José Navarro de Andrade h | Artes, Letras e IdeiasScorsese, tradição e memória (I) [dropcap]É[/dropcap] de reter na memória e guardá-la tanto quanto esta o permitir a última sequência de “The Irisman” de Scorsese. A enfermeira acaba de medir a tensão arterial ao decrépito De Niro assegurando-lhe que não está mal e ele graceja por ter a confirmação clínica de que ainda está vivo. A câmara sai atrás da enfermeira no seu demorado percurso até ao guichet da enfermaria. Para nossa surpresa não se passa nada e o travelling retrocede rumo à porta do quarto. Percebemos então ter havido uma elipse de tempo. De Niro está agora à meia-luz a terminar uma oração com o padre. O diálogo não acrescenta qualquer informação ao que anteriormente fora dito entre ambos a não ser que o Natal se aproxima e De Niro não sabia. À saída do padre De Niro pede-lhe para deixar a porta entreaberta. Será por essa frincha que o veremos pela última vez, lá dentro na penumbra a olhar para cá. Esta sequência é simétrica na forma de outra executada horas antes, quando a câmara segue o guarda-costas que abandona o seu protegido na barbearia indo pelo corredor fora onde se cruza com os matadores, volvendo atrás deles até ao ponto de partida. Mas não entra, fixa-se num vivíssimo ramalhete de flores e deixa ouvir os tiros e os subsequentes gritos de pânico que já esperávamos escutar, porque tal movimento, de tão invulgar e redundante, entrega-se à inteligência e à sabedoria do espectador experiente que sabe muito sabe que um plano assim, a dilatar e suspender o tempo, anuncia uma eclosão. Mas se nesta primeira versão temos a descrição de um dia como os outros na vida de um mobster, a posterior e conclusiva variante, embora decalque o processo, conduz-nos a outra instância. No mais fordiano dos seus filmes Scorsese redarguiu com este final, de maneira explícita, ao célebre desfecho de “The searchers.” Aqui, com a família enfim reunida, enquadrado pelo umbral, John Wayne fica fora de casa, sozinho e à torreira do sol, afastando-se para a vastidão do continente enquanto a porta se fecha e a música canta “ride away.” Em “The irishman” a porta não se escancara porque nenhuma família reconciliada entra por ela, apenas o padre a transpôs de saída, mas também não se fecha porque De Niro se queda encafuado na penumbra de um canto do quarto. Não há música. Uma revisão retrospectiva de “The irishman” à luz deste desenlace, se não condescendermos em entende-lo como uma trivial citação, artifício que na sua pobreza diegética margina-se estreitamente entre o paródico e o panegírico, concede-nos observar como Scorsese nos fora conduzindo a ele pontuando o filme com uma iconografia propriamente fordiana. São repetidas com persistente intenção as sequências litúrgicas, sublinhadas por planos hieráticos, silentes e despojadamente solenes do coro de wise guys, num friso que dir-se-ia retirado das adorações da pintura florentina do renascimento. Composição grupal que pode sem esforço ser assacada como um dos mais característicos códigos da narrativa fordiana. Scorsese apropria-se do vocabulário dos mestres, incrusta o seu filme numa linhagem que faz sua, porque sente que a velhice – o tema que só tarde compreendemos ser o central de “The irishman” – e a obra anterior lhe consente pertencer a essa tradição.
Carlos Morais José VozesO cinema vê-se em casa [dropcap]O[/dropcap] filme “The Irishman”, de Martin Scorcese, está a levantar uma enorme polémica em todo o mundo não devido à sua qualidade ou às magníficas representações de Pacino, de Niro e Pesci, mas devido ao facto da produtora — a plataforma digital Netflix — não autorizar o filme em sala de cinema numa séria de países, incluindo a França. Pouco tempo antes da estreia, Martin Scorcese deu uma entrevista em que falava da actual diferença entre entretenimento (referindo-se aos filmes de super-heróis e outras pastilhas elásticas) e cinema. Para o realizador de Taxi Driver, o cinema é algo diferente destas superproduções. Algo que pode comunicar realmente com o espectador, colocá-lo em questão, proporcionar-lhe um sentido estético, inundá-lo de algo mais que não emoções rápidas e de efeito efémero. Ao não passar nas salas de cinema, “The Irishman” representaria então um paradoxo: um filme “clássico” que não pode ser “classicamente” consumido e apreciado. Contudo, não me parece nada de paradoxal. É que há muito tempo que os verdadeiros apreciadores de cinema (nos quais me incluo) deixaram de frequentar as ditas salas, na medida em que estas se tornaram num espaço insuportável, destinado a comedores de pipocas e indivíduos com a infância mal resolvida. A sala de cinema, escura, silenciosa, onde ecos religiosos se elevavam, toda ela uma experiência cognitiva especial, deixou de existir para dar lugar a extensões de centros comerciais. Logo, quem gosta de cinema não aguenta aquilo. “The Irishman” (filme excepcional) vê-se em casa, num ecrã acima das 50 polegadas. E mais nada.