O que fomos

POR AURELIO PORFIRI

[dropcap styyle=’circle’]N[/dropcap]este momento, aqui em Roma, onde vivo, não me é possível deixar de pensar no que aconteceu em Paris. Estamos todos em perigo e a nossa civilização também está. Tudo aquilo por que os nossos antepassados lutaram, está a ser atacado em muitas frentes. É evidente que o choque civilizacional é cada vez mais violento e, como o Papa Francisco afirmou ontem, estamos perante a Terceira Guerra Mundial, mas em tranches. Estou seriamente convencido que um dos principais problemas terá sido confundir a nossa identidade greco-romana e, judaico-cristã, com o poder de sermos detentores da verdade. Já não vivemos orientados pelos valores que antes partilhávamos, não podemos disfrutar dos nossos símbolos, com a plena consciência de que eles são e, permanecerão, símbolos. Perdemos a capacidade de sentir o poder renovador do perdão, porque, onde tudo é permitido, não é necessário pedir desculpa, faça-se o que se fizer. Deixámos de ser o que éramos.
Um dos muitos alicerces da nossa civilização é a arte, a música, que contribuíram para a nossa grandeza. Durante o período que vivi em Macau, tentei partilhar este tesouro, que herdei dos meus ilustres antepassados. Nunca me tentei impor aos meus alunos, fui movido apenas pelo desejo de partilhar e, pela amizade que sentia por eles. Com isto tentei enriquecer os seus horizontes culturais, sem, no entanto, afirmar “este património é vosso”. Tratava-se do “meu património” e dos meus antepassados. Pelo meu lado, sempre desejei que alguém me desse igual oportunidade de conhecimento da cultura chinesa e da sua sabedoria ancestral. Não que esse conhecimento me tornasse igual a eles, mas iria, certamente, enriquecer a minha visão do mundo. No entanto isto nunca se verificou, ou, apenas, muito raramente. Como já referi noutras ocasiões, lidamos constantemente com pessoas que só desejam o que não lhes pertence, e não desenvolvem nem aprofundam o que é verdadeiramente seu, a sua cultura. Costumo alertar as pessoas para os benefícios do desenvolvimento, mas, também, alertá-las sobre os perigos de nos sobrepormos à nossa herança cultural.
Certo dia, em conversa com um músico macaense, pelo qual nutro respeito, falámos sobre o baixo nível da vivência musical na cidade. O meu interlocutor queixava-se da falta de bons professores. É evidente que é aqui que reside o problema e toda a gente sabe disso. Quem está no poder, acredita que basta desperdiçar uns dinheiros em eventos culturais, que acabam por se revelar inúteis, para fazer subir a fasquia. Mas estão enganados, porque existe um conceito errado de base em Macau, e que nunca é combatido: que os “locais” são culturalmente auto-suficientes e capazes de organizar programas culturais capazes de elevar o nível de, por exemplo, coros e ensembles musicais. Quando compreenderem que não faz sentido investir nos “locais”, só porque são locais, e for implementada uma política pedagógica séria, capaz de atrair professores estrangeiros, que sabem o que estão a fazer, penso que Macau também poderá vir a ser um dia competitivo nesta área. Mas depois de sete anos em Macau e de contacto próximo com o meio musical local, duvido muito que isto algum dia venha a acontecer. Devemos estar preparados para ouvir vezes sem conta: você sabe, estamos em Macau….

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