Notas rodoviárias

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] interesse pelos assuntos da Região, a discussão pública das matérias de interesse público e a justa indignação cívica pelo que de mais aberrante sobressai da actuação do Governo e do que se tem legislado, salvo momentos pontuais, não têm constituído ao longo dos anos marcas da participação dos cidadãos de Macau nas questões que lhes dizem respeito. Tornam-se por isso mais noticiadas as acções que fujam ao padrão e que se traduzam em manifestação pública de descontentamento. Foi o que aconteceu no passado dia 8 de Janeiro com um desfile convocado por um grupo de “cidadãos revoltados” que contou com o apoio de alguns deputados e a logística da Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau a propósito da entrada em vigor dos Despachos do Chefe do Executivo n.ºs 525 e 526/2016, ocorrida ao cair do pano sobre o ano transacto.

Reparar-se-á que as poucas manifestações de desagrado que se têm verificado têm resultado, a pretexto da protecção de interesses muito específicos, alguns de duvidoso interesse comunitário, da introdução de maiores factores de distorção, dentro de um espaço relativamente pequeno, dos sinais de equilíbrio, proporcionalidade, justiça e bom senso que durante anos aqui prevaleceram.

A contestação gerada pelos despachos do Chefe do Executivo acima referidos, que agravaram de forma leonina alguns dos valores da Tabela de Taxas e Preços da Direcção dos Assuntos de Tráfego e para a remoção e depósito de veículos nos silos e parques de estacionamento, foram desta vez o mote. Mas vejamos o porquê da situação.

Qualquer agravamento de taxas ou coimas é sempre encarado com desconfiança pelos cidadãos. Se as primeiras são tecnicamente a contrapartida pela prestação de um serviço, as segundas constituem um modo de penalizar atitudes e/ou comportamentos que não são suficientemente graves para serem considerados crimes e cujo desvalor não será visto, nem por quem governa e as decide, nem pelo sentimento maioritário da comunidade, como sendo susceptível de colocar em causa os seus valores essenciais. Por isso, também, muitas vezes, embora sejam vistas com desagrado pelos destinatários não geram grandes reacções públicas, nem levam as pessoas à rua com cartazes e palavras de ordem para vincarem o seu desagrado.

O problema acontece quando o agravamento dessas taxas e coimas é apenas a face mais visível da falta de bom senso de quem governa e o resultado de condutas autocráticas e incompetentes por parte dos poderes político e legislativo que têm repercussão directa e imediata no quotidiano dos cidadãos, que estando, à partida, predispostos a acatarem as decisões legitimamente emanadas das autoridades competentes, num dado momento sentem que aquelas violam o sentimento de justiça dominante e colocam em xeque o fiel da balança em que assentam os equilíbrios sociais.

Posto isto, é compreensível a indignação de quem saiu à rua para protestar contra os despachos do Chefe do Executivo. Se os aumentos em si já são perfeitamente absurdos, constituindo argumento para mentecaptos vir justificar aumentos de taxas e multas que vão dos 50 a mais de 1000% com a falta da sua actualização, sabendo-se que não há inflação que o justifique, a generalidade dos cidadãos não teve aumentos dessa ordem de grandeza, não houve qualquer melhoria na prestação dos serviços em causa e a qualidade de vida da comunidade é infinitamente pior, torna-se ainda mais aberrante pensar que esse tipo de medidas seria aceite pela população sem ondas quando a actuação das autoridades tem sido mais penalizadora para segmentos específicos, em regra os mais desfavorecidos e com menos meios para fazerem face aos constantes ataques que lhes são dirigidos pelo poder político e empresarial, os quais colocam em causa a sua capacidade de compreensão e sancionam em termos gravosos e irremediáveis a sua qualidade de vida.

Tudo estaria bem se os cidadãos ao longo dos anos tivessem contado com uma gestão séria, sensata e competente da coisa pública. Se fosse esse o caso, hoje estariam todos mais disponíveis para reconhecerem o esforço de quem governa e compreenderem o sentido de algumas decisões. Infelizmente, não foi o que aconteceu. E que teima em persistir.

Daí que se torne mais difícil aceitar decisões como as que actualmente são objecto de discórdia quando:

a) Em relação aos auto-silos públicos concessionados qualquer pessoa vê que estes estão entregues ao lixo e ao desleixo dos concessionários, que há anos fazem o que querem, sem manutenção, sem investimentos, com renovação insuficiente da atmosfera, com acessos imundos, muitas vezes servindo de depósito de lixo, receptáculo de urinas várias de animais de diversas espécies e de guarida de toxicodependentes, com serviços que continuam a só dar recibos a pedido, constituindo um acto de coragem circular por eles respirando cheiros vários e muitos fumos;

b) A caça à multa é insistente e permanente a qualquer hora do dia em relação aos veículos privados e motociclos, durante a semana, muitas vezes à noite e a intervalos regulares, aos sábados de manhã, domingos e feriados, junto de zonas residenciais e urbanizações privadas (exemplos: One Oasis, Taipa, Rua das Árvores do Pagode, Estrada de Seac Pai Van), não raro em locais onde praticamente não há circulação nesses dias e horas e onde os veículos não causam qualquer estorvo, à porta de escolas, de mercados e de supermercados onde não existem locais públicos de estacionamento;

c) Se vêem múltiplas vezes veículos da PSP que circulam e estacionam em transgressão, como na imagem que acompanha este texto (obtida no sábado, 08/01/2017, entre as 10 e as 11 horas no acesso a um túnel de grande circulação), não utilizando sinais de mudança de direcção, circulando aos ziguezagues pelo meio do trânsito, muitas vezes parando em transgressão para irem multar outros veículos ou estacionando na entrada de auto-silos (ZAPE);

d) Os autocarros das concessionárias de transportes públicos e casinos e os veículos pesados, camiões e betoneiras, não respeitam nada nem ninguém, param onde querem e como querem, entram de qualquer maneira nos cruzamentos, nas vias com mais de uma faixa atiram-se imediatamente para a faixa direita e aí permanecem, como quando circulam nas pontes, impedindo ultrapassagens que acabam por ser consumadas pela esquerda, sistematicamente ignoram os sinais de mudança de direcção, colocando em risco a circulação dos outros utentes da via, e em situações de congestionamento impedem a entrada de outros condutores que estão em vias laterais de acesso, mostrando toda a sua falta de civismo, compreensão e tolerância para com os outros;

e) Enormes nuvens negras continuam a sair impunemente dos escapes de veículos pesados e de táxis;

f) As intervenções pontuais de agentes reguladores causam mais transtorno do que fluidez ao trânsito (caso típico é o das rotundas, como junto ao Hotel Galaxy, no Zape ou na Taipa;

g) São retirados e eliminados locais de estacionamento e não se colocam parquímetros em sítios onde eles deviam existir;

h) Não existe qualquer planificação decente das obras que são levadas a cabo sendo quase permanentes os transtornos à circulação causados pelas múltiplas empresas concessionárias, IACM e/ou DSOPT;

i) O alcatrão continua a estar em péssimo estado na maior parte das ruas (recentemente algumas foram melhoradas) e pontes, são centenas e centenas de tampas de esgotos e de empresas concessionárias que estão desniveladas, as intervenções são realizadas “às três pancadas” são inúmeros os locais onde o piso abateu sem que haja uma intervenção correctiva;

j) Os táxis continuam sem rei nem roque, rudes, sujos e poluentes, são insuficientes e há horas do dia em que simplesmente não existem porque vão todos comer e render à mesma hora (entre as 18.30 e as 20:00);

m) É normal que táxis, carrinhas e carros de luxo dos “casineiros” parem em segunda fila e à porta de restaurantes de luxo, estorvando o trânsito sem que nada lhes aconteça;

l) Inexiste um sistema decente de transportes públicos, cujos autocarros circulam cheios às mais diversas horas do dia ou não existem quando são necessários, amontoando-se as pessoas nas paragens, na maioria trabalhadores que pretendem ir trabalhar ou regressar a casa no final de mais uma jornada;

m) O sistema de multas está totalmente informatizado, os tribunais continuam a aguardar a informatização, o papel acumula-se e os vendedores de papel e fotocopiadoras continuam a alegremente enriquecer prejudicando o ambiente.

O rol poderia continuar, pois que é imenso e múltiplas as razões de queixa dos cidadãos. Para já basta.

Por aqui se vê como aos poucos vai-se quebrando a harmonia social que fez de Macau um caso único de convivência entre as suas múltiplas comunidades.

Seria bom que os poderes executivo e legislativo e as autoridades policiais, de vez em quando, pensassem nestas coisas. E que quando o fizessem tivessem presente que é sempre melhor desligar o fogão e levantar a tampa para sair o vapor antes da panela de pressão explodir. Mas cuidado, porque se quiserem depois voltar a acender o lume para o polvo ou a dobrada acabarem de cozer estes já não vão amolecer. Nestas situações, a panela pode não explodir, mas depois há dentes que já não resistem ao esforço.

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