Os outros valores

[dropcap]Q[/dropcap]uando valem os valores? Não falo de capital, de cartas hidrográficas de rios de dinheiro, de ábacos de contas recheadas. Falo de princípios, das fundações, dos parâmetros éticos que balizam acção e consciência, coração moral que não deveria ter preço de mercado, mas que é vendido às peças.

Hoje em dia assistimos à falência das entidades supra-estatais que nasceram da evolução dos nossos melhores instintos enquanto espécie que tenta ao máximo sacudir os ares de barbárie. As Nações Unidas atribuíram, há uns anos, um papel importante à Arábia Saudita no Conselho dos Direitos Humanos, um país que manda assassinar jornalistas em embaixadas e que tem nos seus quadros operacionais especializados em amputar corpos com motosserra.

Erdogan, depois de assinar acordos comerciais com a China, mostrou-se agradado com a “abertura” de Pequim ao permitir a entrada de observadores turcos nos campos de concentração onde uma parte significativa dos uigures estão a ser “reeducados” a serem algo que nunca foram.

A Europa deixa morrer às suas portas centenas de pessoas desesperadas por um porto seguro, enquanto o Parlamento Europeu discute quem odeia mais Bruxelas ao som do Hino da Alegria. É sabido que a moral social evolui com oscilações, a ética não ascende a um ritmo estável em direcção a um mundo mais decente. Pelo caminho, outros valores se levantam e as mais bem-intencionadas vozes são abafadas pelo ensurdecedor volume do dinheiro.

9 Jul 2019

Educação | Jovens de Macau dão prioridade a dinheiro e bens materiais por “influência social”

Os jovens de Macau não se assumem como consumistas e materialistas, mas estudos de académicos da RAEHK e da DSEJ dizem o contrário: os valores já não são o que eram e quem está agora na universidade prefere um emprego com boa remuneração a uma carreira de sonho

[dropcap style=’cricle’]É[/dropcap]comum ouvir-se dizer que a sociedade chinesa está, há já alguns anos, imersa numa era de consumismo, onde as pessoas valorizam os bens materiais e o dinheiro acima de qualquer outra coisa. E há estudos que o comprovam – as tradições continuam, certamente, bastante demarcadas no país, mas é aos bens materiais que os mais novos se aliam.
o HM foi tentar perceber se esta tendência também acontece em Macau ou se se cinge somente ao continente. Para os estudantes por nós ouvidos as coisas não são bem assim, mas para a professora do departamento de Comunicação da Universidade Baptista de Hong Kong, Kara Chan, esta é uma realidade já bastante visível. Há ano e meio, Chan publicou um estudo onde explora as diferentes fontes para a aquisição de valores materialistas entre os jovens da RAEM e a pesquisa, que data de final de 2013, mostra que o elemento que mais fomenta o materialismo entre os jovens – entre os 13 e os 20 anos de idade – é a relação entre pais e filhos e colegas de escola. Mas o documento enfatiza ainda uma forte influência da própria cultura.
“A cultura Chinesa coloca muito ênfase na faceta social, pelo que a comparação social de consumo entre amigos é promovida”, refere Chan. Apoiado pelo Instituto Cultural, o estudo “Desenvolvimento de Valores Materialistas entre as Crianças e Adolescentes” determina que a grande maioria dos jovens debate, em conversas corriqueiras, as últimas compras e novidades de conhecidas marcas de roupa e sapatos.
“A troca de experiências de consumo espoleta o desejo de saber se os seus colegas e amigos compraram, ou não, determinados objectos de certas marcas”, informa.

Os valores aqui tão perto

Um dos obstáculos à obtenção de dados honestos foi, de acordo com Chan, o facto do estudo consistir num questionário preenchido pelos alunos: estes sentem a necessidade de fazer com que as suas respostas correspondam à ideia social que se quer fazer passar. Foi precisamente isso que aconteceu com os alunos entrevistados pelo HM: a grande maioria não se perspectiva como consumista, mas admite viver num ambiente escolar do género. estudante educação alunos universidade
O intervalo para almoço varia de escola para escola, mas os jovens de t-shirt branca e calções azuis, do Instituto Salesiano de Macau, enchem as ruas de São Lourenço das 12h00 às 13h00. A meio caminho, o HM encontrou meia dúzia deles – literalmente –, mas só três puseram a vergonha de lado e decidiram dar o seu testemunho. Em causa está a vontade de seguir os estudos numa instituição de ensino superior ou, por outro lado, a preocupação em arranjar um emprego que pague bem ao final do mês.
“Todos queremos ir para a universidade”, declararam, sem hesitações. O primeiro no palanque foi Larry, que admite querer um bom ordenado, mas não sem primeiro estar a fazer o que gosta. “O ideal seria poder juntar as duas coisas”, explica.
A ideia, dizem todos, é ingressar na faculdade. Uns querem o curso de Comunicação e há mesmo quem vejo nos seus docentes um modelo a seguir: “quero estudar para um dia ser professor”, diz-nos Ronaldo. “Quero estudar fora, mas depois voltar para Macau e exercer aqui a minha profissão enquanto professor.”
No que diz respeito ao valor dado ao dinheiro, Larry afirma não dar “grande importância”, pelo que prefere saber que faz o que gosta ao invés de ter um cheque chorudo ao final do mês. Os estudantes, que frequentam os 11º e 12º anos do Instituto Salesiano, afirmam que o dinheiro não traz felicidade, mas dois dos cinco amigos já têm um part-time e usam o ordenado para comprar “coisas na internet”.
A Escola Secundária Estrela do Mar, junto ao Largo do Lilau, é, ao contrário dos Salesianos, mista. À porta estavam Catarina e Leong Iok I, que contam histórias diferentes para um futuro próximo. Ainda o 11º vai a meio e a primeira aluna está certa do que quer: “Quero estudar Medicina fora de Macau”, começa Catarina por dizer. “Não me importo onde tiro a licenciatura, mas o mestrado tem que ser tirado num sítio de renome”, acrescenta. Questionada sobre as suas prioridades, Catarina aponta que prefere um “emprego adequado às suas capacidades do que um que pague bem”.
O estudo de Kara Chan determina que a atitude dos pais face ao consumismo influencia em muito a forma como os jovens perspectivam o futuro e reagem em sociedade. “Uma vez que a comparação social de consumo tem um forte efeito directo no apoio de valores materialistas, os pais e educadores deviam desencorajar as crianças e os jovens a comparar padrões de consumo e bens com os seus amigos”, aponta Chan. Mas os pais de Catarina não se identificam neste padrão… pelo menos não totalmente.
“Os meus pais são liberais nessa matéria, preferem que escolha uma coisa que eu goste, mas também já deixaram a ideia de que seria bom juntar uma boa carreira com um bom ordenado”, adiantou a jovem.

De dentro para fora

“Os jovens de Macau estão, definitivamente, mais materialistas”, começa por dizer ao HM um professor de apelido Au. Especialista em Música e membro de um grupo de aconselhamento juvenil dos Salesianos, Au confessa debater-se frequentemente com este problema.
“Os jovens fazem comparações, entre si, dos bens materiais que têm e isso vê-se nos trabalhos que os professores mandam fazer”, explica. “Entre eles, focam-se muito no dinheiro e olham para os bens materiais como símbolo de riqueza”. O docente vê a sociedade e o ambiente familiar como os principais influenciadores desta tendência. E diz que esta começa a tornar-se visível entre o 8º e o 9º ano.
Questionado sobre a existência de valores sociais entre estes alunos, Au refere que ainda não conseguiu determinar se os jovens seguem algumas destas premissas, como são a preocupação com os mais velhos, a contribuição para a economia do lar, entre outras.
Além de alunos de escolas secundárias, o HM também entrevistou jovens universitários. Célia é estudante de Tradução no Instituto Politécnico de Macau (IPM) e concorda com a tendência de consumismo desenfreado em Macau.
“A maioria dos jovens, incluindo eu, quer ganhar mais dinheiro para gastar em coisas de que realmente gostamos, até porque há quem compre só porque os outros têm também, como casas ou automóveis”, começou por dizer. Célia criticou esta vertente social que, diz, tem vindo a conquistar cada vez mais adeptos. “Conheço muita gente que age por imitação, por vezes sem pensar no seu próprio poder de compra”, adiantou. “Há mais pessoas a querer frequentar cursos, mas por crerem que dá um certo status quo”, acrescentou a finalista.

Remuneração acima de tudo

Em 2012, num universo de mais de 3100 jovens residentes, nota-se uma clara propensão para priorizar uma alta remuneração e uma carreira estável. Estes dois elementos sobrepõem-se às preocupações com a saúde ou as relações interpessoais. As informações foram publicadas num estudo realizado há dois anos e meio pelo Gabinete Coordenador dos Serviços Sociais Sheng Kung Hui Macau. Embora apenas 2% da população juvenil tenha sido inquirida, os dados não enganam: uma esmagadora maioria destes jovens concorda com a persecução dos estudos – 77,5% – e mais de metade deles concorda que “quando escolhem um emprego, a primeira coisa a ponderar é a remuneração”, um resultado que o Gabinete afirma ser semelhante ao verificado em 2010. Quando questionados acerca das prioridades futuras, uma esmagadora maioria de 84,2% aponta os estudos e uma carreira como o elemento mais importante.
Comparativamente, a vontade de formar família através da contracção do matrimónio parece ter crescido cerca de 5%, com 65,3% dos inquiridos a concordarem com o casamento. O mesmo estudo parece mostrar uma maior confluência entre os valores tradicionais na China e da globalização: assim, junta-se a vontade de esperar para ter relações sexuais depois do casamento, com a de optar por um emprego que pague bem. É que o mesmo estudo mostra um claro aumento nos alvos das despesas destes jovens : cerca de 58,7% e 48,7% dos jovens dão prioridade à compra de acessórios de entretenimento e peças de vestuário.

Um curso no papel

Se se tomar como base as declarações do professor Au e dos dois estudos aqui referidos, pode dizer-se que um curso superior é das etapas mais importantes para os jovens locais, mas nem sempre para seguir à risca as saída profissionais que dita. Isto porque, de acordo com o estudo do Gabinete, a maioria pretende ter uma conta bancária gorda, a desempenhar o trabalho dos seus sonhos sem grandes expectativas salariais. estudantes ensino
Segundo dados fornecidos ao HM pelo Gabinete de Apoio ao Ensino Superior, o número de novos alunos locais em instituições universitárias pouco cresceu desde há cinco anos. No ano lectivo 2010/2011 estavam 17.300 pessoas inscritas em instituições de ensino superior locais, número que não difere em muito com os 18.600 que deram entrada no ano lectivo passado. A área que mais estudantes junta é a de Comércio e Gestão. Há cinco anos, 16.400 dos mais de 17 mil optaram por esta área. Já o curso mais requisitado é o mestrado em Gestão de Empresas, no qual entraram 4400 alunos na Universidade Cidade de Macau (UCT) em 2010 e outros três mil na Universidade de Ciência e Tecnologia (MUST).
Ao contrário do que se poderia pensar, são estas as duas universidades que lideram o ranking de inscrições, segundo o GAES. Os dados não mostram sequer a Universidade de Macau, que no ano passado estreou o seu novo campus na Ilha da Montanha, prevendo aumentar exponencialmente o seu corpo estudantil.

Ajuda externa

De entre as soluções de Kara Chan para colmatar este problema que considera estar a “crescer progressivamente”, está uma maior atenção dos pais e professores às crianças, de forma a que seja possível moldar-lhes os valores fora do círculo do consumismo e da comparação social. “Os pais e educadores deviam ajudar os jovens a distinguir entre ‘querer’ e ‘precisar’, discutindo com eles como lidar com o seu próprio estatuto social de bens materiais”, aponta a académica de Hong Kong.
A directora do departamento de Comunicações adianta uma outra sugestão interessante, desta vez dirigida ao Governo local. “O Executivo deve dar início a um programa educativo para as crianças de Macau no sentido destas desenvolverem uma atitude saudável em relação ao dinheiro, à gestão financeira e à aquisição de bens materiais”.

12 Out 2015