A nau catrineta

[dropcap style=’circle’]L[/dropcap]onge vão os tempos em que a língua falada era um legado de fábulas e um canto em verso que se soletrava em forma de uma Constituição oral das regras de um país, de maneira a produzir uma receptividade comunicante de unidade e completude de esfera onírica, no tempo da Barcarolas, dos Cânticos, dos Trovadores, das Orações e das Trovas.
Ela articulava-se para produzir efeitos, desejar bênçãos, aperfeiçoar a melodia interna, profetizar e unir o inconsciente colectivo. Tudo isto foi a um tempo bem distinto da linguagem do agora, com ritmos e ciclos outros, que dava ao Verbo o papel de profecia. A cultura era também esta maneira de oralidade imensamente poética que merece ser vista com alguma consciência mais precisa quando falamos deste género literário. Vivemos hoje o fim de todo este ciclo: a língua não serve mais este propósito ou estes vários propósitos, tendo, na era da comunicação, sido práticamente abolida a sua imanência. Continuamos arduamente a produzir cultura, ferreamente empenhados em compreender tudo de todas as maneiras, a falar como nunca, a produzir sons e a jogar todos os verbos de forma a comunicar sempre mais, não se sabendo exactamente o quê.
Com o recurso ao pensamento individual todas as formas de relato são agora possíveis, todas as misturas argumentativas, todos os diálogos, todas as línguas, toda a verificação automática da sua norma, enfim, querer ser compreendido por meio da palavra tornou-se uma obsessão ilimitada e quase perturbadora. Informar, passar a mensagem, factualizar, argumentar, dizer, desdizer, tudo isso os discursos abusivos e a comunicação aceleram numa vertigem sem paralelo.
Estamos então no tempo de todos os recursos linguísticos e fonadores, pois que o Homem é o resultado da linguagem e o seu cérebro vai-se desocultando no exercício dela, de forma quantas vezes imprevisível , como no tempo em que o cérebro ainda possuía alucinações auditivas e os patriarcas, xamãs, profetas as ouviam a partir do seu lóbulo frontal e escreviam e ditavam coisas que ainda agora nos deleitamos e curvamos de pura admiração. Ora os seus cérebros estavam formados para outros raios comunicantes sem dúvida, porque hoje, não ouvimos mais essas “vozes”, nem elas nos ditam coisa nenhuma. Ficamos a sós uns com os outros a falar, por vezes mesmo a sós, outras porque nos disseram que não podemos estar calados, que todos temos uma palavra a dizer e assim por diante. As “vozes” hoje são ouvidas por escribas de editoras que lhes dita um outro, tão humano quanto ele, para relatar algo, que certamente vende e enche o mundo de papel, histórias essas quase sempre plausíveis, chamando para o poder humano aquele que algures tinham Deus e outras sublimes forças.
Um escriba já não é o homem com acesso ao vocabulário e ao sinais gráficos mas um ente que escrevinha o que um outro pensa muitas vezes de si mesmo. Esta total separação de fontes ordenou que todos tentassem escrever a sua história em moldes e formas unitárias, tiradas de todos, para que todos possam participar na vida uns dos outros em depoimento humano tão falível quanto as narrativas não batem certo. Os Faraós, que tinham linguagens e formas de lucubração metodológica talvez pouco desenvoltas e não estariam propriamente a falar com o redactor, este teria também que saber interpretar a voz de um “deus”. Não se sabe muito bem o que é que os Faraós disseram, a não ser aquele, o Aqueneton, que resolveu acabar com a casta sacerdotal, talvez demasiado palavrosa para as suas ideias monoteístas. Mas havia o labor do escriba! 9715P11T1
A dialéctica, essa arte da oratória, cresceu não como factualidade de enumerar coisas, mas tão somente pela “beauté do verbe”. Falar era uma arte maior, que não tinha de contar factos ou dizer o que se sabia. Era a pura interpretação inteligente da maneira de argumentar sem um sentido pré-determinado: poder-se-ia falar da coisa falada e renunciar a ela num atalho da própria matéria verbal. Devia ser delicioso. Ajudava a dar ao pensamento a antecipação de uma acção, a percorrer memorandos de informação, que são cultura armazenada. Aliás, as religiões monoteístas aplicaram brilhantemente estes princípios nas orações, nas preces, nos salmos e na retórica que transmitiam com bases sólidas das fontes linguísticas que foram o latim e o grego.
Esqueçamos tudo isto, porque o que não se exercita se esquece, claro, e vamos para o hoje do mundo falante. Nada disto parece sequer fazer sentido, nós os detentores da informação estamos tão nus destas verdades como despidos face a nós mesmos, as línguas são agora ferramentas ao serviço da nossa escalada de solidões várias, onde não vem colmatar nenhuma esfera desprotegida e direi até grandiosa. O que se disse hoje, amanhã diz-se de novo de outra maneira para assim nos dar a sensação que dizemos coisas novas. Meia perversa meia grotesca, serve-se dos acontecimentos ao redor (ao redor agora é a Terra toda) dando o brilho artificial de que quase sempre a própria informação se reveste.
Há o lado monocórdico, que tanto fala da morte como da vida, como do sexo como da paz, com a mesma inexpressiva dose informática, de modo que tudo se resume a acontecimentos no grande entulho das coisas sensíveis, factuais, os responsos a estas várias desgraças há muito que foram esquecidas e a felicidade é tudo quanto se almeja. Só que para ela há códigos que não lembram ao diabo, erguidos como grandes paragonas, tão politicamente correctos que ninguém ousa desafiar. Caso o faça, fica morto porque, quem não fala assim, não está do lado certo da jornada.
Olhando apenas o factor som do aparelho fonador, descobriu-se que a voz feminina pode provocar depressão nos homens e que pode estar associada ao grande número de agressões por parte destes. É uma conclusão que aponta para um total reaccionarismo mas que não deixa de ser interessante, porque corrobora com a ideia de Lou Salomé quando afirmou que a loucura afecta o desregramento vocabular na mulher enquanto que nos homens lhes retrai o dom da palavra, ou seja, a um provoca autismo, a outro a obsessão linguística.
Estou certa que o futuro ditará novas abordagens no fenómeno comunicante, outros órgãos que ainda desconhecemos se irão aos poucos desenvolver deste aparelho, quiçá ainda rudimentar, se ampliarão outros, com novos símbolos gráficos como acesso à telepatia, onde o poder comunicante se desenvolverá como hoje só é possível nas máquinas de sonhar e que todo este ruído a que fomos sujeitos findará, porque não foi afinal por causa dele que fomos enquanto criaturas melhor compreendidos. Aliás, nunca os afectos recuaram tanto perante a exigência de os analisar, nunca tantos se entenderam tão mal. Aqueles que nos dizem o que é essencial saber, reunir-se-ão na nossa esfera de empatias melhoradas, sem longe e sem distância, como um Fernão Capelo Gaivota, para nos sussurrarem ao ouvido o seu precioso entendimento e dele nascerá a esfera de um conhecimento que amplia a linguagem em muitos saberes.
Levados pelas vozes de uma esquecida Nau Catrineta talvez as histórias sejam então de pasmar.

Que queres então, meu gajeiro?
Que alvissaras te hei-de dar?
Quero só a tua alma para comigo levar.
Pegou-lhe um anjo nos braços, não o deixou afogar.
Deu um estouro o demónio.
E sossegou logo o mar.

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