A cidade que não dorme

[dropcap]E[/dropcap] agora, isto.

Sibilinas e de uma força imparável. Dizem sem a delicadeza possível do dizer e logo invadindo. A escorrer na minha recente vigília impotente. Fecho as janelas e as portadas como cílios ou doces velaturas a assumir o fim de um dia. O temor de que o sono não venha, calmo, a redimir.

O acordar é coisa de um destempero. Quase que é, a insónia, amiga. Porque das outras vezes eu saio do sono num turbilhão, em que me pergunto de que descanso saiu tamanho vórtice de palavras elaboradas, como de geração espontânea. À espera à beira da cama com o rosto bem colado ao meu a soprar ao ouvido direito e a sair-me pela alma adiante, perturbada e perplexa mas passiva, como simples veículo. Um filtro através do qual se me desprendem para cair de imediato, de tantas e tão rápidas, no confuso esquecimento.

Acordo – cedo, tarde, nem sei dizer se tenho como referência ontem ou amanhã, ou a terra do nunca. E depois volto a acordar. Acordo a proferir frases para dentro. Num mutismo completamente imbuído dessa frescura de um dia novo mas já contaminado. Como se fugidas, elas, de um resumo qualquer de vida em espera, das horas antes do sono. E furibundas da abrupta interrupção, num ímpeto de vingança, à espreita do acordar incauto. E inundação surreal porque delas nada sei. Estou inocente e fico a vê-las enfileirar-se rápidas, fugidias, de inocente que estou sem nada lhes poder acrescentar ou uma vírgula, sequer, mudar.

Passam por mim, na realidade. E a correr. Desisti do caderno de capa azul à beira da cama. Aliás desaparecido. Fugido, talvez. Não admira, perante tamanho assédio. Dentro de mim e sem testemunhas.
Não. Nem me pergunto que palavras são estas. Seguramente serão sobras. E a propósito, acabo por me lembrar que ando com esta sensação indefinida. Este hotel serve-me sobras. E eu ao relento de bolsa dourada e sapato de salto, não sei. Sonho mais alto.

Ao acordar, assim, tudo parece monstruoso e exagerado. Nos cheios e vazios.
Vejamos, planos para o dia: Abrir as portadas com um determinado gesto de revelação. As palavras, entontecidas, já para trás ao descer da cama. Que me querem, sobretudo deitada, informe e indefesa. Mas depois, fogem elas sem coragem de permanecer. Sei onde encontrá-las. No dicionário dos anos oitenta.

Sonsas, ali arrumadinhas por ordem alfabética. Que o mesmo é dizer desarrumadas, dos sentidos que haviam insinuado. Não são de confiança. Mas gosto delas, talvez ou afinal. Serão um amor?

Acordar assim, como se alguém me tivesse contado uma história inquietante antes de dormir, sem o embalo calmo do que está bem e a aterrorizar-me o sonho sem sonhos e a ter que sair por algum lado. Desprevenida ao acordar de mente lúcida, é por ai que saem as palavras esbaforidas.

Mas porque é que não hei-de acordar com borboletas calmas a esticar as asas, a esvoaçar delicadamente por ali na semiobscuridade da manhã a esgueirar-se por entre as portadas mal fechadas de propósito, para entrar o dia, depois. Ou Joaninhas, como tantas vezes aparecem nas plantas da varanda intervaladas do anjo exorbitado que me assola. Um dia destes acordei a contar de dez em dez. Coisa absurda, eu sei. Mas estou inocente, como disse. Fico simplesmente a ver. Como se não fosse nada comigo e não é. Juro. Já contei toda a história da minha vida em versão dark, nestes acordares. Felizmente que ninguém ouviu. Os pormenores precisariam de ser retocados.

Acordo. E como sempre mesmo se de noite profunda e dormida, encadeamentos estranhamente lúcidos de presente, demasiado presente. Mas isso foi sempre assim. Conto de dez em dez e apercebo-me de que uma insólita opção subliminar, despoletou essa cadeia de números religiosamente rezados para dentro, com firmeza e sem mais fantasia do que o abstracto contexto de coisa nenhuma. De onde me vieram os números – e continuo a recitar de dez em dez – senão do instantâneo reconhecer, talvez, que nada haja a esperar de mais interessante. Acordo pois de alma poética em punho, em registo contemporâneo e já irónico. Isto, bem defendido, poderia valer algo, penso um pouco triste. Mas será arte isto de nos deixarmos consumir de vertigem? Tomados de coisas estranhas que o cérebro elabora sem autorização nem intenção clara? É talvez a tela universal que se apresenta no momento inicial um pouco demasiado em branco. Ou um pouco ao negro. Antes de o dia, com as horas, engolir qualquer capacidade de abstracção. Pessoas e vozes por demais. Aqueles seres bizarros de mão levantada e equipamento digital acoplado. Que atravessam as ruas de cabeça baixa. E eu, deitada ainda, se isso o pudesse ser, cabeça mais baixa que a minha, não poderia haver. Contando. Quarenta sessenta oitenta. Minto. Era de dez em dez.

Porque a noite é uma cidade que nunca dorme. A oferecer um eterno presente de Kayros, uma downtown em Tóquio no restrito lugar de um ecrã. Ilusórias luzes. Néons que nunca se apagam, em praças repletas de insones ávidos de qualquer coisa que coloque o dia, a noite, no mapa do acontecido e a que só a língua inglesa faz jus na sua expressão after hours. Ou porque o crânio, é um lugar a fervilhar de agitação num submundo que nunca pára nem de produzir questões e enumerações insólitas à beira do acordar para se derramarem em consternação.

Sim, somos reféns de um lugar depois das horas, uma espécie de parêntesis rectos que custamos arduamente a tornar curvos e sabe-se lá quando os retiramos de facto desse lugar aprisionante que é a insónia. You are here. Aquele ícone de localização nos mapas online. Devo acreditar?

A insónia é o novo black. Mas uma insónia de andar pela casa a acender e apagar luzes – please – para afugentar monstros improváveis, escrutinar sentidos em cada canto dos objectos a esconder intenções vagas, planos, mapas de vida por desenhar.

Mas não. Palavras. Podemos enlouquecer de palavras a mais.

3 Dez 2019