicação de uma taxa alfandegária de 20 por cento às importações, especialmente as provenientes do México, bem como a suspensão por sessenta dias das importações de limões tucumanos, que o ex-presidente Obama, depois de mais de quinze anos de proibição, tinha aprovado e, finalmente, a acusação à Alemanha de manter o euro subvalorizado.

O presidente americano, surpreendentemente, acusou a Alemanha, que durante a presidência de Trichet no Banco Central Europeu, apoiou as políticas monetárias que levaram o euro ao recorde de 1,60 dólares americanos e, por outro lado, não mostrou qualquer contentamento com as políticas do actual presidente Mario Draghi, de emissão monetária e taxas de juro de zero por cento e inclusive negativas. Tudo evidencia que o presidente americano ignora as questões básicas da economia, mas mais preocupante é que da mesma doença padecem os seus principais colaboradores, sendo as suas intervenções marcadas pela ausência de políticas detalhadas, por outro lado, fazem referências às insistentes promessas eleitorais, entre elas, as de baixar impostos aos mais ricos e ambiciosos planos de infra-estruturas.

É muito cedo para prever qual dos cenários acabará por prevalecer na malfada política do presidente americano cuja ignorância pelos assuntos de Estado raia o absurdo e das suas tresloucadas decisões. Os três cenários perceptíveis continham uma tendência ao proteccionismo, o aumento do deficit fiscal e a consequente queda dos títulos do Tesouro dos Estados Unidos. O primeiro cenário seria acompanhado por um rápido aumento nas taxas da Reserva Federal, valorização do dólar, maior crescimento, fuga de capitais dos países emergentes, um pouco mais de inflação e, por fim, uma queda nos preços das matérias-primas à excepção do ouro. Seria, mas não necessariamente, a perspectiva negativa e dramática para os países emergentes.

O segundo cenário é semelhante ao primeiro mas mais acentuado. O mundo viveu entre 1979 e 1981 um tempo delicado, quando a inflação nos Estados Unidos foi superior a 13 por cento, os rendimentos dos títulos chegaram a cair 16 por cento e a taxa da Reserva Federal foi de 20 por cento, tendo levado ao super dólar do presidente Donald Reagan, e que se traduziu numa década perdida para os países emergentes, sobretudo, na América do Sul com incumprimento financeiro de muitos países. Este cenário é de considerar como o menos provável.

O terceiro cenário é quase o oposto do primeiro e assemelha-se ao acontecido entre 2004 e a crise de 2008, com o dólar no seu mínimo histórico e as matérias-primas a preços recordes, apesar de uma subida sustentada das taxas da Reserva Federal até ao máximo de 5 por cento, com a consequente subida dos rendimentos dos títulos do Tesouro e uma inflação do índice de preços ao consumidor, que atingiu um máximo de 3,8 por cento em 2008. Este seria o melhor cenário para os países emergentes e parece ser o mais provável. Existem alguns sinais desde as eleições americanas.

Os mercados financeiros, em especial os bolsistas, são tanto ou mais optimistas que antes do triunfo do de Donald Trump, pois prevalece uma expectativa de crescimento da economia global, que se reflecte também na subida dos preços dos seus activos e das matérias-primas, e que não sofreu interferência até ao momento por uma moderada valorização do dólar, com excepção do peso mexicano que foi a moeda que mais se depreciou. Os indícios favoráveis ao primeiro cenário, prevaleceram nas semanas seguintes às eleições americanas, sobretudo pela subida dos rendimentos dos títulos do Tesouro, a valorização do dólar, um aumento do risco dos países emergentes e matérias-primas mais baratas, à excepção do cobre, devido ao suposto plano de infra-estruturas de Donald Trump e do petróleo pela OPEP.

As valorizações do dólar e os rendimentos dos títulos do Tesouro, em contraste, no último mês de Dezembro de 2016, retrocederam, tendo ganho as matérias-primas e as bolsas e diminuído o risco emergente, apresentando uma maior semelhança com o terceiro cenário, considerado como sendo sem margem para dúvidas, o melhor para os países emergentes. Isto deve-se também ao facto de se poder observar como mais factível uma economia americana com maior inflação, não esquecendo que o desemprego é de apenas 4.8 por cento, e os aumentos do deficit e da dívida pública.

O valor internacional do dólar dependerá em parte de um provável braço de ferro entre a Reserva Federal que quererá subir mais rapidamente as taxas e o presidente Trump que quer um dólar fraco. Pelo que se continuará a assistir a uma situação complexa, mas que não é de alto risco para os países emergentes. Assim se observa, por exemplo, a colocação bem sucedida de títulos da dívida pública, na solidez dos preços da soja e da tendência de recuperação do Brasil, incluindo a valorização do real.

O discurso do presidente Donald Trump no Congresso a 28 de Fevereiro de 2017, impressionou favoravelmente a quem o questionava pelo seu tom moderado e conciliador, mas desencantou os que esperavam detalhes sobre a anunciada reforma impositiva ou o grande plano de obras públicas que iria pôr em prática. Foi num tom muito contido e distinto do primeiro discurso no Congresso, pronunciado a 20 de Janeiro de 2017. Inclusivamente apelou à unidade política e assinalou a urgência de substituir com uma lei, o “Obamacare”, que tem grandes fissuras, e para os seus opositores foi gratificante ver a mudança de atitude, ainda que se mantenham preventivamente atentos, de que rapidamente aparecerá o Donald Trump de sempre.

Os seus seguidores aplaudiram-no como um estadista. O poder financeiro e económico do país que tinha grandes expectativas quanto à prometida orientação económica sentiram-se defraudados pela falta de anúncio de medidas reais. Foi um discurso civilizado, tranquilo, sem os usuais ataques brutais. Poderá mesmo existir a possibilidade de uma pequena mudança em algumas das matérias mais sensíveis, tendo sugerido que poderia existir um novo regime legal para os indocumentados, ao invés de os deportar a todos do país, sem vacilar.

Mas há que esperar para saber se é apenas uma simples artimanha ou uma verdadeira mudança. A nova atitude não é ainda o bastante para que seus opositores acreditem, em especial os milhões de pessoas que se sentem ameaçadas pelas políticas que se cansou de anunciar, durante a campanha eleitoral e nas primeiras semanas como inquilino da Casa Branca. Se analisarmos bem, o conteúdo do discurso foi o mesmo de sempre, revestido de cuidadas expressões para não soar como mais uma intimidação. Todavia é certo que houve uma aberta condenação do anti-semitismo e um chamado à unidade política. Este inesperado ramo de oliveira alcançou também os aliados e organizações que antes tinham sido colocados no pelourinho.

Acerca da NATO assegurou que esse pacto militar, que foi forjado com a guerra mundial e através da Guerra Fria, derrotou o comunismo, aclarando que os parceiros deste selecto grupo deveriam cumprir com as suas obrigações financeiras, quase abrindo um conflito diplomático com a Alemanha, ao exigir os pagamentos que esta deve aos Estados Unidos, pelas obrigações no quadro da Organização. Todavia, declarou que os Estados Unidos estavam dispostos a liderar novamente a Organização. Mas existiu uma ideia digna de realçar, que é facto de não querer liderar o mundo livre, como afirmavam os anteriores presidentes, pois afirmou que o seu trabalho, era apenas o de representar os Estados Unidos, o que ajudou a acalmar os ânimos nas fileiras republicanas, alarmadas pelo caótico movimento da Casa Branca, durante os primeiros quarenta dias de mandato.

A impressão que deixou nesse discurso é que Donald Trump amadureceu, e que a sua intervenção no Congresso, foi mais presidencial e menos recheada de manhas de um político difícil de classificar, como se a intenção fosse atrair para a sua órbita os sectores mais moderados. O discurso foi mais sóbrio, até surpreender, mas não houve revelações relevantes nem sequer insinuou intenções sobre o que realmente pensa fazer no futuro.

Tal como disse um senador democrata, chegou-se a um ponto, onde o discurso presidencial é um êxito, porque quem o pronuncia nada disse de embaraçoso ou abertamente ofensivo. O presidente Trump, em matéria de política externa não mencionou a China ou a Rússia, ainda que tenha ratificado as metas proteccionistas prometidas na sua campanha eleitoral.

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