Rui Horta, coreógrafo e director do projecto Espaço do Tempo: “Sou uma espécie de cota da dança”

Um dos mais conceituados coreógrafos portugueses da actualidade assume-se como alentejano por adopção depois de 19 anos à frente da associação cultural O Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo. Rui Horta assume ter atingido um estatuto que lhe permite fazer apenas o que lhe apetece, e isso pode passar por trabalhar com artistas de Macau nas áreas da dança ou do teatro

 

Apresentou, no ano passado, o espectáculo “A Vespa”. Voltou aos palcos como bailarino, tinha saudades?

Durante muitos anos não tive, porque estou muito bem no meu papel de coreógrafo. Só parei (o espectáculo) porque o ano passado caiu uma abóbada no Convento da Saudação (sede do projecto O Espaço do Tempo) e eu cancelei tudo, porque precisava de concentrar toda a minha energia nisto.

Foi como perder a casa.

Sim. Porque ao fim de 19 anos de estares num sítio e cair-te uma abóbada, quando já deverias estar com o espaço recuperado e com um paradigma diferente, é como perder um membro. Mas foi por causa desta perda que conseguimos que, finalmente, o Ministério da Cultura olhasse para nós. Neste momento, temos aprovada uma linha de salvaguarda de 1,6 milhões de euros, mas é só para segurar o edifício. O convento está na posse da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo e nós somos uma espécie de catalisador.

Depois desse contratempo, que projectos podemos esperar?

Pode-se esperar muita coisa. Decidi que a próxima apresentação que vou fazer será uma criação com a cidade, em que vou fazer uma audição aberta e trabalhar com as pessoas da cidade. E depois vou entrar num período mais calmo do ponto de vista d’O Espaço do Tempo, porque vamos mudar para outro sítio em Agosto. Vou depois tirar um ano mais calmo, em que vou ter mais trabalhos artísticos. Não posso deixar de criar, porque se deixar de criar, sou a pessoa mais infeliz desta cidade.

Este projecto com a comunidade local chama-se Quórum. Espera a adesão das pessoas?

Sim. Tenho uma experiência feita de dois projectos parecidos. Tenho obras em 50 companhias do mundo inteiro, nos últimos 20 anos, fiz 2500 espectáculos em toda a minha vida, é quase absurdo. Já não preciso de fazer mais nada, a não ser aquilo que me apeteça muito fazer, que me dê muito gozo.

Já chegou a esse estatuto.

Sim, só faço aquilo que me apetece fazer. E apetece-me fazer coisas novas. Nunca tinha feito um solo só para mim e expor-me dessa forma, que é angustiante. Depois nunca tinha trabalhado com a comunidade e apetecia-me trabalhar com as pessoas na sua maravilhosa autenticidade. Pensei que tinha de fazer isto em Montemor-o-Novo porque celebra o meu tempo aqui. As pedras só fazem sentido se estiverem vivas. Porque é que aquele projecto (O Espaço do Tempo) é fantástico? Porque habitámos o convento durante 19 anos, estava fechado há décadas.

Gosta de pegar em sítios antigos e dar-lhes uma nova alma.

Acho que sou bom nisso. Não me assusto quando vejo uma ruína, dá muito trabalho mas não desisto, porque pegamos numa herança. Acho que trouxe essa força para Montemor, tem sido um legado nosso, somos uma espécie de anti-depressivo da cidade. Fazemos parte da paisagem cultural da cidade, mas há um elemento n’O Espaço do Tempo que vai ser sempre de estranheza.

Não lamenta que a cultura local, ou a adesão das pessoas, se faça apenas pelo folclore ou pela feira, por exemplo?

Já não se faz só assim. Temos criado ao longo dos anos muito público para o teatro. Não fazemos um trabalho só de criação, há depois um grande trabalho de mediação cultural, de ir ter com as pessoas. Haverá sempre o público que estará na feira, mas eu também venho de férias mais cedo e todos me vêem à porta da feira a distribuir panfletos para o concerto da Orquestra Metropolitana de Lisboa na semana seguinte. É preciso lutar. As pessoas ficam sempre espantadas por me verem ali. Eu acho engraçado.

Nunca quis ser estrela.

Não. Uma das coisas mais importantes de se viver em Montemor é ir ao café. Às vezes, mudo de café duas vezes por dia, porque quero estar próximo das pessoas. É nossa obrigação, como associação, estar de mãos dadas, mas viradas para fora, não para dentro. Se não, de que serve fazer cultura? A primeira coisa que o Hitler fez foi fechar os teatros, porque sabia que eram espaços de pensamento crítico.

Aconteceu algo semelhante na China, durante a Revolução Cultural.

Sim, foi brutal. A coisa do pensamento único. Não podes ter a cartilha única. É dessa mistura que saem as coisas mais extraordinárias.

Já que falamos da China, há cerca de dois ou três anos fizeram uma residência artística em parceria com o festival This is My City, de Macau. Tem tido oportunidade de trabalhar com artistas da Ásia, é algo que gostava de fazer?

É algo que ainda está longe. Temos sempre programadores que vêm da Índia, de Hong Kong e da Coreia do Sul. Já temos alguns programadores do Oriente com muita curiosidade em relação aos artistas portugueses. Tivemos um grande projecto há quatro anos atrás com companhias da Índia, mas a nossa esfera de trabalho é mesmo a Europa.

Mas gostava de fazer algo?

Completamente. Aliás, falamos de Macau, de repente fico muito curioso e gostava de eventualmente estabelecer uma ligação com um artista chinês que viesse desse território, e que entendesse melhor a cultura portuguesa, na área da dança contemporânea ou do novo teatro. Mas claro que as grandes companhias de dança chinesas já circulam na Europa e com muito sucesso.

No livro “Sinais do Tempo” fala do discurso político para a área cultural. Como olha para esta ligação entre Portugal e China na área da cultura?

É óbvio que isso deve ser uma prioridade e temos uma relação inevitável do ponto de vista comercial com a China, como tudo o mundo tem. Mas nós temos uma história comum e acho que devemos dar uma capacidade de acrescentar algo e de fazer negócio porque há ainda laços e emoções e há, sobretudo, um conhecimento. No mundo global a China é uma grande potência e penso que não há outra hipótese para nós, neste momento, se não sermos pró-activos nesta relação. É uma terra longínqua, mas a distância ficou mais curta com toda a hipermobilidade do século XX. Não há nada verdadeiramente longe hoje em dia, não é?

Mas não teme o domínio do que é chinês e uma certa permissividade portuguesa?

Não conheço muito bem essa realidade, mas a cultura chinesa é impressionante. A própria filosofia chinesa está antes da filosofia grega, foram os pensadores chineses que fizeram uma reflexão sobre o que é o Homem. É uma cultura milenar com uma tal profundidade que antecede os próprios clássicos gregos e romanos. Temos de ter essa humildade. É claro que hoje é uma cultura de poder. O último século de vida na China é brutal. A China é uma potência económica que projecta poder e vai projectar a sua cultura, não temos hipóteses. É um país que, quando espirra, constipamo-nos todos. Portugal é o oposto, temos de nos aceitar como somos.

Voltemos à coreografia. Que temas lhe falta abordar, numa altura em que só faz o que lhe apetece?

A dança é uma linguagem e a coreografia é a organização dessa linguagem. Podes dizer o que quiseres. E a cada instante assaltam-te coisas diferentes. Hoje tenho três ideias diferentes na cabeça, por exemplo. A história de um montemorense que descobri e que fundou o primeiro circo em Luanda, foi à aventura. Interessa-me falar do sonho, porque é essa espontaneidade que nos leva a ser uns tipos felizes. A vida é só uma. Portanto, não vamos viver deprimidos. Temos a obrigação de ser felizes e isso não é uma opção, é uma obrigação.

Ainda que haja em Montemor-o-Novo um sentimento de depressão colectiva.

Há, e é uma coisa muito alentejana, mas temos de lutar contra isso. Acredito que a cultura é um antídoto para a depressão. Sair para ir ao teatro é um acto de resistência e tem um valor social enorme. Essa é a minha postura perante a arte. Somos um projecto artístico de grande qualidade a nível europeu, temos 70 residências artísticas este ano, passam 500 artistas por aqui, servimos 10 mil refeições por ano. Mas isso é tão importante como fazer outros projectos em parceria com associações locais. Não podes estar numa cidade de província só com um projecto artístico, se não no outro dia mandam-te embora.

Se não fosse a dança era um homem deprimido, ou arranjava outra maneira?

(Risos). Arranjava outra maneira. A dança é brutal. Desde miúdo que partia tudo lá em casa, e fiz desporto antes de ter coragem para ser bailarino. Tornei-me bailarino a partir de 1974, 1975, sou um filho da Revolução.

Ninguém era bailarino na altura, pelo menos os homens.

Fui o primeiro (na área da dança) a ir para o estrangeiro. Fui para Nova Iorque e os outros portugueses iam todos para minha casa, ficavam um mês. Sou uma espécie de cota da dança.

Como foi explicar aos seus pais que queria dançar?

Os meus pais eram professores universitários. O meu pai era patologista, uma pessoa muito culta, austera, mas muito aberta, apesar de tudo. E disse-lhe que queria dança. Ele virou a cabeça lentamente e perguntou-me “filho, não és homossexual, pois não?”. Eu disse que não. Fiquei muito aflito, imagina se fosse! Aí ele disse “então faz o que te apetecer”. Deu uma resposta à frente do seu tempo. Nessa altura, já estava a estudar arquitectura no primeiro ano. Depois saí e fui estudar educação física, que era o que havia mais próximo da dança.

Não havia cursos.

Não. Eu sou o fundador das escolas de dança de hoje. A minha geração era auto-didacta, fui para Nova Iorque lavar pratos. Era para ir por três meses e fiquei dez anos. Sou desses. Limpei apartamentos, trabalhei em restaurantes, dava aulas de ginástica. Foi mesmo o sonho americano, a ganhar 3,75 dólares à hora, o salário mínimo. A minha primeira gripe curei-a com copos de água, não tinha dinheiro para comprar aspirinas. Fui mesmo pobre e nunca contei aos meus pais. Não precisava, mas foi importante ter sido pobre e ter aceite essa fragilidade.

Deu-lhe liberdade para dançar.

Deu-me liberdade para seguir o meu sonho. Gastava todo o dinheiro que ganhava em Nova Iorque para pagar aulas de dança. Lavava pratos num restaurante entre as dez da noite e as quatro da manhã e nas últimas duas horas secava pratos já a dormir. Sei o que isso é, ainda hoje conheço o gesto. Só te conheces com os teus limites. A vida é um acto de curiosidade até ao último dia.

8 Abr 2019