Saltar aos olhos

Horta Seca, Lisboa, 14 Dezembro

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]or causa da Inês Fonseca Santos e do seu micro-gigante programa da RTP3, Os Livros, regressei a uma das minhas paixões: Nuno Bragança. Este cometa não compôs obra, desenvolveu uma criatura. Cada leitura revela novo livro, como se as bem esculpidas personagens, entretanto tornadas tipos, ficassem por ali a viver as respectivas vidas, a evoluir em pano de fundo tuga. A nossa leitura apanhou-os naquele momento, mas podia ser outro. Pode bem ser outro. Aprendemos tanto sobre «viver em nós nervosos sustos» em modo sempre à beira da dor. Continuam a chamar-lhes romances, mas para mim são ensaios autobiográficos, alguém que na escrita sem fronteiras se busca, questionando a norma e o óbvio, alcatifa poeirenta que calcamos. A escrita foi fazendo e desfazendo o Nuno, não apenas pela língua libertina e desenvolta, fresca e inesgotável, lúbrica e divertida, poética e minuciosa. Soube rasgar-se personagem de romper para cima, putativo rei militando contra a ditadura, católico a pensar-se. Rindo sempre, alarvemente. Eis isso mesmo: a língua de Bragança é uma gargalhada. De ponta e mola. Depois há Lisboa, a Lisboa que o tempo e suas turistagens vai pisando com distracções de fugir. Que escritor nos diz hoje das lisboas por debaixo? Dói de bela e sujidade, descalça de tão despida. Carne viva. E depois há Deus, ao desafio, como convém. Ainda mais carne e verbo. Tenho para mim que a literatura portuguesa do século XX faz-se de casos únicos, mergulhando, pois claro, raízes em tradições e movimentos, mas caderneta de cromos sem grandes equipas. Nuno Bragança surge como o mais vivo dos argumentos nesta tese de trazer por casa.

Facebook, 14 Dezembro

O Cabrita dedica-me, e ao Luís Carmelo, A Arca, um conto inédito que publica na revista online, Caliban (Shakespeare, sim, mas não apenas, também o Grabato Dias da minha primeira adolescência).

Como oásis, a sua escrita desfaz-se lugar de sombra e refrigério com a palavra a galopar atrás das mil ideias, mil imagens, mil sabores, mil perfumes. Tudo começa no momento em que o céu se declarou lotado, causando, no seu embaciado espelho, um tapete de catástrofes, do suicídio papal ao tumulto generalizado, porque «se passaram a confundir o real e o imaginário, o medo e a superstição, as expectativas e o delírio». Na sequência, alguém sonha e convoca, para Tombuctu¸ «uma comunidade cosmopolita e despojada de espírito nacionalista que combatesse fraternalmente contra verdadeiros problemas, terrenos, de ordem prática e física, fundando, a partir desse empenho no trabalho comum e no sacrifício, a dignidade de uma vida arredada do consumismo e os alicerces de uma refundação humanista que pudesse servir de exemplo para os demais homens.» Este teu convite, António, a alguém que já subiu e desceu as dunas côncavas e convexas da utopia, comove-me e diverte-me, cala fundo no coração adolescente. Mas e os lacraus?

Galeria António Prates, Lisboa, 27 Dezembro

Acontece-me muito. A querer fugir da feira de gado do social, evito as inaugurações e depois a agenda desgovernada faz-me andar aos trambolhões até perder o que não queria. Envergonho-me de o escrever, foi assim com o Escada na Fundação Gulbenkian. Por um triz, acontecia com esta Monster’s Ball, do Pedro Zamith, cujo percurso admiro e acompanho há muito. Bebo-lhe a energia explosiva, a irrequietude, o olhar viperino. Desta vez o alvo é a imbecil gourmetização do mundo, estando aqui à mesa a cozinha e a moda. Vai um exemplo ainda quente? O Público presenteou-nos no dia de Natal com a nova revista Culto, cuja matéria principal desafiava chefs a imaginarem a sua última refeição se fossem condenados à morte. Dá para acreditar? Com o Pedro sai tudo esturricado, não podia ser de outro modo. O pincel pop, de cores estridentes e perspectivas delirantes, faz-se faca de cerâmica afiadíssima para esculpir cenas (domésticas) da nova burguesia tardo-cosmopolita, parvo-cosmopolita. Como descreveria Nuno Bragança tais figurinhas? Algumas peças são tridimensionais, mas nem precisavam para nos saltar aos olhos. Arte a fazer o que deve, a obrigar-nos a engolir em seco. Monster’s Ball pode ser, no inglês urbano, clube nocturno cheio de «gente feia» ou a última refeição dos condenados à morte. Dancemos.

Horta Seca, Lisboa, 29 Dezembro

A interessante Pato Lógico, do mesmo André Letria que já me iluminou, e a INCM juntaram-se para criar a Grandes Vidas Portuguesas, colecção que, com bom gosto escrito e ilustrado e paginado, procura apresentar velhos ilustres a jovens leitores. Alguns textos foram brutas desilusões, mas chega-me agora às mãos um belíssimo José Saramago – Homem-rio, da Inês Fonseca Santos e do João Maio Pinto, gente daqui do coração. Brutal dupla, esta! Quando a palavra desperta destas imagens, estamos feitos. A Inês vai namorando a metáfora, nascida em poema, com a delicadeza que lhe habita o peito para traçar o sensível retrato de um escritor que, afinal, respeitava as muitas infâncias. Convém dar atenção ao trabalho da Inês com os putos, longe que está de se esgotar na escrita. O João deu um passo em frente no seu estilo, em direcção à luxúria, mais rico em detalhe e com subtil gestão da cor e do preto e branco. Refrescante ou caloroso, consoante a estação em que nos sentemos/sintamos.

Mouriscas, 30 Dezembro

Devia estar a fazer balanços, que o ano, apesar de gordo em fracassos, também ofereceu alegrias. Não me apetece. Foi excessivo, como deveríamos viver sempre se aplicássemos os delirantes mandamentos de Bragança. Vou dormir a sesta, uma que valha pelos dias todos: bissexta.

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