A culpa é do primo

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]dmito: numa terra em que uns são primos dos outros e vice-versa, será difícil, à partida, fazer prova do mérito. Se para alguns é de uma enorme conveniência ter irmãos, primos e tios espalhados em locais estratégicos, para outros será uma dor de cabeça ter a genealogia em constante perseguição. Mas a vida é feita destas coisas e de muitas outras chatices: já todos nós, em situações diversas, tivemos de abdicar da nossa vontade para evitar acusações injustas. É aquela velha história do ser e do parecer. E a verdade é que em Macau, quando há negócios que não parecem bem, por norma há um tio, um primo, um cunhado e talvez uma amiga à mistura.

No final de Abril, numa invulgar posição política, Alexis Tam afastou um vogal do Fundo das Indústrias Culturais, de seu nome Chao Son U. A decisão do secretário para os Assuntos Sociais e Cultura foi motivada por falta de confiança política, na sequência de uma história que, para a opinião pública, se contou da seguinte forma: uma empresa de familiares de Chao Son U concorreu aos apoios financeiros dados pelo Fundo das Indústrias Culturais. Concorreu e ganhou. A dada altura do processo, a coisa não correu bem lá para os lados de Chao Son U.

O caso chegou a ser enviado para o Comissariado contra a Corrupção que, em tempo recorde nos anos de vida que levo de Macau, analisou, investigou, discutiu e engavetou o processo: nada a apontar a Chao Son U. A rapidez da justiça mereceu reparos – de quem conviveu com o antigo vogal – e foi louvada com críticas ferozes de algumas forças políticas locais. É, sem dúvida, uma decisão que abre um precedente em termos de celeridade. O assunto dava um texto – ou vários.

Voltemos a Chao Son U, um ilustre desconhecido da nossa imprensa até Abril. Esta semana, em declarações aos jornalistas, o presidente do Fundo das Indústrias Culturais confirmou que a empresa detida pelos familiares do antigo vogal consta da lista de seleccionadas aos apoios aprovados no ano passado. Leong Heng Teng, o presidente do fundo – que o leitor mais distraído conhecerá dos outros 2500 cargos que desempenha, homem com longa carreira política em várias frentes –, ficou aparentemente surpreendido com a insistência dos jornalistas, que quiseram saber se houve uma reavaliação da candidatura do familiar de Chao Son U, reponderação essa depois de o caso ter sido tornado público.

Leong Heng Teng explicou que não, que não houve qualquer reavaliação da candidatura. Garantiu também que tudo correu como mandam as regras, que não houve qualquer irregularidade, que já não há caso. Ou seja, o caso Chao são águas passadas. Leong Heng Teng não identificou o nome da empresa detida pelos familiares do antigo vogal mas, na sequência destas declarações, o jornal Ponto Final foi à procura e descobriu que pertence ao irmão de Chao Son U.

O irmão de Chao Son U não tem culpa de ter irmãos. E também não será culpado de ter irmãos com importância suficiente para pertencerem a entidades que mexem com dinheiros públicos em áreas – as coincidências são tramadas – que têm que ver com a actividade profissional que lhe ocupa os dias. O irmão de Chao Son U podia não se ter candidatado ao apoio financeiro da instituição onde trabalha o filho da mesma mãe e/ou do mesmo pai, podia ter ido bater à porta de outro fundo ou fundação, que dinheiro é o que não falta por aí, mas calhou assim e não calhou bem. Ter irmãos e primos e tios e compadres é bom, mas nem sempre.

Toda esta história é estranha: não acredito que Alexis Tam tenha acordado uma manhã com vontade de andar a dizer por aí que houve alguém que podia ter estado melhor, que é preciso rigor e transparência – e vai daí toca a escrever um despacho e afastar quem fez o que não devia. No meio de tudo isto, já depois de conhecida a supersónica decisão do CCAC, chegou a declaração conjunta de quem trabalhou com o antigo vogal: oito funcionários do Fundo das Indústrias Culturais vieram para os jornais dizer que foram pressionados por Chao Son U para que não revelassem detalhes durante a investigação levada a cabo pelo gabinete de Alexis Tam.

Toda esta história é estranha e acredito que, bem lá no fundo, sejam todos bons rapazes, um irmão e o outro, apesar de, não os conhecendo, me parecer que têm ambos falta de jeito. Leong Heng Teng diz que está tudo bem e a gente acredita, os milhões já estão distribuídos e as regras foram cumpridas à risca, mas há que começar a pensar em redesenhá-las para evitar as confusões entre tios e primos, irmãos e irmãs, sobrinhos e afilhados.

A culpa é dos primos. É o que dá ter muitas tias.

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