h | Artes, Letras e IdeiasAlbert e David Maysles Boi Luxo - 29 Set 2015 [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]a verdade as únicas coisas que são necessárias são uma câmara e um bom microfone. Albert e David Mayles provam-no em vários dos seus documentários. Só conheço três. Um tema atraente é uma ajuda inestimável. Grey Gardens (realizado com Ellen Hovde e Muffie Meyer) não agradará a todos. Duas mulheres de idade, mãe e filha, aparentadas à família Kennedy, vivem numa casa delapidada em condições de higiene atrozes. Agradará contudo, a todos os que encontram nele matéria para se congratular com a sua própria situação. Ou agradará a quem sentir uma propensão – ou não consiga resistir – para uma lenta queda aguda. É muito atraente ver os resultados da queda social e mental de duas mulheres de boa família. O contraste cruel que a exibição das suas fotografias de juventude cria sublinha as nossas próprias crueldades finas. O cinema e a fotografia, mais do que a pintura, a arquitectura ou a música, são artes que exploram a fraqueza. À exibição deste contraste junta-se o discurso de mãe e filha, um discurso ensaiado ao longo de décadas, cheio daquilo que nós pensamos que é uma tristeza e uma solidão imensas, décadas de um insistente discurso recriminatório praticado num mundo fechado, cercado por uma vegetação cerrada, espinhosa e labiríntica. É uma grande incompreensão, onde residirá também a incompreensão por um afecto e por uma dependência que pode também ser a nossa. Esse o transporte que em Grey Gardens e em The Beales of Grey Gardens (feito posteriormente com material que sobrara do primeiro filme) se opera – a transferência para nós de um conjunto de situações que de início nos parecem inteiramente excêntricas. E, repita-se, pouco mais é preciso que dedicação, um pouco de amor, uma câmara e um bom microfone. Salesman (1969, com realização também de Charlotte Zwerin) apresenta uma imagem pouco usual da América. Faz pensar em Wise Blood, de John Huston, que retrata uma América provinciana cuja persistência hoje não é já uma surpresa mas a confirmação de que a história não tem necessariamente de caminhar para um futuro de tolerância e modernismo, Pouco interessam algumas críticas que se apontam aos irmãos Maysles por não serem por vezes tão verdadeiros quanto a ideia de cinema verdade – ou cinema directo – com a qual aparecem frequentemente associados, impõe. Os filmes que ficaram são testemunhos bem directos de aspectos menos conhecidos da América. Salesman segue um grupo de vendedores de bíblias de luxo em Nova Inglaterra e na Florida. Para além de ser sobre religião é mais particularmente sobre um pobre diabo, o Senhor Brennan, que tem de vender o Livro para sobreviver. Tão atraente como a tristeza que o envolve é penetrar nas casas de classe média baixa das famílias a quem tenta vender o seu produto. Este é um filme que explora, com compaixão, uma estética do falhanço. Um grupo de homens solitários e cinzentos cuja identificação – ou sequer afecto – para com o produto que vendem nunca vem ao de cima. O semblante carregado, a pressão de vender, o cabelo molhado, os cigarros constantes, uma linguagem corporal pesada e a persistência da referência às origens, irlandesas ou escocesas, são as parcelas visíveis desta imagem. O espectador, cruel como um estudante liceal, delicia-se na queda lenta do pobre Brennan (diferente da queda de Grey Gardens, a que não assistimos mas que é uma queda consumada, acabada, compreendida, vivida com compulsão, e em que as duas figuras principais, mãe e filha, se acabam por constituir como verdadeiras personagens cujo comportamento excêntrico as torna quase ficcionais), no espectáculo dos motéis, das camisas de manga curta com gravata e canetas no bolso e das conversas pouco interessantes. Assim como Grey Gardens, Salesman é sobre entrar na casa dos outros, e como ele um produto sedutor mas de um sabor amargo que questiona a justeza da nossa propensão para a coscuvilhice. Nos dois se demonstra uma domesticidade que vem acompanhada de odores e ruídos próprios e reforça a ideia de que o tom documental não é necessariamente diverso do ficcional. A nível da intenção, a ficcional e a documental, não existem diferenças que vão para lá de uma fachada, e estes filmes ilustram com brilho a ideia que já aqui nesta página se expôs várias vezes sobre a indefinição da fronteira entre o documentário e a ficção e a ganga classificativa que tem acompanhado, inutilmente, a historização e a classificação do cinema. O cinema é a arte de que menos se devia falar. Tal como acontece com Grey Gardens, o aparente desprendimento da equipa de filmagem vai aos poucos demonstrando afecto pelas figuras filmadas e o modo como se fixa, intensamente, nos rostos dos retratados, revela um inocente desejo de compreender e de penetrar fundo no seu sistema de desejos e desilusões. Gimme Shelter, 1970, co-realizado com Charlotte Zwerin, é um pouco diferente. É sobre um concerto da banda Rolling Stones, o Altamont Free Concert (1969), integrado numa tournée pelos Estados Unidos – houve 4 nascimentos e 4 mortes. A inocência do Flower Power esgotara-se, a densidade que se desenvolveu neste espectáculo é violenta e natural. É conhecido porque se centra num concerto onde se deram vários acontecimentos, não musicais, que o marcaram. Trata-se, ao contrário dos outros dois filmes, de um filme sobre um grupo de pessoas conhecidas e sobre um acontecimento famoso. Não retrata de modo nenhum uma existência doméstica. Não nos deixemos arrastar por grandes entusiasmos. Não são grandes filmes. Cinematograficamente pouco há que os distinga para lá de um à-vontade de ir filmando, sem planos, deixando correr a filmagem, o que ficou conhecido como cinema de reacção – o seu encanto vem desta inocência. Libertam a ideia de que qualquer um, com uma câmara e um microfone poderia fazer filmes semelhantes (de certo modo é o que acontece hoje em dia, especialmente porque filmar é uma actividade muito acessível em termos de custos e em termos técnicos). O que os distingue é o interesse que a vida dos retratados podem suscitar junto do público. O mesmo se pode dizer dos filmes de um outro autor americano que já foi alvo de atenção nestas linhas: Errol Morris. Neles se exibe uma América demente e sanguinária e uma obsessão pela morte, mas também um comprazimento (em alguns) pela descrição do interior doméstico e pela excentricidade de figuras banais. Aceder aos filmes dos irmãos Maysles e de Errol Morris permite aceder, pelo menos, a uma colorida encenação da América.