admin h | Artes, Letras e IdeiasHomem das cavernas [dropcap]C[/dropcap]omeçávamos a beber logo pela manhã. Dormíamos com uma garrafa ao pé da cama e a primeira coisa que fazíamos ao acordar, à medida que abríamos os olhos, era pegar nela e levá-la à boca, como o bebé faz para encontrar a mama da mãe depois de uma noite agitada, às cegas vai tacteando com os lábios até encontrar o gargalo. Era exactamente assim, mas um pouco ao contrário. Antes que a consciência chegasse, optava-se vigorosamente pela inconsciência, corrida de arranque e pura velocidade para ver quem chega primeiro à meta, cruzam-se em algum lado do corpo e talvez pisquem os olhos. Eu sei que será difícil perceber, mas também não posso explicá-lo de outro modo. Até agora o meu lado inerte e espontâneo tem ganho sempre e espero manter essa hierarquia intacta. Quanto ao que estava dentro da garrafa, não é o mais importante. Vodka, uísque, vinho. Algum licor, os restos de um litro de cerveja. Por vezes, absinto ou tequila, para o choque frontal e sangria do espírito. A receita era a mesma: esquecer o dia que nascia com indiferença e que a cada trago se dissipava dentro de nós. Não falávamos, o limite era o olhar cúmplice ao espelho, como quem acabou de comprar bilhete para o comboio e corre para entrar na primeira carruagem, já em movimento. Sentávamo-nos no bar e pedíamos o que houvesse de mais forte para amortecer os solavancos da viagem. O dia externo a levantar-se, imparável, sol a entrar pela janela, a garganta calejada e arranhada do álcool e de tudo o que o que tínhamos feito na noite anterior, que não nos lembrávamos. Não existia ressaca porque a substituíamos sempre por nova rodada. As árvores a passarem lá fora, o balanço do vagão a embalar-nos o esquecimento com que se ocupava o viver e o hábito, enquanto o ferro gravava o caminho. Viajávamos quase sempre em pé, no chocalhar do abalo a bebida corria melhor, nem era preciso segurar o manípulo, acompanhávamos o ritmo dos carris até ao fim da linha. Balanço sem fim à vista. E pouca terra. Quando saíamos para a rua – temos sempre de atestar a adega em algum lugar, não é? – sentíamos as fisgas dos olhares que nos rodeavam, como quem diz: “Lá vem ele!” A todo o momento esperavam pela desgraça, que um eléctrico nos passasse por cima e desse cabo do nosso desejo. Que tropeçássemos no varandim da ponte ou simplesmente que desfalecêssemos ali mesmo, em plena calçada, desfazendo a dupla que afinal se engalfinhava dentro de um só corpo. Mas não, o amor aguentava-nos, o amor pela bebida, a manchar-nos a alma de manhã à noite. Sem variar, trazia mão amiga não para o abraço, mas para o empurrão, combustível para mais uma jornada que nos levava até ao apeadeiro seguinte. Com pouca terra. Até que apareceu a porta aberta. A luz a entrar. Anos fechado naquela complexidade existencial, podia finalmente sair. O caminho estava ali, delineado, a chamar-me; se escutasse com atenção diria que gritava pelo meu nome, para que lhe esticasse a mão. Apesar da derrota, o ser vigilante que a espaços sobrava cá dentro sempre desejara sair daquele covil, deixando a pele de cobra para trás. Mas agora que podia fazê-lo, hesitava. O que encontraria lá fora? Pensei que a janela de oportunidade não ia durar muito e não estaria aberta para sempre, nem sequer por uma mão cheia de minutos. A decisão teria de ser tomada naquele momento. A solidão era penosa. A vida que o álcool afogava invadia os dias e não deixava aperto para mais, tornando-a vazia para o contacto abissal do outro. A companhia era só o copo na mão. Não havia necessidade de reflexão. Se ainda sobrasse um pouco de lógica, a escolha era óbvia e estava tomada. Sentávamo-nos no bar e pedíamos o que houvesse de mais forte para amortecer os solavancos da viagem. O dia externo a levantar-se, imparável, sol a entrar pela janela, a garganta calejada e arranhada do álcool e de tudo o que o que tínhamos feito na noite anterior, que não nos lembrávamos. Despertara, foi isso, sem querer e sem plano. Palavras que desconhecia o significado esperavam do lado de lá do rebordo entreaberto. O limiar primário tinha agora uma fresta para o amanhã. E tanta ilação desnecessária quando devia apenas andar. “Anda!”, pediam as pernas, velejadas no ímpeto do sofrido de uma rotina desagregada e encolhida. Não ficava ninguém para trás, os anos passavam e a imaginação era o meu único segredo. E a fenestra, ali, a vivificar todas as minhas ausências. Iria encontrar o abraço, o sabor sonhado do beijo. “Vai!”, pedia-me o corpo. A soletrar a partida, passo a passo, percorrendo factos e seriedades. A caixa escura esventrada à luz universal. Floresta densa, estrelas e varandins, por onde se pode escorregar para o transeunte sedento aplaudir. “Lá vem ele!” Paisagens que dão nome aos sentimentos. Iluminação natural, uma cabine ampla e amortecida. Saía ou entrava? O motivo da dúvida obscurecia a evidência transformada em tentação. O fruto da árvore infinita, de múltiplos ramos, escolhas sem restrição, equações vorazes. E como era difícil a preferência, assim como era a extinção. Que ponto era aquele? Não tinha reparado nas tabuletas, o cobrador não viera picar o bilhete. Teria adormecido na viagem, parado no destino e sem saber voltara para a origem, para debicar a mama da mãe? Os solavancos, uma leve dor de cabeça que trazia o sintoma nunca vivido do rebentar da presença em bruto e não líquida. Sim, a vista dali era curta e sem pretensões. Era pouca, a terra. A vida era deglutida de uma só vez pela preguiça. Sombra nos tímpanos, tacto mórbido, idioma encortiçado. O esperado ocorria entre os limites mais rasteiros e o despertar não trazia vantagem. No dia não se via o céu. Inverno. Verão. Era igual. Já nem o frio se sentia, quanto mais o calor. A capacidade vestia a definição, não se movia, não iluminava. Alambiques, tonéis, dornas. Definido em centilitros e copos de dois dedos, o alimento era a suficiência. O tempo, a chegada. “Sair?” A dúvida a anoitecer e a abrir a cama. “É isso que tu queres?”, falava o corpo, falava o vício. A porta escolhida na calha da resolução, quadrada, despida. A mente não ordenava, a estática sofria por ficar. A mudança desconhecida penetrava na inexatidão, amortecendo a humanidade e devolvendo o futuro. Para quê sair se cá dentro existia todo o universo, lá fora haverá alguém? Haverá mundo? Não há, com certeza.
João Luz SociedadeSaúde | ARTM assina protocolo com Departamento de Psicologia da USJ [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Associação de Reabilitação de Toxicodependentes de Macau (ARTM) e a Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de São José (USJ) assinaram um protocolo de cooperação com vista ao aperfeiçoamento do apoio psicológico facultado a quem sofre de dependências. Na sequência do acordo, dois docentes do departamento de psicologia da USJ vão acompanhar os cuidados prestados pelos técnicos da ARTM, contribuindo para “aprofundar e melhorar as suas técnicas e as suas abordagens para que possam providenciar um melhor apoio psicológico”, refere o presidente da associação, Augusto Nogueira. A supervisão dos trabalhos da ARTM será realizada em grupo, uma vez por mês, até Fevereiro de 2019, com a possibilidade de ser renovada após avaliação. Na opinião de Augusto Nogueira, este protocolo também é positivo para o departamento de psicologia da USJ “porque lhes vai permitir analisar se aquilo que ensinam é compatível com a realidade dentro de um centro de tratamento”. O dirigente associativo alarga as vantagens e entende que é uma situação “win-win” para ambas as partes. “Estamos muito contentes com este acordo pois permite-nos melhorar ainda mais o nosso apoio às pessoas que consomem drogas”, confessa o presidente da ARTM. O protocolo foi assinado por Augusto Nogueira e pelo Reitor da Faculdade de Ciências Sociais da USJ, Dominique Tyl.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasO Primo Basílio | Quarta parte [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á uma estreita relação entre desejo e vício, que é preciso apurar agora. O desejo, havíamo-lo visto anteriormente, traz em si mesmo a sua própria destruição e, se torna a voltar, é através de um renascer (ou com a ajuda da memória ou da necessidade). O vício, contrariamente ao desejo, esforça-se por permanecer. Melhor seria dizer que o vício esforça-se por fazer permanecer, permanecendo. De que modo permanece o vício em nós e que faz ele permanecer? Tínhamos visto que a multiplicação do desejo ao incrementar o nada, recebia a contrapartida da diversão. O vício não precisa de nada. O vício basta-se. O vício não se autodestrói como o desejo, pelo contrário, a cada instante que passa, o vício se torna mais forte, mais senhor de si e de quem ele tomou. O vício, a cada instante que passa, torna-se mais senhor do seu escravo, do humano que a ele se submete. O vício esforça-se por fazer permanecer o humano do qual é senhor; esse é o seu esforço. Manter o escravo vivo é manter-se vivo e mais forte a cada instante. O viciado em heroína, a cada instante que passa, é mais escravo do seu vício, a cada instante que passa está mais enredado nas teias do seu senhor. O vício faz-se sentir como se de um desejo se tratasse, mas não tem fim, como este. O vício é um desejo sem fundo, um desejo quase infinito. Este desejo sem fundo, que é o vício, é um desejo sem prazer, sem promessa de prazer. O vício é na realidade a antítese do prazer, a incapacidade de produzir qualquer bem estar, a incapacidade de sentir-se saciado. No desejo e no vício não há liberdade, no primeiro as escolhas estão reduzidíssimas, isto é, o desejo quer quase tudo, impõe-se assim, e no vício não há mesmo liberdade nenhuma, não há escolha. Inclusivamente, quando alguém é apanhado a fazer algo que não devia estar a fazer, embora não seja nada de grave, por exemplo a jogar no computador, usa uma expressão que traduz bem isto que queremos dizer: “é o vício!” De facto, o vício não nos deixa escolha. Nem nos deixa escolha, nem nos dá prazer. Bom, algum prazer dá, mas que vai sendo cada vez menos, até que o vício se sinta como uma obrigação, um “temos que fazer”, um “tem de ser”. Se alguém aqui conhece ou conheceu um viciado em heroína ou viciado no jogo, sabe bem do que estou a falar. Para além do momento em que se acalma o vício (a palavra é essa, acalmar, acalmar momentaneamente esse animal em nós), quase todo o tempo da vida daquele que está deposto no vício é ocupado a pensar nele ou em como irá alimentá-lo. O vício é uma animal enorme, dentro de nós, que exige continuamente em ser alimentado; o viciado não tem mais tempo para si, mas para esse animal, o tempo dele é o tempo que dedica a cuidar do seu animal interior. Do desejo, enquanto estrutura constitutiva do humano, vimo-lo anteriormente, ninguém está a salvo dele, e do vício, será possível escapar do vício? Esta parece-me ser a tese forte de Eça de Queirós, neste seu livro, mostrar que a generalidade do vício é parte integrante da condição humana. Não há humano sem vício. Eça mostra que o vício não é uma degenerescência do humano, mas uma constituição do mesmo. Enquanto estrutura ontológica, constitutiva do humano, o vício é dar sentido às coisas. O vício enquanto degenerescência pode assumir múltiplas formas: o jogo, a heroína, o álcool, o sexo, etc., mas enquanto constitutivo do humano ele é um: dar sentido às coisas. O vício não é um hábito que se adquire é uma natureza que se tem. O vício, ao fazer de nós a sua sombra, faz com que queiramos dar sentido a tudo e a todas as coisas. O vício é a substância que nos mantém vivos, que nos faz continuar, que nos impele a continuar esta vida que nos foi concedida. Querer estar vivo é um vício. Se o vício dá sentido às coisas, põe razão em tudo o que toca, é somente porque necessita de nós para continuar. E, obviamente, por essa alucinação de entendimento – todo o vício é uma alucinação – exerce a sua vontade sobre nós. Porque a fome de entendimento é universal. O mais miserável dos humanos julga entender o que se passa dentro dele e ao seu redor. Pergunto: porque é que, mesmo nas condições mais indignas de vida, o humano não se mata e teima em manter-se vivo? Porque o vício exerce sobre ele o seu poderoso poder. Dar sentido às coisas não é a verdadeira essência do vício. Dar sentido às coisas é um entretenimento, uma derivação do vício, a verdadeira essência dele é fazer com que o humano não queira abdicar do que nunca teve. O desejo impede-nos de abdicarmos do que já tivemos e agora já não temos, mas o vício impede-nos de abdicar do que nunca tivemos. Que é isto, não abdicar do que nunca tivemos? Passo a explicar. Vejamos o caso de Leopoldina, do que ela não consegue abdicar não é dos homens ou do sexo, do que ela não consegue abdicar é de um Absoluto que não consegue, que não tem. Não conseguir abdicar do Absoluto que não tem, que quer isso dizer? Esse Absoluto pode assumir diversas formas, por exemplo a forma da Felicidade. Usualmente as pessoas vivem sem felicidade, mas não abdicam dela, isto é, não abdicam de estar numa tensão continua com ela, em perseguição dela, e a felicidade passa então a ter o mesmo efeito sobre a pessoa que tem a heroína: vive-se pr’àquilo. O vício de estar vivo permanece mesmo contra a solidão, mesmo contra a evidência da solidão. Mais do que fazer o que quer que seja, o vício é ser, resistir no tempo que passa, quando se sabe que passa para nada. Mas vai-se ficando como se esperássemos que ele passasse para alguma coisa. Ficar para quê? Para mais um poema, para mais um email, para mais um lucro, para mais um noite de prazer, para mais um filho ou para mais um golo do Fc Porto? Nada cala o labirinto que somos. Ainda que se possa fazer de tudo uma ilusão para calá-lo. Se Deus não nos receber, toda e qualquer vida é nada, se nos receber é tudo.
João Luz Manchete ReportagemVício | Jogo patológico é um problema invisível na terra dos casinos Macau é uma cidade onde o jogo é, de longe, o principal motor económico. Com quase 40 casinos em pouco mais de 30 quilómetros quadrados, não é de estranhar que o vício de jogo seja algo endémico no território. O HM foi à procura de quem sofre e de quem trata [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a cidade dos néones, o brilho ofusca aqueles que apostam mais do que podem cobrir. “Se tiver mil patacas, e for obrigado a escolher entre droga ou jogo, escolho o jogo”, revela S., um veterano de vários vícios. Com um historial vasto de consumo de opiáceos, este homem de 58 anos é um fantasma da velha Macau, em que o crime nos casinos era visível e transbordava para as ruas. Aos 14 anos a vida levou-o a entrar num gang onde vendia e consumia heroína. Foi agiota e fez de tudo um pouco no lado negro que ensombrava o glamour dos casinos. Hoje em dia, com a luz que a regulação fez incidir na indústria, já não dispõe das largas somas de dinheiro que apostava. No passado, como o dinheiro não era problema, o jogo também não. O destino trocou-lhe as voltas, mas o jogo e a heroína continuam no seu percurso. No entanto, S. não tem dúvidas de que, no menu dos vícios, “o jogo é a sua prioridade”. O seu caso não é único e encaixa perfeitamente no conceito de personalidade aditiva. Algo que não é de estranhar, uma vez que o vício dos jogadores patológicos tem perigosas semelhanças com a toxicodependência. “Em termos biológicos, cerebrais, o jogo e a droga acabam por tocar na mesma zona do cérebro, acontecem as mesmas reacções químicas, são libertadas as mesmas hormonas, são realidades muito semelhantes.” As palavras são de Marta Bucho, Coordenadora do Centro Feminino da Associação de Reabilitação de Toxicodependentes de Macau (ARTM). Aliás, estudos indicam que os jogadores também têm sintomas de privação semelhantes, ou seja, ressaca. Em ambos os casos, o cérebro é inundado por serotonina e dopamina, hormonas que regulam o humor, a ansiedade, o humor, o sono, o stress e o prazer. “Normalmente, não temos uma libertação tão forte destes químicos”, explica Marta Bucho. Quem cai nas malhas do jogo, frequentemente, encontra neste prazer algo que lhe falta na vida. São coisas que andam de mãos dadas. Problemas psicológicos como depressão, traumas, stress, ansiedade e fobias podem ser precursores à adição. Estas pessoas acabam, muitas vezes, por “usar o jogo como forma de auto-tratamento”, explica a terapeuta. O uso de álcool e drogas também servem de meio de medicação, num mosaico aditivo muito complexo de tratar. Pessoas que têm deficit de atenção e hiperactividade fazem parte de outro grupo de risco, vulneráveis ao vício, encontrando no jogo uma forma para se focarem. Casino omnipresente Este problema agiganta-se com diversos factores. O sentimento de vergonha, e a aceitação social e cultural são dois elementos explosivos. “A cultura é um problema, porque entre os chineses há a ideia de que pode ser escondido e que a família consegue resolver a situação sozinha”, conta Elaine Tang, assistente social na Casa da Vontade Firme, uma instituição da Divisão de Prevenção e Tratamento do Jogo Problemático. Estes factores levam a que, na maioria dos casos, a procura de apoio seja tardia. “Quando procuram ajuda é porque já têm muitas dívidas e o problema é muito maior”, explica. Além disso, a rede familiar incorre no erro de julgar que se pagar as dívidas do jogador, a lição é aprendida. Mas o vício não funciona dentro destes parâmetros. Recusar ajuda a um familiar que esteja desesperado, com agiotas à perna, pode ser o mais aconselhável. Outro dos problemas é a facilidade de acesso, a conveniência do jogo. Macau tem perto de 40 casinos, espalhados por pouco mais de 30 quilómetros quadrados. Além de ser mais bem visto que o consumo de estupefacientes, o jogo é uma presença constante e a cidade está estruturada para que se jogue. Os casinos facultam quartos, têm caixas ATM estrategicamente colocadas, comida e bebidas grátis. Aliás, a omnipresença é de tal magnitude que a Casa de Vontade Firme está ironicamente ao lado do L’Arc Casino. Ou seja, quem procurar ajuda na instituição, que funciona sob a égide do Instituto de Acção Social (IAS), passa por vários casinos até lá chegar. Atacar o mal Elaine Tang, do IAS, destaca a complexidade da questão e a forma como cada caso é único. Quem chega à Casa de Vontade Firme fala com uma assistente social para que sejam aferidos os problemas que enfrenta. De seguida, delimitam-se prioridades na abordagem a cada caso, uma vez que os viciados que ali chegam trazem consigo dificuldades financeiras, familiares, laborais e sociais. “Pedem largas somas de dinheiro, dizem que pagam em prestações e chegam, também, a pedir que sejamos fiadores para recorrerem a empréstimos” junto da banca, conta Elaine Tang. Obviamente, os serviços não emprestam apoio monetário, mas fazem algo muito mais valioso no longo prazo. “Há pessoas que não têm um conceito do que é o dinheiro, porque nunca tiveram problemas financeiros”, explica a assistente social. Normalmente, este tipo de viciados não apresenta quadros clínicos de consumo de droga, mas não têm noções de poupança. “Tenho um caso de uma pessoa que tem de marcar todas as suas despesas diárias. Depois de seis meses, aprendeu quanto dinheiro precisa para sustentar a família todos os meses”, revela Elaine. Este paciente, com um casamento destruído pelo jogo, vive hoje em dia com o pai e é a ele que confia as suas finanças. Um dos casos que preocupa a assistente social é o de uma mulher que trabalha exclusivamente para sustentar o vício. Quando sai do emprego, vai para o casino onde passa a noite inteira a jogar, largando as mesas de jogo apenas quando chega a hora de regressar ao trabalho. Este ciclo pode durar três dias seguidos, sem interrupção, até que cai exausta na cama e dorme um dia inteiro. Depois do descanso, o ciclo repete-se. Na Casa de Vontade Firme não há uma abordagem farmacológica ao vício do jogo. Já no centro de reabilitação da ARTM essa é uma realidade incontornável, uma vez que a doença carece de um reequilíbrio químico. Depois de ser prescrita medicação, começa-se a atacar a desestruturação que o jogo patológico trouxe à vida da pessoa. “Voltamos a puxar os valores como a dignidade, honestidade, porque tudo se foi perdendo com o vício”, explica Marta Bucho. Inicia-se o processo de ressocialização do doente. Primeiro, tal como nas drogas, é necessário enfrentar a realidade de que a pessoa não deixará de jogar de um dia para o outro, há que proceder a uma redução de danos e a um desmame gradual. O passo inicial é aceitar o problema, só depois se pode ir reduzindo, aos poucos, a frequência com que se joga, a quantidade de dinheiro e o tempo que se passa no casino. Os estágios seguintes no caminho para a cura são a intervenção psicossocial e a vida em comunidade. Quem entra no centro de reabilitação da ARTM reaprende valores da ajuda mútua, o respeito pelos outros. Outro dos pilares de suporte é a solidariedade e a experiência dos jogadores que se encontram em recuperação há mais tempo. Números azarados Elaine Tang conta que conhece jogadores com perdas que ascendem a dois milhões de patacas e que apenas auferem 20 mil por mês. A maioria destes casos chega ao IAS já numa situação complicada de resolver, com agiotas à perna, os pacientes a sentirem-se ameaçados. Com alguma frequência, este tipo de viciados, depois de receberem aconselhamento financeiro, não voltam à instituição. Os serviços do IAS começaram a registar os casos de viciados em jogo que procuraram ajuda nos seus centros a partir de 2011. Desde então, até 2016, 856 pessoas recorreram aos serviços do instituto. Quanto à taxa de reincidência, o IAS apenas revelou que o caminho para a recuperação é longo e árduo, e as recaídas muito frequentes. Um estudo elaborado pelo Instituto de Estudos sobre a Indústria do Jogo da Universidade de Macau revelou que, em 2015, havia 14 mil jogadores viciados, o que representa 2,15 por cento da população. Em 2016, a incidência de pessoas com problemas com jogo era de 2,5 por cento, um ligeiro aumento. No ano passado, segundo informação da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos de Macau, pediram auto-exclusão dos casinos 351 pessoas. Em contrapartida, as receitas brutas do sector continuam numa curva ascendente. Mas para que alguém ganhe, outros têm de perder, e há quem perca tudo. Entre a panóplia de casos de adição, os jogadores são os que têm maior tendência para o suicídio, mais significativa do que entre os consumidores de drogas. Apesar de ser uma realidade pouco estudada na região, a Universidade de Hong Kong fez um estudo que revelou que, em 2003, dos 1201 suicídios registados na cidade, 233 estavam relacionados com problemas de jogo, o que representa quase 20 por cento. De resto, uma larga fatia dos telefonemas recebidos pela Linha de Prevenção de Suicídio da Cáritas é relativa a desespero nascido nas mesas dos casinos. “Há diversos estudos que apontam que jogo e o suicídio estão muito ligados”, completa Marta Bucho. Apesar do brilho do Cotai, há uma parte de Macau que sente nas entranhas os excessos que o jogo arrasta consigo. L., de 46 anos, vai ao serviço extensivo do ARTM na Areia Preta, um centro de redução de danos que distribui seringas e refeições, comer uma sopa e conviver um pouco. Com um largo historial de consumo de heroína, metanfetaminas, álcool e tudo o que vier à mão, o jogo é uma das constantes da sua vida. Partilhou casa com toxicodependentes durante três anos e pensou várias vezes no suicídio. Parecia-lhe a única saída da miséria. Perdeu todo o dinheiro, perdeu a família, e teve dias em que perdeu a vontade de viver. A meio da entrevista ao HM levanta-se para mostrar a identificação para poder usufruir da refeição quente que a ARTM lhe providencia. A vida não lhe corre bem, mas quando fala no prazer que lhe dá um jogo de bacará os seus olhos brilham como os néones.