Luís Carmelo: “A escrita é um laboratório que me ajuda a traduzir o mundo”

Ao longo de mais de 35 anos, publicaste 45 livros, entre poesia, romance, contos, ensaios, teatro, argumento de cinema, e manuais académicos. Para não falar do teu monumental projecto das cidades, que vens desenhando há outros tantos anos, desde os tempos de Amesterdão. Esta compulsão é uma necessidade académica, pois és professor, ou deriva de uma outra necessidade?

Ser professor, para mim, sempre foi uma forma de ganhar a vida como qualquer outra, embora, com o tempo, me tenha afeiçoado à prática. Gosto realmente de dar aulas, quer presenciais (em tantos anos de universidade já devo ter leccionado, depois de me ter doutorado em 2005, umas duas dezenas de matérias diferentes entre a literatura, as artes, a semiótica e as teorias da cultura), quer online (criei há oito anos uma escola vocacionada para as escritas, a EC.ON – https://escritacriativaonline.net/ -, que é, hoje em dia, o meu ganha-pão essencial). Ser escritor é realmente algo de outra natureza, pois tem sido, desde os vinte e poucos anos de idade, um dos móbeis da minha realização profunda, poderia até dizer da minha possível redenção. De facto, estou sempre a escrever em três direcções. Por um lado, tenho sempre um romance a meio e um outro a iniciar-se (após a Trilogia do Sísifo, que concluí em Fevereiro de 2016, escrevi um novo romance que está agora em pousio, tendo já iniciado, em 2017, um outro). Por outro lado, tenho sempre (ou quase sempre) um ensaio em construção (este ano vai ser sobre a Tetralogia Lusitana do Almeida Faria, reatando um estudo que levei a cabo há três décadas). Por fim, desenvolvo ininterruptamente uma oficina poética (coisa muito mais recôndita e íntima). As cidades que desenho desde o início dos anos oitenta fazem parte de uma poética, essencialmente por se tratar de uma actividade (bastante reservada, sublinhe-se) que alia um lado lúdico a um outro inefável, sem tradução verbal ou figurada, e que, por isso mesmo, corresponde a uma pura ‘poiesis’ (uma linguagem que se inventou e que se gera a si mesma sem constrangimentos e sem uma auto-análise plausível). Resumindo: além do prazer (escrever, no momento em que estou a escrever, a criar e a descobrir, é, para mim, um prazer muito grande), a escrita, no meu caso, consiste num laboratório que me ajuda a traduzir o mundo e, portanto, a atravessar o enigma com uma venda a menos. Este exercício incessante, que é uma espécie salto à vara sobre a fogueira (ou sobre o abismo), não é apenas uma necessidade (como respirar o é), mas sobretudo um modo de tentar emendar ou consertar a finitude. O horizonte que a escrita literária me concede, seja como escritor, seja como leitor, é, ao mesmo tempo, centrípeto (em direcção ao mistério) e centrífugo (em direcção ao mundo que se vive). Um vaivém e também uma colisão em que busco todos os dias uma qualquer forma de superação, seja lá o que isso queira dizer.

Curiosamente, ou talvez não, os teus únicos livros de poesia foram também os primeiros, em 1981, Fio de Prumo (Terramar, Torres Vedras), 1982, Vão Interior do Rio (Atelier 18, Amesterdão) e em 1983, Ângulo Raso, Atelier 18, Amesterdão. Desinteressaste-te pela poesia ou ela desinteressou-se de ti? 

Nunca me desinteressei pela poesia, sempre vivi com ela e sempre a escrevi e li apaixonadamente ao longo dos anos. No entanto, tenho uma certeza: no campo daquilo que passámos a codificar por literatura, há alguns séculos a esta parte, a poesia é a linha da frente (do mesmo modo que, numa religião, a clausura e o misticismo são linhas da frente). Eu sou um agnóstico de fundo teísta, ou seja, um tipo que não crê em receitas, nem em dogmas, mas que não enjeita (pelo menos radicalmente) uma feição imaterial no universo. Daí que, para mim, seja particularmente evidente que a poesia não é nunca apenas a poesia. A dimensão críptico-mágica que emprestamos ao sopro verbal vem de longe e soube-se metaforizar em todas as culturas humanas (é por isso que muitas mitologias, e não só, veja-se o início do Génesis, o celebrem como sobrenatural; por exemplo, no Sofista, Platão, dando voz ao Estrangeiro no diálogo com Teeteto, diz que o discurso é “a corrente que sai da alma pela boca sob a forma de som”). Razão por que sempre celebrei a poesia com prudência e na intimidade. É verdade que, em jovem, publiquei alguma poesia (três livros), mas isso deveu-se a um tipo de urgência que não partilho hoje em dia. No entanto, tal como aconteceu já com as cidades (que expus em Lisboa, na Galeria Abysmo, em Abril de 2015), estou agora prestes a publicar alguns poemas meus. Neste ano de 2017 vou ter poesia publicada, o que não acontecia desde 1982. Estou numa fase da vida em que certas camuflagens estão a perder o sentido. E eu limito-me a respeitar esse ímpeto interior.

Quais as maiores diferenças que encontras no mercado, nos autores e nos leitores, desde que começaste a publicar, até hoje? 

Comecei a publicar na Vega nos anos oitenta. A Vega foi um ponto de encontro de onde saíram grandes escritores (Lobo Antunes e João de Melo, por exemplo) e existia num tempo em que a edição ainda publicava, de modo dominante, a pensar mais na descoberta literária do que no negócio. Nos anos noventa e no início da primeira década do século XXI, publiquei romances na Editorial Notícias e ensaios (e outras obras de feição escolar e/ou universitária) na Europa-América. Nesse período, viveu-se o início de uma certa concentração empresarial que coincidiu com o início do boom da livros da chamada – o termo é do Miguel Real – “literatura de mercado” (ou seja: o light que já existia fora de Portugal acompanhou, neste período, as lógicas de monopolização e do aparecimento dos grandes grupos, enquanto contribuiu para pressionar indirectamente, mas como uma tenaz – era preciso facturar acima de tudo! -, a tradição especificamente literária, razão por que muitos escritores se viram, de algum modo, apeados da ideia tradicional da ‘sua’ editora). Entre meados da primeira década do século XXI e o ano de 2011/2012, tornei-me em nómada (editando a espaços na Guerra e Paz, na Quidnovi, na Mareantes, na Hugin, na Quetzal, na Magna, etc, etc.), aliás em consonância com um período instável em que o mundo editorial se ia reestruturando, modelando-se de modo bipartido; de um lado os grupos económicos, do outro lado as pequenas e algumas pequenas-médias editoras que decidiram persistir, fazendo interagir os fundamentos do apego estético com a sobrevivência. A partir do princípio da segunda década do nosso século, tornei-me escritor da Abysmo em conformidade com esta lógica de relativa bipartição. Finalmente respirei fundo e passei a sentir que tenho um editor a sério e uma resposta adequada para os meus projectos. Finalmente respirei fundo e passei a ter ao meu lado um conjunto de outros escritores fraternos, cúmplices e extremamente estimulantes. Deixando a questão editorial e focando-me agora nos autores e nos leitores, concluiria que vivemos num mundo em que o escritor já não é um senador espiritual como o era Aquilino no seu tempo, por exemplo. Na nossa época, os heróis estão na imagem móvel, nas efígies digitais e no tempo real, não passando de figurações frágeis e efémeras (a própria inflação de festivais e de festas literárias ilustra este lado redundante da espectacularização). Por outro lado, como o objecto livro passou a ser anfitrião de muitos outros registos para além do literário (daí que o número de livros que se publica por ano seja descomunal), os escritores que fazem literatura e que trabalham plástica e inventivamente a língua portuguesa – uma extrema minoria – tornaram-se em matéria de nicho. Distantes dos palcos, dos holofotes e da procura de massa, os escritores regressam hoje à tranquilidade das pequenas arenas em que o encontro com os seus leitores se pode, por vezes, tornar mais autêntico, mais familiar e até mais próximo.

Divides a tua vida entre a universidade em Lisboa, onde és professor, e a tua escola de escrita em Lisboa, a EC.ON (Escrita Criativa Online), onde além de cursos que ministras, desenvolves um programa semanal, aos Sábados, de encontro entre escritores e leitores. Quais as grandes diferenças entre o que ensinas na universidade e o que ensinas na EC.ON? 

As matérias que lecciono na EC.ON são directamente ligadas à escrita. A designação “escrita criativa” é de origem anglo-saxónica (remonta aos fins do século XIX, nos EUA, tendo tido um incremento muito grande depois da década de 50 do século XX) e corresponde a uma actividade que é genericamente vista com alguma ‘desconfiança’ no sul da Europa. Trata-se de um preconceito, na medida em que, ao falarmos de escrita, falamos, inevitavelmente, de um processo que promove um saber associado ao domínio da plasticidade da linguagem. Passo a explicar porquê. Todos os processos de escrita implicam quarto ordens: a ordem interpelativa (meramente transitiva e instrumental), a ordem estética (aberta ao poder metafórico, combinatório e rítmico), a ordem semiótica (ligada à capacidade metatextual) e a ordem do jogo (no sentido da expressão enquanto desejo/inscrição). Num laboratório de escrita, tal como acontece nos universos da química, é possível isolar cada uma destas três ordens e testar-lhes os limites. Uma tal prática oficinal pode e deve ser cooperativa (ou colaborativa), visando três objectivos claros: desenvolver potencialidades, incentivar a inventividade e alimentar a expressão própria. Ao percorrer estas três vias objectivas, a escrita criativa promove realmente um saber associado ao domínio da plasticidade da linguagem, enquanto expressão (pragmática) que desafia o sentido. Deste modo, o papel essencial da escrita criativa passará por entender a linguagem como uma plasticina moldável e, portanto, capaz de optimizar as ferramentas e as técnicas que processam a expressão. Não se trata, pois, ‘de ensinar a criar’ e/ou ‘de ensinar’ a ser escritor! Postular estas possibilidades seria algo, no mínimo, infantil. Na EC.ON, que é um projecto livre e aberto, oferecem-se hoje quase noventa cursos online (desde a escrita literária à escrita comunicacional, desde as escrita para crianças à escrita para a rede, etc.), sendo a maioria dos docentes escritores. As sessões presenciais que desenvolvemos nos sábados à tarde desde Janeiro de 2014, conhecidas como “Cursos Ícone”, convidam escritores a reflectirem sobre as suas oficinas literárias, sobre os seus processos criativos e sobre o seu universo de referências literárias. Quanto à universidade, devo dizer que abandonei a vida académica plena e activa há uns anos. Não me refiro a dar aulas, pois continuo a dá-las, mas sim aos pressupostos que implicam investigação organizada, arguições, orientações, reuniões e outras actividades que considero cada vez mais burocráticas, desmobilizadoras e redutoras (Bolonha criou virtudes de transversabilidade e de proximidade, mas contribuiu para baixar imensamente as fasquias nos dois primeiros ciclos de estudos universitários). Não tenho saudades da universidade.

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